From "Marxist indoctrination" to "gender ideology": Escola Sem Partido (non-partisan school) and gag laws in Brazilian congress/ Da "doutrinacao marxista" a "ideologia de genero" Escola Sem Partido e as leis da mordaca no parlamento brasileiro.

AutorMiguel, Luis Felipe

Introducao

Uma das caracteristicas notaveis da politica brasileira dos anos 2010 e o avanco, no debate publico, de vozes abertamente conservadoras. E razoavel estabelecer que, a partir do fim da ditadura militar, o combate a desigualdade extrema e a defesa dos direitos humanos formavam a base de um consenso mesmo que apenas verbal--entre todas as forcas politicas relevantes. Havia quem se insurgisse contra este consenso, mas eram excentricos sem maior peso no debate publico. Agora, ao contrario, e perceptivel uma significativa presenca de discursos em que a desigualdade e exaltada como corolario da "meritocracia" e em que tentativas de desfazer hierarquias tradicionais sao enquadradas como crime de lesa-natureza. Nestes discursos, tambem ganha uma nova legitimidade a velha ideia dos direitos humanos como uma formula que concede protecao indevida a pessoas com comportamento antissocial. Versoes (em geral moderadas) destas posicoes ocupam lugares centrais na coalizao que desferiu o golpe parlamentar de maio de 2016, de uma maneira como nunca ocorrera antes: mesmo nas gestoes de Fernando Collor e de Fernando Henrique Cardoso, em que as forcas mais conservadoras estiveram a frente do governo, as politicas de retracao do Estado eram denunciadas pelos opositores como promotoras de desigualdade, mas justificadas por seus idealizadores por pretensos efeitos contra-intuitivos a medio e longo prazos. O aprofundamento da igualdade politica e a defesa dos direitos humanos tambem eram apresentados como objetivos de governo.

Os discursos reacionarios provem, no caso brasileiro, de uma conjugacao heteroclita entre o "libertarianismo", o fundamentalismo religioso e o antigo anticomunismo. A ideologia ultraliberal libertariana, descendente da chamada "escola economica austriaca" e influente em meios academicos e ativistas dos Estados Unidos, prega o menor Estado possivel e afirma que qualquer situacao que nasca de mecanismos de mercado e justa por definicao, por mais desigual que pareca (Rothbard, 2006 [1970]; Nozick, 1974; para um resumo critico, cf. Freeman, 2002). Apresentada como uma teoria intelectualmente sofisticada, capaz de fazer frente a pretensa hegemonia do pensamento progressista nos ambientes universitarios, e promovida ativamente por fundacoes privadas estadunidenses, que treinam divulgadores e financiam grupos de intervencao (cf. Mayer, 2016). E, em linhas gerais, a posicao do Instituto Millenium (o principal think tank da direita brasileira, criado em 2006 e financiado por empresas nacionais e transnacionais), com eco na linha editorial de parte da grande imprensa e popularizada por jornalistas como Rodrigo Constantino.

O fundamentalismo religioso tornou-se uma forca politica no Brasil a partir dos anos 1990, sobretudo com o investimento das igrejas neopentecostais em prol da eleicao de seus pastores (Oro, 2003; Machado, 2006). Por vezes se fala na "bancada evangelica", mas a expressao nao apenas ignora diferencas entre as denominacoes protestantes como deixa de lado a importante presenca do setor mais conservador da Igreja Catolica (1). O fundamentalismo se define pela percepcao de que ha uma verdade revelada que anula qualquer possibilidade de debate. Ativos na oposicao ao direito ao aborto, a compreensoes inclusivas da entidade familiar e a politicas de combate a homofobia, entre outros temas, os parlamentares fundamentalistas se aliam a diferentes forcas conservadoras no Congresso, como os latifundiarios e os defensores dos armamentos, numa acao conjunta que fortalece a todos (2). Fora do Congresso, pastores com forte atuacao politica e forte presenca nas redes sociais, como Silas Malafaia (da Assembleia de Deus Vitoria em Cristo), dao voz a sua pauta.

O anticomunismo, por fim, parecia ultrapassado com o fim da Guerra Fria, mas ganhou nova roupagem na America Latina e no Brasil. A ameaca passou a ser o "bolivarianismo" (a doutrina do falecido presidente venezuelano Hugo Chavez) e o Foro de Sao Paulo, conferencia de partidos latino-americanos e caribenhos de centro-esquerda e de esquerda, que na narrativa anticomunista assumiu a feicao de uma conspiracao para dominar o subcontinente. A despeito do centrismo crescente de seu discurso e de suas praticas moderadas quando esteve no governo, o Partido dos Trabalhadores veio a ser apresentado como a encarnacao do comunismo do Brasil, gerando uma notavel sobreposicao entre anticomunismo e antipetismo. Com alguma penetracao na midia tradicional e um uso muito forte das redes sociais, escritores como Olavo de Carvalho sao a voz publica dessa posicao.

As tres correntes nao sao estanques: por exemplo, Olavo de Carvalho, apresentado aqui como emblema do anticomunismo tradicional, e igualmente um catolico fundamentalista; o espantalho do Foro de Sao Paulo e levantado tambem por ultraliberais libertarianos e assim por diante. Sua acao conjunta contra um inimigo comum levou a um programa sui generis, segundo o qual o Estado deve se abster de interferir nas relacoes economicas e de prover servicos, mas regular fortemente a vida privada. O ultraliberalismo original, fiel a ideia de que cada um e proprietario de si mesmo, tenderia a assumir uma agenda "progressista" em relacao a temas como liberacao das drogas, direito ao aborto, arranjos familiares heterodoxos ou direitos dos homossexuais (neste ultimo caso, com alguma vacilacao, dada a homofobia obsessiva de uma de suas autoras iconicas, a romancista de ficcao cientifica Ayn Rand). Ainda que esta plataforma seja empunhada por alguns de seus porta-vozes nas universidades, a frente criada com os outros setores da direita leva a que, no debate publico, tais temas sejam deixados de lado ou aceitos em seu registro mais conservador.

Entre as tres correntes aqui citadas, apenas os fundamentalistas possuem de fato uma bancada no Congresso Nacional (3). As ideias ultraliberais marcam a atuacao de alguns deputados, sobretudo entre os eleitos mais jovens do PSDB, mas trata-se mais de um discurso difuso do que de uma acao politica coordenada. E o anticomunismo radical tem porta-vozes parlamentares, notadamente Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e seu filho Eduardo Bolsonaro (PSC-SP), mas, afora estas excecoes, funciona mais como um pano de fundo, evocado quando conveniente, do que uma diretriz de acao politica.

O fortalecimento publico deste discurso abertamente conservador permitiu que ganhasse visibilidade--e expressao parlamentar--um movimento que acusa as escolas de "doutrinacao ideologica" e propoe medidas para impedir que professoras e professores expressem, em sala de aula, opinioes consideradas improprias. A principal organizacao e o Movimento Escola Sem Partido (MESP), que se apresenta como uma "iniciativa conjunta de estudantes e pais preocupados com o grau de contaminacao politicoideologica das escolas brasileiras, em todos os niveis: do ensino basico ao superior" (4). Fundado em 2004 pelo advogad o Miguel Nagib, o MESP permaneceu na obscuridade ate o inicio da decada de 2010, quando passou a ser uma voz frequente nos debates sobre educacao no Brasil. Seu programa foi abracado por todos os grupos da direita brasileira. E o idealizador de projetos de lei que tramitam em todo o Brasil, nas Camaras de Vereadores e Assembleias Legislativas, e tambem no Congresso Nacional. Com o golpe parlamentar de 2016, que destituiu a presidente Dilma Rousseff, a proposta do MESP passou a contar com a simpatia do novo ministro da Educacao, o administrador e politico pernambucano Mendonca Filho (5).

O crescimento da importancia do MESP no debate publico ocorre quando seu projeto conflui para o de outra vertente da agenda conservadora: o combate a chamada "ideologia de genero". Antes, a ideia de uma "Escola Sem Partido" focava sobretudo no temor da "doutrinacao marxista", algo que estava presente desde o periodo da ditadura militar. O receio da discussao sobre os papeis de genero cresceu com iniciativas para o combate a homofobia e ao sexismo nas escolas e foi encampado como bandeira prioritaria pelos grupos religiosos conservadores. Ao fundi-lo a sua pauta original, o MESP transferiu a discussao para um terreno aparentemente "moral" (em contraposicao a "politico") e passou a enquadra-la nos termos de uma disputa entre escolarizacao e autoridade da familia sobre as criancas.

Na primeira secao do texto, discuto a genese do discurso da "ideologia de genero" e essa confluencia que leva ao Movimento Escola Sem Partido em sua face atual--confluencia que espelha a frente unida do conservadorismo moral e do conservadorismo economico, vigente no Brasil hoje. Na segunda secao, serao analisados os projetos em tramitacao no Congresso, observando as compreensoes de educacao, de familia e de genero que eles mobilizam. A secao conclusiva discute o impacto que esta ofensiva pode ter na cidadania e nos direitos humanos.

  1. Da "ideologia de genero" a Escola Sem Partido

    Foi no ambiente academico estadunidense, a partir dos anos 1970, que o termo "genero" (gender) ganhou curso como maneira de indicar a diferenca entre, por um lado, o dimorfismo sexual da especie humana e, por outro, os papeis sociais associados a mulheres e homens. Trata-se, portanto, de por em xeque o entendimento convencional de que estes (os papeis sociais) sao um reflexo automatico daquele (o dimorfismo sexual). Esse questionamento e a marca distintiva do feminismo contemporaneo, presente de forma lapidar em sua frase mais emblematica, o "nao se nasce mulher: torna-se mulher" de Simone de Beauvoir (1949, vol. II, p. 15). No "tornar-se", Beauvoir indica como a identidade e uma construcao social, orientada por estimulos, expectativas e oportunidades diferenciadas. A mulher nao e definida por seu aparelho reprodutor (aquilo com que "se nasce"), mas pela adequacao ao papel socialmente determinado para ela. E essa reflexao que fica condensada no conceito de "genero".

    Embora tenha, em curto espaco de tempo, ganhado estatuto de categoria-chave no feminismo, que passou a operar sistematicamente...

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