A função social da empresa e o novo código civil

AutorFernando Netto Boiteux
Páginas48-57

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Ver Nota1

O tema que me coube expor se re-fere à função social da empresa no novo Código Civil, mas, atendendo ao fato de que o legislador não se refere expressamente à função social da empresa no novo Código, preferi usar o título "A função social da empresa e o novo Código Civil", que esclarece melhor o tema desta exposição.

Tendo em vista que o conceito de empresa passou a estar presente no novo Código Civil, primeiramente irei comentar o significado da expressão "empresa" para o Direito, de forma a averiguar a qual realidade o legislador está se referindo.

Em seguida, irei rever alguns conceitos sobre a responsabilidade empresarial, tal como esta tem sido compreendida pelos administradores de grandes empresas, pelos acionistas e pelos representantes de interesses externos ao capital, como os trabalhadores, os consumidores e a comunidade em que a empresa atua.

Finalmente, procurarei expor o que compreendo como sendo a função social da empresa, e de que forma entendo que ela poderá se tornar efetiva.

1. O significado da expressão "empresa"

A palavra "empresa" na realidade económica, tanto quanto na ordem jurídica, significa a organização do empresário para o exercício de sua atividade. Para usar de um conceito económico, também utilizado pelo Direito, a empresa é a organização (conjunto organizado) dos fatores de produção. Como adverte Asquini: "(....) defronte ao Direito o fenómeno económico da empresa se apresenta como um fenómeno possuidor de diversos aspectos, em relação aos diversos elementos que para ele concorrem, o intérprete não deve agir com o preconceito de que o fenómeno económico de empresa deva, forçosamente, entrar num esquema jurídico unitário. Ao contrário, é necessário adequar as noções jurídicas de empresa aos diversos aspectos do fenómeno económico".2

O legislador, na definição de empresário presente no art. 966, caput, do novo

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Código Civil, não colocou o objetivo lucrativo como um fator de sua qualificação, de forma que a finalidade ou objetivo último da empresa pode ser "egoístico" ou "altruís-tico", isto é, pode-se referir ao proveito económico próprio ou ao serviço público.

No nosso direito positivo, encontraremos diversos conceitos de empresa, que não discrepam da definição utilizada acima, a saber: na Lei de Sociedades por Ações3 e na Lei de Repressão ao Abuso de Poder Económico,4 A única distinção entre os conceitos pode ser identificada no fato de que a Lei de Sociedades por Ações só se refere à empresa de fim lucrativo, pois ela só regula, por sua natureza, a empresa comercial.

O novo Código Civil não se preocupou em definir a empresa, ainda que lhe tenha reservado um Livro denominado "Do Direito de Empresa"; definiu o empresário, como fez o legislador italiano no Código Civil de 1942. As referências à empresa nos artigos 966, 968, 972, 974 e 975 no novo Código nos permitem afirmar, no entanto, como se encontra bem claro nos dois últimos artigos citados, que a empresa se exerce, ou seja: ela é o resultado da atividade do empresário.

Ocorre que esta afirmativa nem sempre é verdadeira, como já afirmava Fábio Comparato, ressaltando o divórcio entre a definição de empresário presente no art. 2.082 do Código Civil Italiano e a realidade, como segue: "Tratando-se de sociedades não-personalizadas, ainda é possível dizer que todos os sócios são empresários. Mas no caso das companhias, mesmo os não-kelsenianos percebem que a ideia de uma sociedade empresária constitui evidente abuso de retórica".5

Assim, chegamos a uma situação aparentemente curiosa, mas perfeitamente identificada pelo legislador na Lei de Sociedades por Ações: os detentores do capital nem sempre são empresários e aqueles que agem como empresários não são, em grande parte das vezes, detentores de parte expressiva do capital.

Nas pequenas empresas existe, efeti-vamente, uma relação clara entre a propriedade do capital, os recursos de que a empresa dispõe e o exercício do poder sobre ela. Nas grandes empresas não existe correspondência entre a participação no capital e o exercício do poder, dado que o capital está pulverizado por um número elevado de acionistas e as pessoas que detém o poder são titulares de uma parcela ínfima dele.

Essa foi a realidade que introduziu em nosso direito a figura do acionista controlador, que é aquele que efetivamente controla a atividade empresarial (Lei das Sociedades por Ações, art. 116), levando Fábio Comparato a ressaltar que "o exercício legítimo do poder de controle se mede, em tais condições, pela finalidade aos fins ou interesses determinados pela ordem jurídica".6

Essa organização - a empresa - nem sempre está fundada em direitos de propriedade, ainda que os empresários, frequentemente, tratem a empresa, grande ou pequena, como propriedade. Nesse conceito estão incluindo a estrutura física da fábrica, os serviços necessários à produção, transporte e distribuição, os vendedores e, até mesmo, as relações de trabalho.7

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Quando tomamos o sentido da empresa como prestadora de serviço público, não encontramos maior dificuldade em identificar a função social que lhe está reservada, pois ela está implícita no seu objeto social, razão pela qual ela não será objeto desta exposição.8

Ocorre que, mesmo nas empresas privadas, com objetivo sabidamente lucrati-vo, iremos encontrar diversas manifestações de interesse social, o que, ao nosso ver, indica que a responsabilidade social não está vinculada, indissoluvelmente, à atuação do Poder Público,9 e pode decorrer do atendimento aos interesses de uma parcela dos acionistas, ou mesmo dos próprios controladores. Vejamos os exemplos.

2. A responsabilidade empresarial vista pelos empresários

A preocupação dos dirigentes das ma-cro-empresas com a responsabilidade empresarial tem sido notada desde a década de 20, quando se formaram alguns dos maiores grupos empresariais norte-ameri-canos. Para ilustrar o significado dessa responsabilidade, passamos a transcrever uma das mais antigas e notadas expressões acer-ca do problema. Afirmou Owen D. Young, em 1929, quando era o principal executivo da General Electric Company10

"(...) faz uma grande diferença em meu comportamento como um dos administradores da General Electric Company saber se sou um 'trustee' da instituição ou um mandatário do investidor. Se sou um 'trustee', quem serão os beneficiários de meu esforço? Para quem eu devo minhas obrigações? Meu pensamento acerca do problema é o seguinte: há três grupos de pessoas que têm interesse na instituição. Um é o grupo representado por 50.000 pessoas que puseram capitais na companhia, isto é, os acionistas. Outro, o grupo de 100.000 pessoas que estão colocando sua força de trabalho e suas vidas nos negócios da companhia. O terceiro grupo é o dos consumidores e do público em geral.

"Os consumidores têm direito de reclamar que um negócio grande deva não somente operar honesta e satisfatoriamente, mas que, além disso, deva ir ao encontro das suas obrigações públicas e cumprir seus deveres - que, em uma palavra, de sentido amplo, ela seja um bom cidadão."

Esta espécie de preocupação, no entanto, não se tornou um padrão entre os empresários de grandes corporações. Para Alfred Sloan Jr., que foi o presidente da General Motors da década de 20 até a década de 40, e que criou o conceito de corporação tal como o conhecemos hoje "crescimento e progresso estão relacionados, uma vez que não existe descanso para uma empresa numa economia competitiva. Obstáculos, conflitos, novos problemas em várias formas e novos horizontes surgem para agitar a imaginação e continuar o progresso da indústria".11

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Àlfred Sloarí, cuja história na General Motors, contada no livro, se confunde com a história das grandes corporações modernas, pouco se dedicou a descrever a preocupação com quaisquer outros interesses que não o máximo retorno possível sobre o investimento dos acionistas, ressalvando, no entanto, que não negligenciou de sua responsabilidade para com os seus funcionários, clientes, revendedores, fornecedores e a comunidade.12

Vale ressaltar, portanto, que a perspectiva de não "negligenciar" é muito diversa daquela de agir como um representante ("trustee") dos interesses dos acionistas, dos trabalhadores,, dos consumidores e do público em geral, como declarou o presidente da General Eletric, referindo-se ao mesmo período histórico.

O Professor Berle reconhece, por sua vez, avaliando a mudança ocorrida nas empresas desde a publicação de sua obra fundamental, que os princípios e a prática das grandes empresas em 1959 lhe parecem muito mais responsáveis e honestos queeml929.13

Poderíamos apresentar diversos outros exemplos da compreensão pelos empresários da função social das empresas, mas estes são suficientes para demonstrar que o conceito não é estranho à classe empresarial.14

Essa compreensão da responsabilidade social das empresas, no entanto, não teve um desenvolvimento linear e, nos dias em que vivemos, de liberalismo económico, é necessário ressaltar o pensamento de um expoente da Escola de Chicago, Milton Friedman, sobre a responsabilidade dos empresários, ao sustentar: "Há poucas coisas capazes de minar tão profundamente as bases de uma sociedade livre do que a aceitação por parte dos dirigentes das empresas de uma responsabilidade social que não a de fazer tanto dinheiro quanto possível para os seus acionistas".15

3. A responsabilidade empresarial vista pelos acionistas

Os acionistas, nos países mais desenvolvidos, começaram, há alguns anos...

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