Pressupostos filosóficos da hermêutica diatópica proposta por Raimon Panikkar

AutorLivio Osvaldo Arenhart
CargoDoutor em Filosofia. Professor da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões. Membro do Grupo de Pesquisa no CNPq “Novos Direitos na Sociedade Globalizada, sob liderança da Profa. Dra. Salete Oro Boff.
Páginas81-94

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1 Introdução

Vários grupos de pesquisa aproximam a questão dos Direitos Humanos com o multiculturalismo crítico. Dentre esses grupos, o de Boaventura de Souza Santos e grupo francês Droits de l’Homme et Dialogue Interculturel2, por exemplo, reportam-se à hermenêutica diatópica e ao conceito de equivalentes homeomórficos, propostos por Raimon Panikkar. Supondo que o emprego desses conceitos não se reduza a uma simples técnica de interpretação, convém compreender o quadro de categorias filosóficas que justifica essa proposta. Com efeito, esse marco teórico é produto de uma determinada filosofia hermenêutica, cujo foco principal é o diálogo intercultural. Raimon Panikkar é um dos expoentes dessa corrente filosófica, que se autodenomina “filosofia intercultural”.

O objetivo deste artigo é expor as distinções conceptuais de fundo pelas quais se articula o pensamento de Panikkar e cuja compreensão facilita a incursão em sua obra. A relevância desta consiste no fato de chamar a atenção de seus leitores para o desarmamento cultural e o diálogo intercultural e inter-religioso, comoPage 82condições necessárias para a solução dos grandes problemas da humanidade e para a urgente construção de um mundo de paz.

Pretende-se aqui tratar não de algum tema específico pensado por Panikkar, mas dos conceitos-ferramenta por mediação dos quais esse autor tem elaborado os seus textos instigantes, conceitos esses que definem menos o conteúdo de pensamento que a forma de pensar, menos o “conteúdo” pensado que o “método” de pensamento, menos as idéias sobre a realidade que os pressupostos filosóficos, notadamente, os antropológicos e epistemológicos.

Presume-se que, em nosso mundo globalizado e multicultural, as questões do diálogo intercultural e da hermenêutica diatópica sejam relevantes para os pesquisadores e operadores do Direito, particularmente os que se ocupam dos Direitos Culturais.

2 Símbolo e conceito, mythos e logos

Panikkar distingue a operação de “pensar com símbolos” da operação de “pensar com conceitos”; distingue o “conhecimento simbólico” do “conhecimento conceitual”, o processo cognoscitivo da simbolização do da conceptualização (2006, p. 44-45. 89)3. Segundo ele, em nossa fala e escrita, fazemos uso de “termos conceptuais” e de “símbolos polissêmicos, capazes de expressar as experiências coletivas de um povo” (Id. p. 59)4.

Para exemplificar essa distinção, cabe aqui ver como ela se aplica à expressão “Direitos Humanos”. No entender de Panikkar, trata-se de uma expressão simbólica, pois diferentemente de um conceito, os Direitos Humanos “são polivalentes e polissêmicos por natureza” (Panikkar, 2004, p. 226). Eles são um símbolo de validade universal em virtude de se basearem em outro símbolo universal, o “simples fato de ter nascido” entre os seres humanos, como ser humano (Id. p. 227).

Para dialogar com as outras culturas, que é o desafio máximo nestes tempos de globalizações5, os conceitos produzidos no interior de nossa cultura não são suficientes. Entre pessoas de culturas distintas, nem sempre é possível uma “comunhão conceptual”. “Por este motivo, é de capital importância o pensamentoPage 83simbólico, o qual não é objetivo nem subjetivo, mas essencialmente dialogal” (Panikkar, 2006, p. 44). Entre falantes de culturas diferentes, quando se trata de explicar um ao outro, de forma inteligível, os respectivos pontos de vista, a “compreensão recíproca não pode ser conceptual, mas simbólica, o que implica uma certa participação num universo simbólico que não é exclusivamente epistemológico (Id. p. 46)6. Excelente em seu âmbito próprio, o pensamento científico “causa destruição do universo simbólico das outras culturas quando se extrapola” (Id. p. 99)7.

Paralela e correspondente à distinção entre “conceito” e “símbolo” é a distinção entre logos e mythos. Este último é veiculado pelo símbolo e não pelo conceito. “O que nos abre ao mythos é a consciência simbólica” (Id. p. 79). A consciência simbólica ou mítica permite-nos “ver” as coisas do nosso mundo prático, numa dimensão de abertura prévia ao entendimento lógico, pelo qual podemos “observá-las” e analisá-las. (Id. p. 80).

Em contraste com a linguagem lógica, o mythos caracteriza-se pela polissemia, admitindo uma pluralidade de interpretações, inclusive, interpretações doutrinariamente incompatíveis (Id. p. 111. 162). Mas isso não significa que os mitos aceitem ser manejados arbitrariamente. O mythos é “um fator constitutivo da realidade humana” (Id. p. 130). Uma mudança de mythos implica “uma transformação de nossa visão da realidade e não só a reforma de alguma de nossas idéias”, como é o caso quando, com relativa facilidade, mudamos de logos (Id. p. 87. 110). Isso, em função de que “eles se apresentam por si mesmos” e nós os aceitamos como evidentes (Id. p. 79. 111)8. Cremos neles de maneira tão natural que os damos por suposto e que, para descobri-los, necessitamos de interlocutores de outra cultura (Id. p. 87. 162).

Eles constituem a dimensão “em que se funda a inteligibilidade em cada situação determinada” (Id. p. 162). São aquilo “que nos dá a base em que a questão enquanto questão tem sentido”, que nos oferece “o horizonte de inteligibilidade no qual temos necessidade de colocar não importa qual idéia, convicção ou ato de consciência para que possa ser captado pelo nosso espírito” (2000, § 50; 2006, p. 36)9. Constituindo “o horizonte que torna possível a definição das coisas, os mitos estão além de toda definição e não se prestam a nenhuma fundamentação ulterior”Page 84(2006, p. 162). O logos filosófico e/ou científico nunca está em condições de operar sem pressuposto algum. Por isso, necessariamente, “toda des-mito-logização carrega consigo uma re-mitização” (2000, §§ 42 e 105)10. Pois o mito é o “lugar da crença em algo..., ainda que depois tenha que intervir o logos para discernir o valor dos respectivos símbolos” (2006, p. 130).

Mesmo distinguindo-se do logos, de modo que não pode ser identificado com ele, o mythos “não pode ser separado” do logos (Id. p. 111. 162; 2000, § 105). O mito é palavra, é narrativa; embora irredutível ao logos, não é incompatível com ele (2000, § 138). Como escreveu E. Carneiro Leão, “ho mythos exprime o destino que se lega historicamente à existência. Por isso, em sua originalidade, todo mito é uma etiologia. A vivência de uma estruturação destinada”; apenas de modo derivado, o mito é “um relato, a expressão daquela vivência” (1977, p. 196)11. Portanto, podemse distinguir o mythos e o logos, “mas não os separar, pois um nutre o outro, e toda cultura humana é uma textura de mito e logos [...] eles são como dois fios que se interlaçam para tecer a Realidade” (Panikkar apud Eberhard, 2004, p. 176). Aliás, o mythos, caso não compensado pelo logos do diálogo intercultural, “corre o risco de desembocar no fanatismo”, de resvalar facilmente para o puro e simples subjetivismo (Panikkar, 2006, p. 57. 87). Por conseguinte, a busca da comunhão no mythos não prescinde do logos (Id. p.111)

Se admitirmos que “as culturas jurídicas não são apenas da ordem do logos, mas da ordem do mythos, o que significa ser da ordem das diferenças maiores”, então os operadores e pesquisadores do Direito também não ficarão alheios a essa distinção entre mythos e logos (Eberhard, 2004, p. 175).

3 O diálogo intercultural em sentido próprio não se detém no plano do logos

Panikkar pensa as culturas a partir dos mitos, de modo que cada cultura é “uma galáxia que vive de seu próprio mythos” (2006, p. 34)12; é o “mito englobante de uma sociedade” (2006, p. 36)13. A considerar essa noção de cultura, a comunicação intercultural cumpre ser efetuada pela “comunhão do mythos”; com efeito, esta “nos permite captar o significado do que o outro diz, inclusive quando não compartilhamos seu mundo conceptual” (Id. p. 79). Para compreender outra cultura, “não é suficiente penetrar em seu logos, tem que participar também de seu mythos” (Id. p. 82). Para se obter uma certa sintonia intercultural, não basta a comunhão dePage 85idéias e sentimentos, sendo imprescindível a comunhão no mythos (Id. p. 82)14. A fecundidade do diálogo intercultural depende de ir além do simples logos, mas sem destruí-lo, para formar e estabelecer uma conexão com o mythos (Id. p. 145).

A comunhão no mythos do outro é uma “comunhão em nossa humanidade” e, por isso, “cria solidariedade”, ainda que não elimine os conflitos (Id. p. 84. 87. 163).

As fronteiras horizontais de cada cultura estão determinadas pelas culturas dos outros. Já as fronteiras verticais “provêm da própria condição humana” (Id. p. 31). Quando as fronteiras verticais de cada cultura não são levadas em consideração, o diálogo intercultural “corre grande risco de converter-se em um duelo horizontal”, não deixando outra saída que a derrota do outro (Id. p. 32). Ou seja, o diálogo deixa de ser um encontro de dois interlocutores que se escutam reciprocamente, deteriorando-se ao grau de um duelo cavalheiresco ante o tribunal da deusa razão (p. 31). Panikkar é de opinião de que a perda da fé religiosa genuína bloqueia a confiança no outro ser humano, o qual passa então a ser visto como competidor ou inimigo (Id. p. 127).

Além disso, Panikkar acredita seriamente que “religião e cultura são inseparáveis. Logo, diálogo intercultural e diálogo religioso andam juntos” (Id. p. 18). Ou seja, “dado que a alma de toda cultura é a religião, o diálogo intercultural desemboca, em última instância, em um diálogo inter-religioso” (Id. p. 36). E este tem lugar no plano místico, no plano em que “a obscuridade do mythos torna possível a luz do logos”: a mística, que não é...

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