Famílias Paralelas ao Casamento: Uma Análise do Reconhecimento e Direito à Triação dos Bens

AutorMayara Cristine do Nascimento - Geovana da Conceição
CargoGraduada em Direito (Universidade do Vale do Itajaí/SC). Advogada - Advogada. Mestre em Gestão de Políticas Públicas
Páginas30-37

Page 30

Introdução

Descortinam-se, cada vez mais, os múltiplos arranjos familiares que, muito embora existam há séculos, à luz do atual direito contemporâneo, encontraram maior coragem de pleitear o devido re-conhecimento perante o Estado e a sociedade.

Os modelos de família vão muito além daqueles recepciona-dos pela Constituição Federal de 1988: o casamento, a união es-tável e a família monoparental. Hoje se fala em famílias poliafeti-vas, multiparentais, recompostas, eudemonistas, solidárias, infor-mais, paralelas e outras.

A justificativa para a velocidade com que surgem tantos novos mo-delos familiares é, antes de tudo, a frequente e incessante busca pela felicidade de cada ser humano.

Infelizmente, a legislação bra-sileira tem se mostrado incapaz de acompanhar estas evoluções, submetendo a sociedade a padrões taxativos, como o da monogamia, em sobreposição a princípios como o da igualdade, da dignidade da pessoa humana e valores como o da proteção ao ser humano, principalmente no que diz respeito à autonomia da vontade, relativa à escolha do arranjo familiar.

Frente a este cenário e em atenção, o objeto desta pesquisa é estudar o instituto das famílias simultâneas, e o objetivo é investigar o decorrente direito à triação (partilha tripla) dos bens adquiridos na sua vigência.

Este artigo parte do seguinte problema: a família paralela ao ca-samento tem direito à partilha dos bens?

Para responder ao problema, buscar-se-á compreender, no pri-meiro capítulo, o surgimento e a evolução histórica da família, identificando sua conceituação atual. Já no segundo capítulo, estudar-se-á as espécies de família regulamen-tadas pela Constituição Federal e novas modalidades, dando especial atenção à família paralela ou simultânea. E, por último, no terceiro capítulo, investigar-se-á o reconheci-mento da família paralela e o direito da concubina a participar da triação dos bens.

O tema justifica-se em razão da grande demanda atual. O número de famílias paralelas ao casamento no Brasil tem aumentado significativamente na última década. Tal fato, inclusive, já chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), que, atualmente, está na iminência de julgar ações que versam sobre o reconhecimento de uniões estáveis paralelas ao casamento1.

Registra-se que para a produção deste artigo, utiliza-se de pesquisas doutrinárias e jurisprudenciais do

Page 31

Supremo Tribunal Federal, Supe-rior Tribunal de Justiça, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e Tri-bunal de Justiça de Minas Gerais.

O método da pesquisa é o indu-tivo e as técnicas utilizadas foram a do referente, da revisão bibliográfica e do fichamento de leituras.

1. Família: breve evolução histórica e conceituação atual

A origem da família nos remete, obrigatoriamente, a uma retros-pectiva histórica à própria origem do homem, pois, muito embora seu surgimento seja objeto de constan-tes discussões entre doutrinadores, historiadores, sociólogos e estudiosos, é fora de dúvida que o ser humano, desde a sua concepção, busca um vínculo afetivo2.

Maria Berenice Dias3 explica: "Vínculos afetivos não são uma prerrogativa da espécie humana. O acasalamento sempre existiu entre os seres vivos, seja em busca da perpetuação da espécie, seja pela verdadeira aversão a solidão."

Quanto à sua forma e organiza-ção, Rodrigo da Cunha Pereira4 recorda:

Em algumas tribos e em variados lugares, elas se apresentam de forma poligâmica ou monogâmica, patriar-cal ou matrilinear. Se no estado de natureza ou no estado de cultura, em qualquer tempo ou espaço, ela se apre-senta sempre como um grupo natural de indivíduos unidos por uma dupla relação biológica: por um lado a geração, que dá os componentes do grupo; por outro, as condições de meio, que postulam o desenvolvimento dos mais novos, enquanto os adultos garantem a reprodução e asseguram a manutenção do grupo.

Abordando sua evolução, no curso da história, o homem, em suas relações familiares, teria marchado para relações afetivas individuais, com exclusividade, motivado pela forte infiuência que a religião detinha na época, o que levou ao surgimento da relação monogâmica5.

A família monogâmica nasceu baseada no predomínio do homem, e com a finalidade expressa de procriar filhos, marcada pela solidez dos laços familiares6.

Acentua Friedrich Engels7:

"A monogamia baseia-se no predomínio do homem; sua finalidade expressa é a de procriar filhos cuja paternidade seja indiscutível; e exige-se essa paternidade indiscutível porque os filhos, na qualidade de herdeiros diretos, entrarão um dia na posse dos bens de seu pai."

Posteriormente, com a revolução industrial e a consequente in-dustrialização, a família perde sua característica de produção, tornando-se uma instituição na qual mais se desenvolvem os valores morais, afetivos, espirituais e de assistên-cia8.

Desde a colonização até meados do século XX, prevaleceu o modelo romano de família, o pater famílias, no qual a família era colocada sob o poder familiar de um único chefe9. O pater famílias exercia também poder em relação a todos os integrantes daquele organismo social: esposa, ? lhos, netos, bisnetos e seus respectivos bens, o que o colocava em posição de notável grandeza10.

O que caracterizava a família patriarcal era justamente a organização de certo número de indivíduos, livres e não livres, numa famí-lia submetida ao poder paterno de seu chefe, cujos traços essenciais são a incorporação dos escravos e o domínio do poder paterno11.

A severidade destas regras foi sendo atenuada com o passar dos anos na medida em que foi se crian-do patrimônio independente para os filhos e, a partir do século IV, com o Imperador Constantino, instalou-se no direito romano a concepção cristã e a preocupação com as questões morais, restringindo progressivamente a autoridade do homem, dando-se maior autonomia à mulher e aos filhos12.

No entender de Arnaldo Rizzardo13: "É fora de dúvida que o nosso direito de família teve ampla infiuência do direito canônico, o que se justifica pela própria tradição do povo brasileiro."

No Brasil, o direito de família sempre foi refiexo dos modelos sociais, morais e religiosos predomi-nantes na sociedade14.

Foi através do Código Civil de 191615 que a família brasileira, constituída exclusivamente pelo casamento, recebeu regulamenta-ção.

Com o passar do tempo, as inúmeras uniões mantidas fora do casamento, sem previsão legal e até então tidas como famílias ilegítimas, passaram a exigir do legislador uma posição para o reconhecimento legal da sua existência e direitos decorrentes.

Paulo Lôbo16 destaca:

"No plano constitucional, o Estado, antes ausente, passou a se interes-sar de forma clara pelas relações de família, em suas variáveis manifesta-ções sociais. Daí a progressiva tutela constitucional, ampliando o âmbito dos interesses protegidos, definindo modelos, nem sempre acompanhados pela rápida evolução social, a qual engendra novos valores e tendências que se concretizam a despeito da lei."

Então, para Maria Berenice Dias17, a Constituição Federal de 198818 "instaurou a igualdade en-tre o homem e a mulher e esgarçou o conceito de família, passando a proteger de forma igualitária todos os seus membros".

Segundo Elpídio Donizete19,

"deu status de entidades familiares aos núcleos estáveis formados por um homem e uma mulher - conhe-cidos como união estável -, bem como aos núcleos formados entre

Page 32

um dos pais e seus filhos - as famílias monoparentais".

Desta forma, legalmente falan-do, de acordo com o art. 226 da Constituição Federal, § 1º ao 4º, a família se estrutura pelo casamen-to civil, mas o Estado se obriga a respeitar a formação de família concebida pela união estável entre homem e mulher e a comunidade formada por qualquer um dos pais e seus descendentes.

Cumpre consignar que o Su-premo Tribunal Federal, em 5 de maio de 2011, reconheceu a união estável homoafetiva20 e em maio de 2013 o Conselho Nacional da Justiça aprovou a Resolução 17521, por força da qual os cartórios de todo o país ficaram proibidos de recusar a celebração de casamen-tos civis de casais homoafetivos ou deixar de converter em casamento a união estável homoafetiva.

Nos dizeres de Arnaldo Rizzar-do22:

Afastou-se qualquer discriminação das pessoas em função do sexo, ou a discriminação no tratamento ju-rídico do marido e da mulher (art. 5º, inc. I). Não mais se admitem funções diferenciadas no interior da família, como aqueles conceitos que atribuíam ao homem a che? a da sociedade conjugal e à mulher o comando do governo doméstico.

Desta forma, a Constituição Federal de 1988 inseriu valores à família, a qual passou a ter vín-culos antes não reconhecidos, a exemplo da afetividade, solidariedade e liberdade entre os mem-bros do grupo.

Sobre as mudanças trazidas pelo Código Civil de 200223, calha destacar as lições de Maria Bereni-ce Dias24:

"O Código Civil procurou atuali-zar os aspectos essenciais do direito de família. Incorporou as mudanças legislativas que haviam ocorrido por meio de legislação esparsa, apesar de ter preservado a estrutura do Código anterior. Mas não deu o passo mais ousado, nem mesmo em direção aos te-mas constitucionalmente consagrados, ou seja, operar a subsunção, à moldura da norma civil, de construções familiares existentes desde sempre, em-bora completamente ignoradas pelo legislador infraconstitucional."

Maria Helena Diniz25 aponta que: "Deve-se vislumbrar na família uma possibilidade de convi-vência, marcada pelo afeto e pelo amor, fundada não apenas no casamento, mas também no companheirismo, na adoção e na monoparentalidade."

Ampliando um pouco mais o conceito de família, Arnaldo Ri-zzardo26 leciona:

No...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT