A filosofia hermenêutica de Hans-Georg Gadamer e as escolhas orçamentárias de políticas públicas
Autor | Pedro Germano dos Anjos |
Páginas | 265-303 |
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O trabalho de Hans-Georg Gadamer1, importante hermeneuta do séc. XX, foi contribuição de grande valia para a filosofia e a hermenêutica contemporâneas, pelo que desenvolveu em relação aos aspectos da fenomenologia de Husserle principalmente da de Heide-Page 266gger, ao tempo em que colocou em termos a relatividade das possíveis interpretações sobre os textos, atuando contra o extremo positivismo e as suas verdades empíricas absolutas.
Deve-se a Gadamer a estrutura dialógica da comunicação e a compreensão do ser humano da realidade (sempre linguística) que o cerca, da qual retira ininterruptamente elementos auxiliadores da própria compreensão desta e, logo, da compreensão de si mesmo.
O fenômeno jurídico é uma realidade linguística,2 como bem expõe Von Wright, para quem a formulação da norma-prescrição em linguagem é chamada de promulgação (linguagem aqui em sentido amplo). Norma e formulação divergem.3
Cuando la norma es una prescripción, la promulgación de la norma, es decir, eldar a conocer alos sujetos dela norma su caráter, contenido, y condiciones de aplicación, es un eslabón esencialen(o parte de)elprocesso a través delcualesta norma se origina o cobra existencia(ser).[...]La ejecución verbales, además, necesaria para el establecimento de la relación entre la autoridad de la norma y el sujeto de la norma y del que hace la promesa y el que la recibe. Por la razón mencionada, las prescriciones puede decirse que dependen del lenguage4. (grifo nosso).
Assim, do processo hermenêutico referido por Gadamer, não poderia o direito fugir. Envolve-se na atividade jurídica um processo de compreensão de textos normativos, a fim de aplicá-los aos diversos setores da vida, dada que essa é a finalidade última do direito: regrar as práticas sociais, sendo ele mesmo uma das práticas sociais.5
Nessa esfera do direito, não são poucos os doutrinadores que salientam a importância da interpretação. Longe de corroborar com o conhecido brocardo ‘inPage 267 luminis cessat interpretatio’, autores como Alf Ross,6 Karl Larenz,7 Ronald Dworkin8 e Robert Alexy asseveram a sua necessidade na aplicação de todos os textos legais, unindo a essa tarefa interpretativa a tarefa argumentativa: o conceito de norma é semântico.9
Aliás, como precursor, tem-se o próprio Hans Kelsen, o qual apregoou a existência de um quadro de normas aplicáveis a ser construído pela Ciência do Direito, a partir da interpretação dos textos legais. O quadro seria um rol de possíveis normas, interpretações, diante do texto a ser aplicado.10
Mas o papel da interpretação na teoria de Kelsen não é fundante, uma vez que ele privilegia o momento da aplicação do direito como ato de vontade, em prejuízo da explicação sobre o modo de produção do ato de conhecimento, o modus da interpretação (sem deixar de ser criticado principalmente nesse ponto).
A hermenêutica filosófica de Gadamer, por outro lado, requer mais do que um papel preliminar de apenas indicação das possíveis interpretações. Requer uma posição hermenêutica criativa diante dos problemas jurídicos: o momento de aplicação.
O corte epistemológico do presente trabalho é a análise da base hermenêutica do momento da aplicação do direito, sendo feitas breves considerações sobre a aplicação das normas constitucionais concernentes às necessidades públicas, ou, mais propriamente, dos direitos sociais, os quais preconizam um papel ativo do Estado de implementação.
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O Estado é uma organização social preordenada a certos fins, e para tanto exerce atividade financeira, entendida por Aliomar Baleeiro como consistente em “obter, criar, gerir e despender o dinheiro indispensável às necessidades, cuja satisfação o Estado assumiu ou cometeu aqueloutras pessoas de direito público”.11
Refere-se o professor às necessidades públicas, cuja satisfação o Estado sempre avoca, assumindo a execução por si mesmo ou cometendo a outras pessoas de direito público (Administração Indireta). Vale observar, ademais, que, atualmente, o ordenamento jurídico permite a delegação de serviço público em que pessoas de direito privado exercem função pública.
Seguindo o raciocínio de que é impossível atender a todas as necessidades públicas existentes em uma comunidade em apenas um governo, o ordenamento jurídico-constitucional preconiza o dever do Poder Executivo em indicar as necessidades a serem satisfeitas prioritariamente.
Nesse sentido, a natureza das escolhas das necessidades públicas é política. Sobre essa natureza, escreve José Souto Maior Borges12 que:
[...] variáveis motivos políticos e que não podem ser determinados a priori comandam a atuação do Estado no sentido de promover a satisfação de certas necessidades coletivas, exercendo os governos uma série constante de opções das necessidades sociais a serem satisfeitas pela rede de serviços públicos.
Nessa esteira, também Aliomar Baleeiro:13
Determinar quais as necessidades de um grupo social a serem satisfeitas por meio do serviço público, e, portanto, pelo processo da despesa pública, ressalvada a hipótese de concessão, constitui missão dos órgãos políticos e questão essencialmente política.
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Para a escolha das necessidades, a Constituição Federal de 1988 prescreve obrigações de fazer ao Estado, como obrigações mínimas a cumprir.14 Por outro lado, a mesma Constituição regula um dos elementos da atividade financeira do Estado: o planejamento. O administrador deve proceder à realização de um orçamento, prevendo as necessidades que deseja satisfazer, especificamente (art. 165, C.F.).
O problema hermenêutico que ora se debruça é quanto à noção exata das necessidades públicas estatais impostas à Constituição. Não se sabe o limite do dever do administrador público frente aos deveres constitucionais, ou se realmente há limite (qual interpretação deve ser dada à Constituição).
Por outro lado, outro problema é tal que, sendo legítima a escolha orçamentária, até onde ela pode não ser modificada pelo administrador (mudança de interpretação). A solução a tais questionamentos será iluminada diante de algumas considerações de Hans-Georg Gadamer quanto à compreensão, analisadas a seguir.
A par de todas as considerações feitas sobre o dever ao orçamento, pode-se realizar uma comparação frutífera no âmbito teórico, mas que não deixa de ter consequências práticas relevantes com a filosofia hermenêutica de Hans Georg Gadamer.
Toda comparação teorética necessita, pois, de uma justificativa de coerência. A razão mais clara da aproximação do direito orçamentário com a teoria hermenêutica de Gadamer é, segundo preconizado neste trabalho, a historicidade da compreensão, a temporalidade do ser tal como se mostra a si mesmo (aletheia) e a estrutura compreensiva feita por Gadamer no tocante ao estágio da aplicação.
Como a coerência da comparação necessita fundamentar a base teórica para a caracterização das necessidades públicas ínsitas de um documento orçamentário e, logo, o início de um pensar sobre as relações jurídicas de direito orçamentário que se formam entre Estado e comunidade (e, na perspectiva aplicativa, incluindo-se o Poder Judiciário), mister debater aqueles pontos da filosofia hermenêutica.
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Hans-Georg Gadamer foi discípulo de Martin Heidegger, pensador alemão, o qual por sua vez teve como professor Edmund Husserl. Heidegger, a partir de estudos críticos ao idealismo alemão e sob os auspícios do pensamento fenomenológico de Husserl, inaugurou uma nova vertente do pensamento filosófico: a fenomenologia heideggeriana.
Diz-se “heideggeriana”, tanto porque a fenomenologia de Martin Heidegger possui conceitos próprios e se refere ao fenomenológico de maneira muito peculiar, quanto pela sua cisão com o pensamento de seu próprio professor, Husserl, de quem foi assaz crítico, posteriormente ao período acadêmico.
A fenomenologia começa em Husserl, no século XIX, por meio das Investigações Lógicas (1900-1901), cujo objetivo era colocar a fenomenologia como busca da ‘lógica pura’, de um lado na descrição da generalidade da essência, de outro lado na revelação das fontes dos conceitos fundamentais (atos conscientes).
O pensamento pioneiro de Husserl, no entanto, possui dissonância interna sobre o papel do psicologismo em relação à lógica e uma origem incoerentemente metafísica (para quem propugnava criticar a tradição metafísica da ciência) do embasamento transcendental que Husserl chegou a apregoar ao mundo da vida.
O esforço dele em construir uma fenomenologia transcendental para afastar da filosofia as tentativas positivistas psicologistas, historicistas e materialistas era visto como uma recaída no idealismo kantiano, ao tempo em que as suas preferências pelas análises da subjetividade eram vistas como um risco à objetividade científica.15
Essas incongruências originaram uma série de escolas filosóficas que se posicionavam de forma diferente ante a teoria fenomenológica de Husserl. Ernildo Stein as agrupou em cinco principais, sendo que Heidegger exerceu influênciaPage 271 direta em pelo menos duas delas: a fenomenologia transcendental, na Universidade de Freiburg, orientando de qualquer modo a fenomenologia hermenêutica da Universidade de Marburgo, com seus seguidores Gadamer e Kuhn, dentre outros.16
No que toca às considerações deste trabalho, vale expor alguns pontos do entendimento de Heidegger que influenciaram sobremaneira...
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