Fundamentação do direito

AutorLuiz Moreira
Páginas137-170
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CAPÍTULO IV
FUNDAMENTAÇÃO DO DIREITO
Algumas afirmações contidas em Direito e Democracia: entre facticidade
e validade nos são particularmente importantes. Importantes porque
apontam para uma redefinição do que venha a ser a nova posição de
Habermas sobre a ética do discurso. Aliás, não é muito correto falar de
uma ética do discurso em Habermas, mas de uma teoria do discurso.
Antes de nos determos nas discussões acerca da fundamentação do Direito
é mister que esclareçamos algumas nuanças.
Três são as perspectivas que orientam o projeto de uma teoria
discursiva do Direito: em primeiro, há um rompimento com a razão
prática na medida em que a razão comunicativa242 não se coloca como
informativa para a ação. Não há o recurso a uma esfera normativa243,
nem mesmo à normatividade fornecida pelo imperativo categórico de
Kant para orientar nossa ação. Sendo assim, a formulação dessa Filosofia
do Direito não pode ser enquadrada como tipicamente kantiana. Em
242 Ora, segundo Habermas, no momento em que se realiza a linguistic turn a figura de
uma razão prática implode. Daí porque a razão prática é substituída pela razão
comunicativa.
243 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tomo I.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 26: “A renúncia ao conceito fundamental
da razão prática sinaliza a ruptura com esse normativismo”.
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LUIZ MOREIRA
segundo, como a razão comunicativa não é imediatamente prática, é
possível falar de uma validade falível que é intrínseca ao Direito. Isto é,
como o Direito se institucionaliza através de um procedimento que
emana da relação de complementaridade entre direitos humanos e
soberania política dos cidadãos, esse procedimento permite ao Direito
estabelecer-se como normativo. No entanto, a validade decorrente desse
processo é sempre passível de ser problematizada, ou seja, uma norma
jurídica, embora válida, pode a todo tempo ser questionada abrindo
espaço para a sua própria revogação. Assim, o Direito tem que estabilizar-
se enquanto ordem normativa e, ao mesmo tempo, falível. Em terceiro,
há uma novidade na relação entre Direito e Moral. Como mostramos
no segundo capítulo, a relação entre normas jurídicas e normas morais
se dava de modo complementar. Agora, porém, há uma recusa dessa
complementaridade244 a favor de uma relação de cooriginariedade e isso,
como veremos, não é por acaso. Isto é, as normas jurídicas e as normas
morais são cooriginárias na medida em que se desenvolveram “a partir
das reservas da eticidade substancial em decomposição”.245
Essas três perspectivas nos permitirão entender a articulação de
um princípio do discurso que é deontologicamente neutro. Possuindo
uma neutralidade deontológica, o princípio do discurso vai esclarecer
qual o sentido da cooriginariedade entre as normas jurídicas e as normas
morais. O princípio do discurso, através da forma do Direito se converte
em princípio da democracia. Entrementes, exatamente porque se trata
de um princípio deontologicamente neutro é que se recusa a subordinação
do Direito Positivo ao Direito Natural e, assim, há uma recusa da relação
de complementaridade entre as esferas da moral e do direito. Mas, qual
é o fundamento do Direito para Habermas? Como ele se torna normativo?
O processo de normatização do Direito se obtém através do processo
legislativo. Mas o processo legislativo autonomamente não é fonte da
legitimidade do direito. Os membros de uma dada comunidade jurídica
244 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tomo I.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 10: “Convém notar, todavia, que atualmente
eu não determino mais a relação complementar entre moral e direito seguindo a linha
traçada nas Tanner Lectures”.
245 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tomo I.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 115.
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CAPÍTULO IV - FUNDAMENTAÇÃO DO DIREITO
têm que se atribuir direitos para que possam se constituir como membros
de uma comunidade jurídica autônoma. Assim, a ideia de que o
ordenamento jurídico se constitui enquanto uma instância externa aos
cidadãos, heterônoma, cede lugar à ideia de uma produção efetiva de
seres livres que têm, no ordenamento jurídico, a manifestação de sua
vontade livre, ou seja, o direito é, ao mesmo tempo, criação e reflexo
da produção discursiva da opinião e da vontade dos membros de uma
dada comunidade jurídica. O processo legislativo vem a ser a instância
que se constitui como síntese entre os direitos que cada cidadão tem que
se atribuir e sua autonomia política. Em uma palavra, através desse princípio
do discurso, neutro do ponto de vista normativo, Habermas poderá
fundamentar o Direito de modo a estabilizar a tensão entre autonomia
privada e pública através do procedimento legislativo.246 Assim,
A cooriginariedade da autonomia privada e pública somente se
mostra, quando conseguimos decifrar o modelo da autolegislação
através da teoria do discurso, que ensina serem os destinatários si-
multaneamente os autores de seus direitos. A substância dos direitos
humanos insere-se, então, nas condições formais para a institucio-
nalização jurídica desse tipo de formação discursiva da opinião e da
vontade, na qual a soberania do povo assume figura jurídica.247
246 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tomo I.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 168: “O surgimento da legitimidade a partir
da legalidade não é paradoxal, a não ser para os que partem da premissa de que o sistema
do direito tem que ser representado como um processo circular que se fecha
recursivamente, legitimando-se a si mesmo.
[...] A compreensão discursiva do sistema dos direitos conduz o olhar para dois lados:
De um lado, a carga da legitimação dos cidadãos desloca-se para os procedimentos da
formação discursiva da opinião e da vontade, institucionalizados juridicamente. De
outro lado, a juridificação da liberdade comunicativa significa também que o direito é
levado a explorar fontes de legitimação das quais ele não pode dispor”. Daí porque não
é possível falar de uma fundamentação jurídica do Direito, uma vez que o procedimento
legislativo e, com isso, a legitimidade do Direito é proveniente da emanação da vontade
discursiva dos cidadãos. Só no seio de uma teoria que interpreta a relação entre Direitos
Humanos e Soberania do Povo de modo concorrente é que se pode falar de uma
fundamentação jurídica do Direito.
247 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tomo I.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 139.

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