Óbices à afirmação de uma esfera pública global: a realidade contemporânea dos arcabouços normativos atrelados à comunicação global

AutorDaniel Campos de Carvalho
CargoMestre em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo e Pós-graduando (Doutorado) na mesma instituição
Páginas9-19

Page 10

I) Introdução: condicionantes e desafios da afirmação da esfera pública global

Após o término do período histórico caracterizado pela intensa rivalidade entre os blocos socialista e capitalista, surgiram diversas proposições teóricas com o intuito de esgotar a complexidade das Relações Internacionais. Entre discussões sobre polaridades indefinidas no cenário transnacional (LAFER, 1995), choques civilizacionais (HUNTINGTON, 1992) ou mesmo sobre um pretenso término da História (FUKUYAMA, 1992), uma alternativa de intensa repercussão teórica — e de relativas consequências fáticas — foi a possibilidade de construção de uma esfera pública de proporções globais (FERRAJOLI, 2004; HURRELL,1999), pretensão já esboçada pelo pensamento wilsoniano no início dos anos 20 e gradualmente fortalecida desde o fim da II Guerra Mundial. Assim, se a metáfora política do pacto social ganhou uma remoçada dimensão internacional no início da década de 1990 (KALDOR, 2005, p. 100), é necessário identificar quais as linhas que embasam esta constatação. Isto porque resta evidente a percepção de que o processo de internacionalização contemporâneo, ao menos no âmbito nacional, enfraquece (e não fortalece) as esferas públicas (KUWAHARA, 1995, p.136).

Há três grandes eixos a referendar os defensores da viabilidade de uma senda política universal. O primeiro deles refere-se à exequibilidade tecnológica. Nas últimas décadas, as intensas transformações técnicas na seara comunicacional alteram a própria experiência social (KUWAHARA, 1995, p. 133-134). Os diversos meios e polos dos atuais fluxos de informação descortinam novas formas de ação nos mais variados campos, especialmente nos planos econômico e político (CASTELLS, 2001, p. 8). De fato, a Revolução Informacional tornou possível, ao menos em teoria, a discussão em torno dos temas do interesse público global (NYE, 2002, p. 17). A participação no debate público transnacional de uma infinidade de atores políticos das mais diversas origens e nacionalidades corresponderia a verdadeiro pressuposto da opinião pública internacional, exigência do modelo ora em análise.

A pulverização de normas e instituições internacionais corresponde ao segundo traço do cenário transnacional hodierno tido como essencial à arquitetura de uma senda pública de alcance global (FALK, 2002, p. 24). O advento de organismos internacionais sobre os mais diversos temas e a proliferação de documentos e instrumentos normativos de alcance universal possuem, potencialmente, o condão de permitir a participação coletiva no processo de deliberação política nos assuntos de interesse público. Assim, a existência de uma malha institucional vinculada aos ditames da Opinião Pública Internacional abriria uma brecha para uma nova gramática democrática quanto ao gerenciamento dos temas públicos no plano global.

As novas perspectivas da geometria social, emblematizadas na organização em rede, respondem pelo último pilar do projeto teórico de uma esfera pública global. As transformações tecnológicas mencionadas acima realinharam o horizonte de interação humana em vários campos, resultando em uma

“combinação sem precedentes de flexibilidade e desempenho de tarefa, de tomada de decisão coordenada e execução descentralizada, de expressão individualizada e comunicação global, horizontal, que fornece uma forma organizacional superiora para a ação humana.” (CASTELLS, 2001, p. 8.)

Page 11

As consequências políticas para esta nova dinâmica da experiência social detém uma nítida centelha transformadora, especialmente se considerarmos o fenômeno do poder por uma perspectiva alheia à tradição weberiana (a do poder como sujeição e imposição da vontade), caso da leitura arendtiana (a do poder como da ação conjunta a alterar a realidade, fruto do debate e da concórdia). A arquitetura social em rede detém, assim, um alto potencial de aglutinação na medida em que serve de esteio para a identificação política (BARBERO, 2003, p. 59), havendo a pulverização das decisões e a conexão de todos os seus nós nos mais diversos planos (HARDT, 2003, p. 346). O poder social advindo da rede permite a requalificação do processo deliberativo global, abrindo trilhas para a ação política contra-hegemônica (MUNIZ SODRÉ, 2003, p. 40). Obviamente, o soerguimento de um espaço público internacional não pode prescindir da eficaz participação dos cidadãos, algo permitido pela organização social em rede.

O cenário otimista descortinado pelas inovações tecnológicas, pela ampliação do cerne institucional global e pelas recentes mutações do arranjo social, porém, deve ser matizado. Inicialmente, cabe destacar que a simples observância fática erige vários questionamentos sobre a viabilidade de uma esfera pública nos termos avençados nas últimas linhas. O êxito do cenário acima descrito toma como pressuposto o acesso de grande parte dos indivíduos do planeta a uma série de bens materiais e imateriais, exigência notadamente distante da realidade. A não generalização dos pressupostos essenciais à sobrevivência torna a promessa de gerenciamento coletivo dos destinos da humanidade mera peça retórica. As suposições de uma política universal sem a mínima correspondência fática se apresentam como fábula, esvaziando de sentido e inundando de descrédito as tentativas de transformação da ação coletiva: “o mundo se torna menos unido, tornando mais distante o sonho de uma cidadania verdadeiramente universal” (M. SANTOS, 2000, p. 19). Ademais, há diversos outros elementos factuais contemporâneos a desafiar as proposições em prol de uma esfera pública transnacional. Isto porque a construção teórica não dialoga com as recorrentes ações unilaterais dos entes estatais ou mesmo com doutrinas distanciadas dos princípios mínimos da política e do direito internacionais, como o caso bushiana “Doutrina da Legítima Defesa Preventiva”.

Uma segunda gama de contestações, talvez de maior dificuldade de combate, pode ser encetada por meio da difundida descrença individual na ação política como instrumento transformador. O gradual desestímulo à interferência cidadã, desconstrução operada pela via ideológica, tolhe de sentido o advento de um espaço público global.

“Nesta nova forma, esvazia-se progressivamente o discurso do individualismo ativo (participação política, desejo de propriedade, vontade produtiva), movido por uma consciência social forte, em favor do individualismo passivo (consenso gerencial, desejo de informação e status, vontade de consumo), acionado por valores de eficiência técnica. A ciência, ou melhor, a tecnologia, impõe-se como a última grande utopia do capital.” (MUNIZ SODRÉ, 2003, p. 27.)

...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT