Estatuto da Crianca e Adolescente e Estatuto da Juventude: interfaces, complementariedade, desafios e diferencas: Statute of the Child and Adolescent and Youth Statute: Interfaces, complementarity, challenges and differences.

AutorCastro, Elisa Guarana de

Introduzindo nosso debate

Apos 23 anos da criacao do Estatuto da Crianca e Adolescente (ECA--Lei No 8.069, de 13 de julho de 1990), no ano de 2013 foi aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pela Presidencia da Republica o Estatuto da Juventude, por meio daLei No 12.852de 5 de agosto de 2013, que "Institui o Estatuto da Juventude e dispoe sobre os direitos dos jovens, os principios e diretrizes das politicas publicas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude--SINAJUVE." Reivindicacao historica dos movimentos juvenis e do campo das politicas publicas de juventude, o Estatuto da Juventude veio somar ao chamado marco legal da juventudebrasileira, composta pela Lei No 11.129 de 30 de junho de 2005 que "Institui o Programa Nacional de Inclusao de Jovens--ProJovem; cria o Conselho Nacional da Juventude--CNJ e a Secretaria Nacional de Juventude, e da outras providencias" e pela Emenda Constitucional No 65, de 13 de julho de 2010, que "Altera a denominacao do Capitulo VII do Titulo VIII da Constituicao Federal e modifica o seu art. 227", inserindo o termo jovem, ate entao ausente da carta magna.

Este arcabouco legal e politico criou grande expectativa no campo das Politicas Publicas de Juventude por significar a possibilidade de incorporacao das politicas de juventude como politica de estado, para alem da transitoriedade de governos, e por apontar a possibilidade de complementacao entre a protecao assegurada pelo ECA, para criancas e adolescentes ate 18 anos, e o fortalecimento das politicas de autonomia e emancipacao dos jovens entre 18 e 29 anos no Brasil. Assim, desde sua configuracao o Estatuto da Juventude que atende jovens de 15 a 29 anos carrega o desafio de dialogo, complementacao e de evitar o sombreamentocom o ECA, que atende uma populacao ate os 18 anos. Para alem da sobreposicao de uma populacao que ambos cobrem, adolescentes/jovens de 15 a 18 anos, o debate sobre o Estatuto da Juventude e possiveis interfaces com o ECA representou o aprofundamento do reconhecimento, pelo Estado brasileiro, de populacoes especificas que demandam protecao. O Estatuto da Juventude reafirma o ECA definindo a populacao jovem como detentora de direitos resguardados pelo Estado, como a identificacao de que os jovens/adolescentes ate os 17 anos sao inimputaveis para tratamento prisional em regime fechado na mesma condicao de adulto. Mas, tambem, o Estatuto da Juventude trouxe para o centro do debate a perspectiva da emancipacao e autonomia. A definicao de sujeito de direitos carrega uma dimensao emancipatoria e de participacao do proprio sujeito na construcao dos seus direitos.

O presente artigo pretende avaliar em que medida o Estatuto da Juventude e o ECA se complementam, e, ainda os desafios e limites desses marcos legais nas suas interfaces. Em um primeiro momento faremos uma recuperacao da trajetoria dos dois dispositivos. A partir da chave conceitual de Nancy Fraser de paridade representativa observaremos interfaces, complementariedades e diferencas. E ainda retomaremos as categorias crianca, adolescente, jovem como sujeitos de direitos como em disputa, tanto no processo de construcao desses marcos legais, quanto em proposicoes de alteracao recentes.

O Estatuto da Crianca e Adolescente: de delinquencia a sujeitos de direitos

Os limites derivados de ausencias e fragilidades democraticas, em um pais marcado por violacoes como o Brasil, impactou ao longo da sua historia, na exclusao de setores importantes da populacao, que colocou na margem do Estado e das politicas: criancas, adolescentes e jovens. Estudiosos do tema apontam que o Brasil colonial e imperial foi marcado pela mortalidade infantil e pelo abandono. Para minimizar este problema, fora criado a "roda dos expostos" pela Santa Casa de Misericordia (Rizzini e Pilotti, 2011) e as formas de dar alguma assistencia as criancas e adolescentes no periodo era o da caridade, praticada pelas igrejas e familias abastadas (Simoes, 2009apud Russo, 2012, p. 69).

Em meados do seculo XIX tem inicio a formulacao de politicas para a infancia que passa a ser compreendida como uma questao de ordem publica, associada ao abandono e a pobreza. Entretanto, e somente no seculo XX que ocorre o desenvolvimento dessas politicas com a criacao de legislacoes que objetivavam regulamentar as intervencoes nos problemas sociais da infancia e adolescencia. Nesse contexto, em 1902 e decretada a Lei n. 844, de 10 de outubro de 1902, que da subsidios a discussao para a criacao de uma politica de assistencia e protecao aos menores abandonados e delinquentes(Russo, 2012, p. 69). Apesar da preocupacao com uma politica voltada para a protecao dos denominados menores abandonados e delinquentes datar do inicio do seculo, a materializacao no primeiro Codigo de Menores ocorreu em 1927.Com o intuito de buscar a "regeneracao do menor", o Codigo estabeleceu a situacao da infancia abandonada e delinquente como sendo de carater publico (Russo, 2012).Em 1941, durante o Estado Novo, foi criado o Servico de Assistencia ao Menor (SAM), orgao ligado aoMinisterio da Justica, que tinha como orientacao as acoes de correcao e repressao.Russo (2012) destaca que o foco do servico era "a protecao da sociedade ou a preservacao da ordem". Ou seja, o direcionamento era para os "menores infratores", na sua grande maioria carentes e pobres.

O Servico de Assistencia ao Menor (SAM) no intuito de reeducar e proteger os "menores carentes e infratores". No entanto, o que predominava nessas intuicoes eram as acoes de carater correcional-repressivo. O SAM surge como uma tentativa de solucionar a descontinuidade dos servicos prestados a infancia, bem como para proporcionar um lugar adequado a educacao ou reeducacao desses seres(Russo, 2012, p. 70). Em 1964, o SAM e substituido pela Fundacao Nacional de Bem-Estar do Menor (FUNABEM) e em ambito estadual, as Fundacoes Estaduais do Bem-Estar do Menor (FEBEM's). O foco continuava sendo a repressao as criancas e adolescentes, tidos como um risco a sociedade. Ainda sob a egide da ditadura militar em 1979, foi instituido o Novo Codigo de Menores que direcionava suas acoes somente as criancas consideradas em "situacao irregular".

Somente aquelas criancas e ou adolescentes que se enquadravam nas regras sociais eram reconhecidas em seus direitos, as demais eram percebidas a partir da logica da patologia social, devendo, portanto, ser assistidas pelo Estado. De acordo com Rizzini (2011) a entao chamada "questao do menor" passa a ser tratada como um problema de seguranca nacional, adotando-se medidas repressivas com o intuito de cercear os passos e as condutas anti-sociais daqueles que nao se adaptavam ao modelo vigente ou que perturbavam a ordem social (Russo, 2012, p. 71). Portanto, o que balizou durante decadas as acoes voltadas para este segmento foi o reforco as desigualdades sociais e economicas. Direitos

usufruidos para criancas e adolescentes das camadas mais abastadas, contencao e repressao para os da classe trabalhadora. Classe social, raca e etnia sao marcadores de desigualdade social que perduram ate os dias atuais e que ao longo do historico apontado acima, parece sinalizar para uma autorizacao de quem pode ter seus direitos violados ou assegurados.

As denuncias de violacoes contra criancas e adolescentes atravessaram o periodo da Ditadura Militar e resultaram finalmente no reconhecimento dessa populacao como sujeito de direitosna Constituicao Federal de 1988 (CF/88). O periodo da redemocratizacao no pais foi marcado pela acao de uma serie de organizacoes, como o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), da Pastoral da Crianca da Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) eo Forum dos Direitos das Criancas e Adolescentes (Forum-DCA). Essas e outras organizacoes foram centrais para expor o trabalho infantil, o abandono e a extrema pobreza vivida por parcela significativa de criancas e adolescentes no Brasil. E que a resposta do Estado e da sociedade era a violencia em forma de contencao e repressao. Aconsolidacao desta mudanca de enfoque esta evidente no artigo 227 da Constituicao.

Na Assembleia Constituinte organizou-se um grupo de trabalho comprometido com o tema da crianca e do adolescente, cujo resultado concretizou-se no artigo 227, que introduz conteudo e enfoque proprios da Doutrina de Protecao Integral da Organizacao das Nacoes Unidas, trazendo os avancos da normativa internacional para a populacao infanto-juvenil brasileira. Este artigo garantia as criancas e adolescentes os direitos fundamentais de sobrevivencia, desenvolvimento pessoal, social, integridade fisica, psicologica e moral, alem de protege-los de forma especial, ou seja, atraves de dispositivos legais diferenciados, contra negligencia, maus tratos, violencia, exploracao, crueldade e opressao (Lorenzi, 2016). O crescente movimento em defesa dos direitos das criancas e adolescentes e a CF/88 contribuiram para embasar a elaboracao do (ECA), aprovado em 1990. Criancas e adolescentes passam a ser sujeito de direitos, a contar com uma Politica de Protecao Integral e com prioridade absoluta. O ECA foi um marco no fortalecimento desta visao sobre este segmento na legislacao e na sociedade brasileira. Em seu art. 40, o Estatuto define que:

E dever da familia, da comunidade, da sociedade em geral e do poder publico assegurar, com absoluta prioridade, a efetivacao dos direitos referentes a vida, a saude, a alimentacao, a educacao, ao esporte, ao lazer, a profissionalizacao, a cultura, a dignidade, ao respeito, a liberdade e a convivencia familiar e comunitaria (Brasil, 1990). O paragrafo unico do Art. 40 estabelece que a garantia de prioridade compreende:

  1. primazia de receber protecao e socorro em quaisquer circunstancias;b) precedencia de atendimento nos servicos publicos ou de relevancia publica;c) preferencia na formulacao e na execucao das politicas sociais publicas;d) destinacao privilegiada de recursos publicos nas areas relacionadas com a protecao a infancia e a juventude...

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