Função social da empresa para reabilitação e readaptação dos trabalhadores com deficiência em razão de acidente laboral

AutorEduardo Milleo Baracat - Elisa de Mattos Leão Prigol Grande
Páginas92-102

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Eduardo Milleo Baracat1

Elisa de Mattos Leão Prigol Grande2

Introdução

O Brasil se destaca negativamente no cenário inter-nacional quando o assunto envolve acidentes do trabalho tendo recebido no início da década de 70 o título de nação “campeão mundial”. De lá para cá, mesmo com a edição de normas legais visando reduzir esta triste estatística, o quadro pouco se modificou. Tais ocorrências acentuam a importância do tema principalmente quando a pesquisa busca abranger uma perspectiva das repercussões posteriores ao acidente enfrentadas pela vivência operária e pela organização do trabalho.

Isto porque ato contínuo ao acidente de trabalho não raras vezes inicia-se uma árdua luta pela recuperação física e/ou psicológica do obreiro que dificilmente retornará ao status quo dependendo da intensidade do trauma. Pensando justamente no caminho posterior ao da suposta recuperação é que se delimitou o estudo para compreender a função social da empresa, como também investigar a quem incumbe a responsabilidade de reabilitar e readaptar o trabalhador acidentado que sofre redução da capacidade laborativa e, em consequência, adquiriu algum tipo de deficiência.

Não comporta neste estudo uma análise estatística sobre os acidentes do trabalho, haja vista a escassez de informação das ocorrências dificultando o acesso a dados reais precisos. O objetivo principal é verificar de que forma ocorre o enquadramento na legislação brasileira bem como os critérios de interpretação doutrinária sobre o assunto.

Neste sentido, o problema central é o de verificar quais os limites e em que medida se insere no conceito de função social da empresa reabilitar e readaptar o trabalhador que adquiriu deficiência em virtude de acidente do trabalho?

A pesquisa vai se desenvolver em torno de três elementos centrais: função social da empresa, acidente de trabalho, a deficiência do trabalhador acidentado e sua reabilitação e readaptação.

No primeiro momento será investigado o conceito, origem e quais as aplicações práticas que envolvem a função social da empresa. Passa-se, em seguida, a analisar o conceito e as classificações do acidente de trabalho abrangendo neste tópico as consequências para o empregador bem como questões acerca das possíveis mudanças na integridade física e/ou mental do trabalhador, sobretudo para aquele que teve a capacidade de trabalho limitada.

Objetiva-se ainda investigar quais são os caminhos percorridos pelo obreiro para retornar ao mercado de trabalho, tanto em relação à possibilidade de exercer o mesmo ofício quanto a de ser readaptado para função compatível com sua nova realidade.

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qualquer forma, é inegável que, a despeito das aludidas previsões, a compreensão que se dava aos textos constitucionais era meramente programática, no sentido de que o destinatário da norma era o Estado que deveria legislar com vistas à função social da propriedade. Ou seja, as referidas previsões nas Constituições de 1946 e 1967 acerca da função social da propriedade não foram suficientes para mudar a concepção até então dominante – ainda sob os influxos dos valores reinantes do Século XIX – no sentido de que nos estreitos contornos conceituais da propriedade havia espaço apenas para o direito individual e a liberdade de usá-la e defendê-la (TEPEDINO, 2009, p. 132).

Inegável, contudo, que a Constituição de 1988 ao estabelecer os fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º), como também seus objetivos fundamentais (art. 3º, I e III) condicionou a utilização dos bens patrimoniais à observância de direitos existenciais e sociais. O ordenamento jurídico, desse modo, não concebe mais a propriedade privada apenas como instrumento de resistência em face das ingerências do Poder Público (TEPEDINO, 2009, p. 132).

Com efeito, o elemento funcional do conceito de propriedade está diretamente relacionado aos pressupostos axiológicos eleitos pela Constituição como socialmente fundantes, quais sejam, os da soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político (art. 1º), com vistas à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, à garantia do desenvolvimento nacional, à erradicação da pobreza e da marginalização, como também à redução das desigualdades sociais e regionais, e, ainda, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º).

Em outras palavras, o conteúdo da função social amplia os contornos da propriedade de modo a incluir, no âmbito do domínio, os valores que formam os alicerces do ordenamento, permitindo, dessa maneira, que as interpretações decorrentes promovam a solidariedade política, econômica e social (PERLINGIERI, 1999, p. 226). Sob essa perspectiva, a função social se apresenta tanto quanto “causa de legitimação ou de justificação das intervenções legislativas”, quanto “critério de inter-pretação da disciplina proprietária para o juiz e para os operadores jurídicos” (PERLINGIERI, 1999, p. 227).

Por fim, serão averiguados os limites da função social da empresa quanto à obrigatoriedade ou não de arcar com o processo de reabilitação e readaptação do trabalhador que muitas vezes permanece no “limbo jurídico trabalhista-previdenciário”.

Aspectos da função social da empresa
2.1. As bases da construção: a função social da propriedade

A concepção de que a empresa, além de desenvolver atividade econômica e, na maior parte das vezes, buscar o lucro, também tem uma função social, resulta da extensão do conceito da função social da propriedade, prevista nos arts. 5º, XXIII e 170, III, da Constituição brasileira.

A propriedade enquanto um direito fundamental de primeira dimensão resultou – como todos os direitos dessa dimensão – da necessidade de se inserir na ordem jurídica positiva conteúdos materiais que sedimentaram valores prevalentes na guinada revolucionária que marcou o século XVIII (BONAVIDES, 2003, p. 563).

Com efeito, como todos os direitos de primeira dimensão, a propriedade era um direito da liberdade, cujo titular era o indivíduo, e se caracterizava como faculdades ou atributos da pessoa, marcado pela subjetividade e oponível contra o Estado (BONAVIDES, 2003, p. 563). Desse modo, as ingerências estatais no direito de propriedade eram consideradas como agressão à liberdade privada (TEPEDINO, 2009, p. 130-131). Essa era, ao menos, a concepção civilista clássica, em que se vislumbrava na propriedade apenas a perspectiva estrutural, conferindo ao sujeito titular o conteúdo econômico do domínio, por meio das faculdades de usar, fruir e dispor, como também, o conteúdo jurídico por meio da prerrogativa de repelir interferências de terceiros mediante instrumentos legais (TEPEDINO, 2009, p. 131-132).

Embora a Constituição de 1988 tenha imposto uma guinada nessa perspectiva conceitual, a previsão de que a propriedade possuía função social já existia na Constituição de 1967 (art. 160, III)3. No entanto, TEPEDINO afirma que já havia na Constituição de 1946 referência autonomamente da função social da propriedade no art. 1474 (TEPEDINO, 2009, p. 132). De

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Importa ainda observar que a concepção da função social da propriedade, enquanto elemento interno do domínio, não limita a liberdade individual, tendo em vista que “as liberdades constitucionalmente asseguradas não constituem liberdades isoladas, mas inseridas na legalidade constitucional” (TEPEDINO, 2009, p. 139). Encontra-se superada a concepção liberal vitoriosa na Revolução Francesa de que a liberdade individual é o valor central do sistema e deve prevalecer sobre outros, quando se conflitarem. O ordenamento jurídico, em verdade, “é formado por um conjunto de princípios, e não já por princípio único, o qual deve ser sempre examinado e levado em conta no momento da aplicação do direito” (TEPEDINO, 2009, p. 139). Não se nega a imperiosa necessidade de garantia das liberdades privadas, o que, inclusive, é amparado pela Constituição. Contudo, “a liberdade individual há de ser permanente e intrinsecamente ponderada, como outros princípios fundamentais que se agregam às liberdades”, de modo que se possa compor a ordem pública reafirmando-se “a liberdade na solidariedade, na igualdade substancial e na tutela da dignidade da pessoa humana” (TEPEDINO, 2009, p. 139-140).

Esses são os alicerces para a construção do conceito da função social da empresa.

2.2. Conceito e características da função social da empresa

O exercício da atividade econômica no sistema capitalista se dá pelo reconhecimento da livre iniciativa enquanto fundamento da República (art. 1º, IV, da Constituição), e dos princípios gerais da atividade econômica, dentre os quais, a propriedade privada, a função social da propriedade e a livre concorrência (art. 170 da Constituição).

Constata-se, destarte, que os nexos entre a função social da propriedade e a função social da empresa são muito estreitos (PERLINGIERI, 1999, p. 228).

Com efeito, o empresário é, de fato, proprietário dos fatores de produção – capital, matéria-prima, recur-sos naturais, tecnologia, marca, patente, águas, minas, propriedade imobiliária e mobiliária, industrial e intelectual, artística e científica – necessários ao desenvolvimento da atividade econômica (SOUZA, 1999, p. 490).

Obviamente, a função social da propriedade de que trata o art. 170, III da Constituição referem-se a todas as propriedades, inclusive aquelas sobre as quais o empresário...

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