Feminists and the resignification of law: challenges for the approval of the Maria da Penha Law/Feministas ressignificando o direito: desafios para aprovacao da Lei Maria da Penha.

AutorOliveira, Tatyane Guimaraes

Introducao

A luta das mulheres (1) contra a violencia domestica e familiar tem sido pautada por profundas criticas e reflexoes sobre o direito (2) e as instituicoes juridicas. O pensamento critico feminista vem rompendo com o seu foco androcentrico e, a partir da perspectiva das mulheres, tem desafiado suas estruturas rigidas e conservadoras pautadas pelas ideias de neutralidade e universalidade que tem legitimado a opressao de genero. Essa insurgencia (3) feminista e um largo passo no sentido de incluir as mulheres no campo da cidadania, pois obriga o poder publico a reconhecer as especificidades que marcam a vida das mulheres e, em especial, a se colocar como o locus para a sua protecao.

O reconhecimento dos direitos humanos das mulheres, assim como a estruturacao de politicas publicas para sua garantia, nao tem significado uma estabilidade nas relacoes com o Estado. Desde as primeiras conquistas no periodo de redemocratizacao ate as recentes legislacoes aprovadas, o quadro sempre foi de tensoes constantes, em menor ou maior grau, a depender da conjuntura politica, social e economica. As violacoes de direitos humanos denunciadas pelos movimentos feministas e de mulheres se dao em maior proporcao do que as respostas positivas do Estado diante de suas reivindicacoes e, muitas vezes, este tem legitimado essas violacoes atraves da reproducao das mesmas crencas e praticas que definem os papeis sociais que tem moldado as relacoes de desigualdade entre homens e mulheres.

No Brasil, por exemplo, ate o ano de 1962 (4) as mulheres eram consideradas relativamente incapazes, o que implicava diretamente na limitacao do exercicio do direito ao trabalho, ao sustento digno e a livre maternidade. A autonomia financeira, a guarda e a seguranca das filhas e filhos, assim como a liberdade, sao questoes cruciais nao so para a quebra do ciclo de violencia domestica e familiar, como tambem para a sua prevencao e, na medida em que as mulheres estavam expressamente impedidas de usufruir plenamente desses direitos, estavam oficialmente subjugadas a esse tipo de violencia. Logo, ao limitar a capacidade da mulher, o direito autorizava o controle e a subordinacao das mulheres aos homens, sobretudo aos pais e aos maridos, garantido expressamente o direito sexual dos homens sobre as mulheres, como ensina Pateman (1993).

Apesar das pressoes dos movimentos sociais e das mudancas no campo legislativo no Brasil em relacao aos direitos humanos das mulheres, as questoes acima ainda se reproduzem no cotidiano do sistema de justica, pois, nao obstante o reconhecimento constitucional da igualdade entre homens e mulheres, as crencas e praticas patriarcais ainda permeiam as respostas do Estado diante do fenomeno da violencia domestica e familiar, num esforco politico cotidiano de retroceder nos avancos que a luta dos movimentos feministas e de mulheres proporcionou.

E nesse campo que o tema da violencia praticada por parceiros intimos e as propostas feministas de intervencao para sua contencao surgem. Como ja mencionado, o tema nao e novo para o feminismo e surge da necessidade de estancar interpretacoes e praticas juridicas (e nao juridicas) de naturalizacao da violencia conjugal. Em nossa tradicao juridico-penal, ate muito recentemente, aceitava-se a tese da legitima defesa da honra masculina para absolver homens que matavam mulheres em suposto adulterio; o estupro para ser punivel exigia uma determinada condicao da vitima (honesta, de boa familia, etc), cuja punibilidade era extinta se a vitima casasse com o estuprador; a violencia contra mulheres era considerada delito de menor potencial ofensivo, isto e, teses, categorias e interpretacoes juridicas que criavam sujeitos de direito distintos, conceitos juridicos e campos que limitavam a intervencao na "vida privada" e nos "costumes". Somente com a acao feminista e que essas interpretacoes passam a ser questionadas e a intervencao do estado no ambito da familia para proteger as mulheres passa a ser uma exigencia" (CAMPOS, 2012, p. 36-37).

As estrategias dos movimento feministas e de mulheres no ambito do reconhecimento dos direitos se deram no sentido de visibilizar que o Estado e suas instituicoes estao permeadas por ideologias e praticas patriarcais, tao quanto estao as relacoes na sociedade (SAFFIOTI, 2015; PATEMAN, 1993; STEARNS, 2007; LERNER, 1990). Demandar a garantia de direitos pelo Estado, a partir do reconhecimento deste como locus de (re)producao de praticas patriarcais, significa desconstruir as premissas que constituem a sua autoridade e poder na funcao de resguardar os privilegios de alguns grupos, e esta pode ser apontada como uma das razoes pelas quais este vem traduzindo as demandas feministas, ao inves de absorve-las, como propoe a analise de Santos (2010), Alvarez, Dagnino e Escobar (2000). As autoras explicam que o Estado vem absorvendo seletivamente essas demandas, ou seja, atendendo aos aspectos mais "digeriveis" dos discursos e agendas feministas, e que esta absorcao parcial e visivel diante das resistencias que as instituicoes juridicas e o Estado tem revelado no que se refere a garantia dos direitos das mulheres.

  1. Violencia domestica e familiar contra as mulheres: peculiaridades generalizadas pelo Direito

    O debate em torno da relacao entre genero e direito envolve necessariamente as reflexoes que as feministas tem desenvolvido acerca dos espacos publico e privado. A relacao entre estes e central para a construcao das teorias liberais, especialmente no sentido de invisibilizar a violencia contra a mulher no auge da defesa de uma "nova era" de liberdade, igualdade e fraternidade (PATEMAN, 1993), assim como ainda e crucial para as questoes em torno da efetivacao da Lei Maria da Penha, o insistente aumento dos casos de violencia domestica e familiar no Brasil e a legitimacao social desta.

    O publico e o privado, nesse sentido, sao apresentados como dicotomicos e essa dicotomia e estrategica para perpetuar a opressao contra as mulheres ao isolar o espaco privado, assim como e imprescindivel para tornar demasiadamente abstratas as analises sobre a atuacao do Estado enquanto maquinario do patriarcado, do racismo e do capitalismo, ignorando o seu papel central na sustentacao dessas matrizes de opressao. Nesse sentido, Pateman (1993, p. 16-17) explica que as ideias relacionadas as teorias contratualistas se construiram em nocoes que defendem que "a sociedade civil e criada pelo contrato de modo que contrato e patriarcado parecem ser irrevogavelmente contrarios". Dessa forma, garante-se que o espaco publico (re)produza a opressao de genero de forma que as praticas institucionais patriarcais nao sejam identificadas como tais.

    As reflexoes feministas, nesse sentido, tem direcionado suas criticas as teorias contratualistas e liberais que alicercam as praticas institucionais patriarcais e que (re)produzem as crencas que estimulam e legitimam as violencias cometidas contra as mulheres, assim como as respostas do Estado diante destas (5). O reconhecimento de direitos, pautados a partir da igualdade e da liberdade, tornaram-se estrategias importantes de luta, em especial na America Latina. Todavia, marcadas pelas tensoes que constituem seu proprio movimento, as feministas utilizaram-se das estrategias, sem abrir mao das reflexoes criticas sobre o Estado e a interseccionalidade (6) das opressoes, sobretudo em face do contexto ditatorial em que o movimento se forja.

    A heranca colonial que marca as instituicoes e o Direito no Brasil e a pactuacao que caracterizou a transicao da ditadura para um Estado Democratico nos anos de 1970 e 1980, vem reforcando historica, politica e juridicamente crencas essenciais para a manutencao da opressao das mulheres, que so nao obtiveram maior impacto face as resistencias e incidencias politicas dos movimentos sociais.

    A naturalizacao das diferencas construidas socialmente entre homens e mulheres e fundamental para essa atuacao supostamente neutra do direito. Ao propor um tratamento formalmente igualitario para as mulheres, o Estado o faz partindo de diferencas que se materializam em desigualdades e em desvantagens para as mulheres e, dessa forma, a igualdade materializa-se como injustica. Na analise de Maria Salete da Silva (2016, p. 09), o direito cumpriu (e ainda cumpre) papel importante como mantenedor "do status quo masculino e reprodutor de um sistema de subjugacao da mulher e de outras categorias historicamente oprimidas, exploradas e excluidas na dinamica social".

    Nesse sentido, Olsen (1990) destaca que a dicotomia entre os espacos privado e publico vem sendo reforcada pelo direito, sobretudo por leis que regulam as relacoes familiares. A autora mostra que o surgimento do pensamento liberal classico estruturou nossas relacoes em torno de dualismos como, por exemplo, racional/irracional, ativo/passivo, pensamento/sentimento, razao/emocao, cultura/natureza, poder/sensibilidade, objetivo/subjetivo e universal/particular, e que estes sao sexualizados (uma metade masculina e outra feminina), hierarquizados (o que e atribuido ao masculino e valorizado, enquanto o feminino e considerado inferior) e que o direito se identifica com o masculino.

    Nao coincidentemente, sao as caracteristicas consideradas masculinas que sao apontadas como neutras e como inerentes ao direito: racionalidade, pensamento, poder, universalidade, cultura e objetividade. E partir de uma leitura critica sobre a neutralidade do direito enquanto construcao androcentrica, que as reivindicacoes das mulheres por um tratamento diferenciado se forjam; partem da necessidade do reconhecimento de que as relacoes entre homens e mulheres se dao a partir da desigualdade no exercicio do poder e de que essas diferencas sao socialmente construidas.

  2. Trajetorias de lutas politicas dos movimentos feministas e de mulheres no Brasil: construindo caminhos para o combate a violencia domestica e familiar

    As conquistas dos movimentos feministas e de mulheres no Brasil devem ser contextualizadas...

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