O fim do escravismo e o escravismo sem fim--colonialidade, direito e emancipacao social no Brasil/The end of slavery and endless slavery. Coloniality, law and social emancipation in abolitionist Brazil.

AutorAndrade, Bruno

Introducao

Esse texto comecou a ser pensado a partir de um desafio proposto pelo professor Boaventura de Sousa Santos em seu grupo de estudo sobre seu artigo "Podera o direito ser emancipatorio?" e os debates dos seminarios de Globalizacao, Alternativas e a Reinvencao da Emancipacao Social, parte do programa de Doutoramento em Pos-colonialismos e Cidadania Global, do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

Mediante a conjectura global relatada no referido trabalho, de regresso as complexificacoes das perguntas simples, foi-nos posta pelo professor a seguinte duvida: podera o direito ter sido emancipatorio, mesmo no contexto escravista? Para tentar induzir um caminho a possiveis respostas para tal questionamento, passou-se por uma reflexao ampla sobre as categoriais de emancipacao social, direito, escravismo e pos-colonialismos. Para tanto, procuramos responder a pergunta sob o vies da interdisciplinaridade entre sociologia, ciencia politica, historia e do direito.

Metodologicamente, tal exercicio consiste em trazer novas problematizacoes a partir das diversas perspectivas de analise. O exercicio de interdisciplinaridade sugerido neste ensaio nao passa por uma instrumentalizacao de uma ciencia sobre outra, mas de tentar promover um dialogo sobre diferentes perspectivas de formacao academica entre a tematica proposta pelos autores. Temos, entretanto, para evitar uma miscelanea teorico-metodologica, o cuidado de nos nortearmos por aquilo que temos de comum em nossa formacao academica: as teorias pos-coloniais. Como afirmam Santos e Hall, pos-colonialismo refere-se ao mesmo tempo a uma dinamica temporal e uma perspectiva teorica. Enquanto dinamica temporal envolve necessariamente a sobrevivencia de relacoes culturais, sociais, politicas e economicas apos a independencia politica. Enquanto perspectiva teorica reflete-se principalmente sobre a critica a epistemologia ocidental, a construcao epistemologica do outro a sombra de um "Eu" (europeu, ocidental, branco, ocidental, heterossexual e cristao) e a ambivalencia do discurso colonial (Santos, 2003 e 2004, Hall, 2011, Bhabha, 1999, Said, 2004). Na America Latina, essa perspectiva teorica e temporal e tratada a partir da expressao "colonialidade do poder" de Anibal Quijano (2009).

Conscientes de que nao esgotamos o debate proposto, optamos por contextualizar os questionamentos levantados na tematica do escravismo e das herancas da escravidao na sociedade brasileira. O primeiro alerta para o qual chamamos a atencao e que uma visao simplificada do que foi o escravismo brasileiro tende a obscurecer as formas de sobrevivencias de tal instituicao em contextos pos-abolicionistas. Ao tratar o sistema escravista nacional somente sob os pontos de vista macro-estrutural e juridico, deparamo-nos com uma linha evolutiva problematica, que mitifica as conquistas sociais da Lei Aurea de 1888, e de outros dispositivos criados nesse periodo historico.

Evidentemente que as leis abolicionistas, assim como diversas iniciativas e acoes de grupos abolicionistas, magistrados, politicos liberais e conservadores, e negros escravos, libertos e livres que participaram da gestacao do fim do escravismo formal, possuiram, em si, um carater emancipatorio. Entretanto, as malhas sociais e politicas em que se envolviam muitos desses grupos foram, de forma voluntaria ou involuntariamente, incapazes de eliminar o escravismo em sua praxis mais ampla, restringindo a resolucao da questao escrava a uma questao legal.

A partir de sua conjuntura macro-economica e juridica, e comum se tratar as leis abolicionistas numa dimensao gradual e evolutiva, marcando uma epoca de transicao entre uma sociedade escravista monarquica e outra capitalista e republicana.

Todavia, como afirma Quijano,

(...) os processos historicos de mudanca nao consistem, nao podem consistir, na transformacao de uma totalidade historicamente homogenea noutra equivalente, seja gradual e continuamente, ou por saltos e rupturas. Se assim fosse, a mudanca implicaria a saida completa do cenario historico de uma totalidade com todos os seus componentes, para que outra derivada dela ocupe o seu lugar (2009:86). Os processos historicos de formacao das instituicoes modernas no Brasil --como a republica e a democracia--sao identificados mediante uma ambiguidade entre, a sua carga simbolica emancipatoria e o seu carater de colonialidade, sobretudo a adaptacao, na medida do possivel, por parte das elites politicas e economicas, de instituicoes com roupagem liberal a uma sociedade de costumes escravocratas.

Diante disto faz-se necessario procurarmos assumir o risco de nos aventurarmos num recorte temporal mais amplo, que busque analisar em que medida o direito agiu para a emancipacao social no contexto de transicao do escravismo ao pos-escravismo. Procura-se compreender as relacoes de heranca do escravismo brasileiro em sua esfera cultural, politico-economica e juridica. Enfocando as relacoes sociais em torno do direito, busca-se avaliar as possibilidades e os limites de emancipacao social para a populacao negra. Sendo assim, compreendemos que a emancipacao agrega um processo contrahegemonico que implica uma mudanca social, politica, cultural ou economica em beneficio de um ou mais grupos subalternizados.

Defendemos neste texto a ideia de que o direito de Estado contribuiu para a configuracao de um pos-escravismo na sociedade brasileira. Essa estrategia hegemonica no direito nao conseguiu, entretanto, impedir a ocorrencia de estrategias de mobilizacoes juridicas emancipatorias por acoes sociais contra-hegemonicas e agentes sociais subalternizados. Estes fenomenos emancipatorios possuiram uma variabilidade multipla e puderam tanto ser observados em formato de lei como na jurisprudencia ou noutras praticas juridicas e sociais. Fazemos ressaltar, contudo, que mesmo havendo tais brechas de utilizacao emancipatoria do direito em determinados, mas nao poucos, episodios, tambem havia um limite estrutural--ja que as mesmas nao foram suficientes para mudancas estruturais que, por exemplo, conseguissem alcancar a integracao mais justa do negro na sociedade brasileira. E esse limite e tambem uma caracteristica da pratica juridica hegemonica, ja que a emancipacao social nao se consolida somente atraves do direito, mas de uma mudanca socio-politico-cultural possibilitada somente pela mobilizacao popular (Santos, 2003). Ha que se reconhecer, portanto, que nos dias atuais, o negro brasileiro possui maior integracao social nos campos legal, cultural e economico, mas quando falamos em cidadania enquanto uma real possibilidade de construcao da sociedade, ainda o vemos longe de uma inclusao digna e efetiva.

  1. Direito e Emancipacao Social: o outro lado da Linha Abissal

    Em seu ensaio sobre as possiveis relacoes entre direito e a emancipacao social, Boaventura de Sousa Santos (2003) analisa como o Estado Liberal, ao se constituir a unica fonte possivel de producao juridica, acabou por reduzir a emancipacao social aos limites de uma autocritica dos modos institucionalizados de regulacao social.

    Traduzida atraves da retorica do contrato social, a emancipacao social passou a se dar dentro da esfera de atuacao estatal pelo que o autor chama de estrategias demo-liberais ou demo-socialistas. Fora do ambito estatal ela se manifestou por alternativas diversas, pautadas por um rompimento com o regime politico ligado ao capitalismo liberal vigente tendo em vista uma revolucao de carater socialista.

    Surgida como uma opcao ao absolutismo estatal, a ideia do contrato social emerge como uma alternativa racionalista tendo, em vista uma ordenacao social e politica cientifica moderna (Santos, 2007: 129). Dentre os filosofos aos quais se atribui a ideia central do conceito, especificamente Locke, Hobbes e Rousseau, destacamos este ultimo como exemplar na medida em que representa em sua teoria o principio democratico inerente a concepcao contemporanea do conceito. Buscando o maximo de liberdade possivel, Rousseau estabelece como premissa fundamental a vontade geral como fundamentacao da organizacao politica em contraponto a vontade individual, que devera a essa se submeter. Traduzindo-se este principio naquilo que Santos identifica como "regime geral de valores", caracteristica pautada nas ideias de concretizacao de um bem comum e da aludida vontade geral, vindo a redundar numa sociedade concebida como "universo de acoes autonomas e contratuais entre sujeitos livres e iguais" (2003: 13).

    Imbuido da retorica contratualista, o Estado, por meio da atribuicao de legalidade/ilegalidade, passou a controlar as vias emancipatorias autorizadas face os interesses politicos dominantes. Processo que levou a que ao inves de representar uma contraposicao a regulacao social a emancipacao passasse a ser "o nome da regulacao social no processo de auto-revisao ou de auto-transformacao" (Santos, 2003: 4).

    Ocorre que tal dinamica social entre forcas voltadas a regulacao e outras a emancipacao nao se verificou nos territorios coloniais, estando a modernidade nestes espacos caracterizada pela dicotomia entre apropriacao e violencia. Segundo Santos (2009), as distincoes modernas visiveis as quais se atribui hegemonicamente universalidade se encontram alicercadas na invisibilizacao de outras, presentes do outro lado da linha abissal, nomeadamente nos territorios coloniais. Assim, a citada diferenciacao entre legal e ilegal existe de um lado da linha na medida em que inexiste no outro.

    Esta dicotomia central deixa de fora todo um territorio social onde ela seria impensavel como principio organizador, isto e, o territorio sem lei, fora da lei, o territorio do a-legal, ou mesmo do legal e ilegal de acordo com direitos nao oficialmente reconhecidos. Assim, a linha abissal invisivel que separa o dominio do nao-direito fundamenta a dicotomia visivel entre o legal e o ilegal que deste lado da linha organiza o dominio do direito (Santos, 2009: 264). Ou seja, enquanto nas metropoles evoluia...

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