Flexibilização do Trabalho Padronizado na Era do Risco e da Tecnologia

AutorHenrique Garbellini Carnio - Thais Cristina Firmino Franzé
Páginas21-28

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Considerações iniciais

Compreender as transformações pelas quais passou o mercado de trabalho desde o inal do século XX exige fôlego. Segundo o sociólogo Ulrich Beck, em um contexto de catástrofes naturais, guerras e acidentes inevitáveis pelo homem, a Sociedade de risco atingiu também as relações de trabalho padronizadas e seguras da era industrial causando inevitável mal-estar àqueles que viram esvaírem garantias e estabilidades inclusive com relação à própria existência de postos de trabalho.

O processo que desencadeia uma nova coniguração do mercado de trabalho deve-se, em grande medida, ao desenvolvimento da tecnologia e à consequente interação entre seres humanos e mercados econômicos. Nesse sentido, as constatações do jornalista e escritor homas L. Friedman são de inegável valia. Ao fundamentar a ocorrência de um progressivo achatamento do mundo, Friedman revela as mais impressionantes formas de trabalho advindas das possibilidades de um mundo plano.

É no contexto da sociedade de risco, de um mundo plano, que se situa a problemática. Para que seja possível um enfrentamento dessa nova realidade por parte de governos, empresas e indivíduos é necessária preparação. A capaci-dade de adaptar-se parte da premissa de compreender o contexto no qual se está inserido. Esse é o objetivo do presente artigo: comprovar a atualidade e relevância do tema tratado em uma sociedade que supervaloriza o trabalho e expor situações totalmente novas visando instigar relexões críticas acerca dos desaios para as relações de trabalho, o meio ambiente do trabalho e os trabalhadores - sua condição de vida - em potencial nela inseridos.

1. A noção de trabalho na modernidade

O trabalho alcançou, em nossa época, importância nunca antes veriicada na história da humanidade. Nas civilizações antigas imperava o desprezo pelo trabalho manual, dependendo o desenvolvimento das sociedades do intenso trabalho escravo; como se sabe, Aristóteles tomou posição legitimadora da escravidão, o escravo era um instrumento vivo, de modo que a escravidão era uma consequência inevitável das leis naturais, havendo pessoas que por natureza eram escravas, de forma que cabia aos cidadãos livres dedicarem-se à atuação política e à criação artística (ARISTÓTELES, 2002. L. 5, cap. 4-7).

Ulrich Beck, ao se referir à noção etimológica sobre a origem dos vocábulos que compõem substancialmente a palavra trabalho, revela que esta noção era originalmente concebida como algo terrivelmente penoso, para alguns a

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palavra derivaria do baixo latim, tripalium, (três paus), aparelho destinado a sujeitar cavalos que não queriam se deixar ferrar, daí que tripaliare, trabalhar, signiicava torturar com o tripalium. Já, para outros autores, o termo vem do baixo latim trabaculum, por sua vez derivado do latim trabs, ou seja, trave, viga, usada também para ferrar animais (BECK, 2001. p. 12).

Como já apontamos em nossa obra Teoria política do direito, trabalho é um termo utilizado para designar realidades distintas. Enquanto na física é a medida do efeito produzido pela atividade da força produtora de movimento, no âmbito da atividade humana, o trabalho possui o signiicado de agente transformador de energia, podendo ser deinido como a energia humana empregada para ins produtivos (BECK, 2011).

Na coniguração da modernidade, a partir das grandes revoluções, o trabalho adquiriu importância fundamental na sociedade industrial e a era moderna trouxe consigo a gloriicação teórica (técnica) do trabalho que resultou na transformação efetiva de toda a sociedade em uma sociedade operária. A consolidação do capitalismo como sistema hegemônico foi fundamental pra este processo, trazendo a necessidade de levar o trabalho, a força laboral, às últimas consequências, visando ao consumo. Segundo interessante apontamento do sociólogo Ulrich Beck, a importância adquirida pelo trabalho na vida das pessoas é claramente percebida quando dois conhecidos se encontram e perguntam: "o que você é?". A proissão, dessa forma, é capaz de exprimir tudo aquilo que se deseja saber sobre alguém: renda, status, conhecimentos linguísticos, interesses possíveis, contatos sociais etc. (BECK, 2011. p. 204).

Nesse contexto, toda e qualquer transformação nas relações de trabalho implica mudanças de toda a sociedade e é imprescindível que se dê a esse fenômeno sua devida importância. Pretende-se, neste ponto, lançar as bases para uma análise crítica sobre o processo de lexibilização dos pilares que sustentam as relações de trabalho padronizadas. Esse processo vem se intensiicando pelas mais diversas razões e trazendo consigo consequências potencialmente desastrosas.

A sociedade industrial, após um longo período de acomodação, padronizou o sistema empregatício em seus principais elementos: contrato de trabalho, local de trabalho e jornada de trabalho. Dessa forma, desenvolveu-se a concepção do trabalho assalariado como devidamente contratado segundo as principais regras jurídicas que equilibrem a relação entre empregado e empregador, realizado nos estabelecimentos fabris com jornada ixa diária. É o trabalho assalariado vitalício, de jornada integral, fonte de renda e segurança. Essa concepção é tão forte que chega a permitir a regulação e regulamentação das relações de trabalho de trabalhadores de setores e categorias inteiras, como acontece nas chamadas ações coletivas.

Essa forma de trabalho, contudo, sofre um processo de lexibilização intenso em nossa época. O desejo do homem de construir, desenvolver tudo aquilo quanto possível para libertar-se do exaustivo trabalho que resultou numa era da automação, da técnica - e tecnologia - é um dos grandes responsáveis por este fenômeno. Junto com ele e, aliás, como sua natural consequência, os níveis alarmantes de desemprego contribuem para esse processo na medida em que, quando postos de serviço são escassos, que seja estimulada a lexibilização incorporando cada vez mais trabalhadores em condições de subemprego (diminuindo e mascarando, portanto, o desemprego).

Uma das maiores expressões do modelo, já em vias de ser extinto, de trabalho padronizado da sociedade industrial são os estabelecimentos fabris. A cena de grandes estabelecimentos nos quais se concentram todos os trabalhadores é emblemática. Contudo, a modernização informacional-tecnológica abala profundamente essa antiga estrutura do local de trabalho. Quase todo o trabalho pode, hoje em dia, por meios eletrônicos ser realizado em qualquer local, inclusive na própria residência do trabalhador.

Essa lexibilização espacial gera, por exemplo, um grave problema jurídico: a privatização dos riscos que o trabalho oferece à saúde física e psicológica. Normas de segurança no trabalho escapam ao controle público nas formas de trabalho descentralizado e os custos por desconsiderá-las ou suspendê-las são transferidos aos próprios trabalhadores (e a própria empresa economiza ao se abster da responsabilidade).

São muitas as explicações também para a lexibilização das jornadas de trabalho. Os níveis de desemprego alar-mantes que pressionam o Estado a se posicionar; a escolha do próprio trabalhador, em especial mulheres que veem uma possibilidade de melhor...

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