Extorsão

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas551-572

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15.1. Roubo e extorsão: diferença

Roubo, delito emoldurado no art. 157 do CP, e extorsão, crime com figurino típico no artigo 158 do mesmo diploma, são crimes que estreitam seus contornos e apresentam pontos de contato. Exatamente porque se assemelham em diversas características, esses delitos ensejam terreno pedregoso e escarpado naquilo que tange a distinguir um modelo típico do outro.

Tênue e sutil é a diferença que se estabelece entre os componentes típicos do crime de roubo e do delito de extorsão, pois constituem figuras criminosas afins. Nos dois casos o agente revela propósito voltado ao assenhoreamento ilícito de valores e emprega, para a consecução desse desiderato, a vis compulsiva (grave ameaça) ou corporalis (violência) a fim de submeter ou neutralizar a vontade da vítima.

Assim como furto qualificado pelo emprego de fraude e estelionato se diversificam em função da unilateralidade do primeiro e da bilateralidade exigível no último (v. n. 13.13), também a extorsão se distingue do roubo pela sua natureza bilateral1787, uma vez que pressupõe a colaboração da vítima para a conformação típica do crime.

Todavia, afirmar, de forma singela, que o critério distintivo entre um e outro crime concentra-se no fato de na extorsão ocorrer uma participação da vítima ao fazer alguma coisa, tolerar que se faça ou deixar de fazer algo em virtude da ameaça ou da violência sofrida1788é algo de muito vago e indefinido. Também no roubo a vítima, atemorizada, amedrontada e imobilizada ante o vaticínio e perspectiva de um mal grave, acaba tolerando que se faça algo, ou seja, permite que o sujeito ativo proceda à retirada de seus bens, ou faz ela alguma coisa, ao entregar ao agente os seus valores, como igualmente deixa de fazer algo (fugir, resistir) em razão de a sua vontade ficar subjugada pela vis compulsiva ou corporalis.

Mais falha e simplista é, ainda, a diretriz segundo a qual no roubo ocorre subtração, vale dizer, o bem é tomado da vítima pelas próprias mãos do agente (contrectatio), enquanto na extorsão verifica-se um constrangimento para ela fazer alguma coisa, de

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sorte que a entrega de seus valores ao sujeito ativo (traditio), no mesmo momento e contexto da violência ou grave ameaça, estaria a configurar a extorsão, e não o roubo1789.

Assim, conforme essa linha de raciocínio, no caso de um assalto, se o agente tira a carteira da vítima ele pratica roubo e se é a vítima quem, constrangida, a entrega ao assaltante, tem-se a extorsão. Será possível, ressalta com percuciência Weber Martins Batista, admitir que um dado tão desimportante como esse - a vítima esticar o braço e entregar a carteira ou manter-se inerte e esperar que o agente a tire de sua mão - possa alterar a natureza do crime1790Ou: no mesmo contexto da ação criminosa, haveria roubo e extorsão (em concurso formal) se o agente tomasse algumas coisas da vítima e esta lhe entregasse outras ? É um absurdo jurídico.

Da mesma forma, não parece representar baliza suficiente convergir a diversificação entre os crimes para a proximidade da lesão patrimonial com o meio coativo. Assim, para os paladinos dessa tese, no roubo o mal é iminente e o proveito contemporâneo, enquanto na extorsão o mal prometido é futuro e futura a vantagem visada (Carrara). No roubo, o agente toma a coisa ou obriga a vítima (sem opção) a entregá-la. Na extorsão, a vítima pode optar entre acatar a ordem ou oferecer resistência1791, pois sua vontade não é inteiramente anulada, uma vez que a coação é exercida à distância e a vantagem é remota, enquanto no roubo a coação é próxima e a vantagem é imediata1792.

Sob esse prisma, com a retirada do bem do poder da vítima (contrectatio) ou com a entrega procedida pelo próprio lesado (traditio), é indiferente, só há extorsão se mediar certo intervalo de tempo entre o meio coativo e o apossamento da coisa (pela entrega ou retirada), período durante o qual a vítima pode optar entre o que foi deter-minado ou arrostar as consequências de não acatar a ordem, posto esteja temporária e fisicamente afastada da ação coativa exercida. Em suma, segundo os corifeus dessa corrente de pensamento, para a conformação típica da extorsão deve haver para a vítima alguma possibilidade de opção, o que não ocorre quando, dominada pelos agentes, é obrigada a entregar-lhes as coisas exigidas1793.

A nota característica que na realidade jurídico-penal diferencia roubo e extorsão reside no fato de o primeiro crime não depender do comportamento da vítima, de todo irrelevante e dispensável para o assenhoreamento, enquanto na extorsão a cooperação voluntária da vítima é imprescindível para o sucesso e êxito da empreitada criminosa1794.

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No roubo o sujeito ativo detém o domínio do resultado, enquanto na extorsão o domínio do resultado final é da vítima1795, o que significa dizer que o malfeitor não conseguirá de forma alguma atingir seu propósito sem a vítima praticar um ato absolutamente necessário para disponibilizar ao agente o acesso ao valor pretendido. "Na extorsão o agente não pode realizar o escopo útil a que se propôs a não ser passando pelo trâmite de um comportamento da vítima, comportamento esse que pode ser negado sem que o autor possa superar a negativa" (JTACrimSP. 77/264). Em síntese: enquanto no roubo a coisa desejada está à mão, na extorsão a vantagem econômica almejada precisa ser alcançada com a imprescindível colaboração da vítima1796, como ocorre, exempli gratia, no caso de sequestro relâmpago, pois é essencial a revelação da senha do cartão magnético pelo lesado para o saque bancário eletrônico de dinheiro procedido pelos delinquentes

(v. n. 15.3).

Por conseguinte, verifica-se nada impedir que o uso da violência ou da grave ameaça na extorsão e o locupletamento possam ser contemporâneos, coincidindo temporalmente. Exemplo: sequestro relâmpago. Ou: o agente, devedor da vítima, coage esta, imediatamente, a rasgar o título da dívida ou a tolerar que ele próprio o inutilize1797.

Cezar Roberto Bitencourt pondera, porém, que eventual equívoco distintivo entre uma espécie de crime e outra não causa prejuízo considerável, na medida em que as penas são iguais1798, motivo pelo qual Heleno Cláudio Fragoso afirma que a distinção é apenas de interesse teórico1799. Mas não é bem assim. Mesmo ostentando a extorsão sanção idêntica à do roubo e ainda duas qualificadoras que coincidem com as previstas para este crime (emprego de arma e concurso de pessoas), com os mesmos patamares de exasperação da pena, calha notar que o roubo apresenta outras qualificadoras (art. 157, § 2º, n. III e IV, CP) que não têm paridade na extorsão, sendo, nesse aspecto, de grande importância prática o diferencial entre as referidas figuras típicas. Acresça-se, em arremate, que a qualificadora do roubo consistente na compressão da liberdade da vítima (art. 157, § 2º, n. V, CP), quando presente na extorsão, enseja forma qualificada provida de vetores diferenciados para a majoração da pena (art. 158, § 3º, CP) e, até, pode transmudar o crime para o modelo típico do art. 159 do CP (extorsão mediante sequestro), imprimindo à conduta perfil de delito sensivelmente mais grave.

15.2. Extorsão comum: componentes típicos

Núcleo do tipo e meios executivos. O núcleo do tipo do crime de extorsão (constranger) identifica-se com a conduta punível do constrangimento ilegal. Seus meios executivos (violência ou grave ameaça) também são comuns ao constrangimento ilegal

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e ao roubo. O assunto foi tratado nos n. 12.1 e 14.1, para onde remetemos o leitor. Impende acrescentar, nesse ponto, que a ameaça não precisa ser injusta, pois o que se requer para o encarte típico da conduta punível é que apenas a vantagem econômica visada seja indevida. Assim, comete extorsão, verbi gratia, quem possui provas inconcussas de crime cometido por alguém e o ameaça de delatar à Justiça (mal vaticinado de natureza justa), se ele não lhe pagar determinada quantia em dinheiro (vantagem econômica indevida)1800. Não se incluiu no figurino típico em estudo, contudo, o emprego de outro meio ou recurso destinado a combalir a capacidade defensiva da vítima. Nesse caso, a conduta criminosa poderá deslocar-se para outro modelo típico (roubo, constrangimento ilegal etc.).

O constrangimento deve ser para o sujeito passivo fazer alguma coisa (depositar em certo lugar determinada quantia em dinheiro, assinar cheques), tolerar que se faça, suportando uma atividade do próprio agente ou de terceiro (aceitar que um título de crédito seja inutilizado pelo agente ou outra pessoa) ou deixar de fazer alguma coisa (abster-se de competir em alguma empresa ou negócio)1801, sempre, é evidente, com reflexos econômicos.

Ocorrendo violência ou grave ameaça, ainda que de permeio se vislumbre um expediente fraudulento, o crime de extorsão se impõe tipicamente sobre eventual estelio-nato: simular o agente que é policial ou fiscal de rendas para, mediante grave ameaça ou violência, achacar a vítima para a obtenção de qualquer vantagem sob o pretexto de deixar de tomar providências eventualmente cabíveis ou ocultar irregularidades. Verifica-se, destarte, que tanto na extorsão como no estelionato a vantagem econômica que o sujeito ativo quer auferir depende da cooperação voluntária da vítima. Porém, como com acerto perlustra Nélson Hungria, na extorsão a vítima concede a vantagem econômica coagida pela violência ou grave ameaça, ao passo que, no estelionato, a concede enganada, de forma exclusiva, pela fraude1802. Por tal razão é que a conjugação da vis corporalis ou compulsiva com um embuste qualquer perfaz o delito de extorsão.

Prática que vem ocorrendo com alguma frequência consiste na exigência de certo preço a alguém como condição para a devolução de bens furtados ou roubados. Nada obstante, essa...

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