Entendendo o dumping e o direito antidumping

AutorGustavo Fávaro Arruda
Páginas257-277

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1. Introdução

O dumping é uma prática comercial regulamentada por normas de direito nacional e internacional. Trata-se de instituto que foi estudado inicialmente pela economia, mas que ganhou disciplina jurídica complexa, cujo desenvolvimento é possível creditar, inicialmente, aos Estados da common law.

Por isso, a adoção da regulamentação antidumping no Brasil, a partir do final da década de oitenta, gerou perplexidades. A acomodação de um instituto jurídico com essas origens suscita uma série de dúvidas e inquietudes em países de tradição jurídica romano-germânica.

Grande parte dessas incertezas refere-se à aplicabilidade de disposições específicas da regulamentação antidumping em face de normas constitucionais e de princípios de direito que balizam o sistema jurídico nacional. Relacionam-se, na maior parte das vezes, à essência do instituto e à forma de sua recepção pelo ordenamento jurídico nacional.

Por isso, os objetivos principais desse trabalho são: (i) examinar o fundamento da disciplina do dumping (direito antidumping); e (ii) colaborar para uma melhor compreensão do instituto, conforme sua disciplina nacional e internacional.

O estudo do sistema multilateral em que se insere a Organização Mundial de Comércio (OMC) e a demonstração da aplicabilidade da regulamentação antidumping são aspectos tratados apenas inciden-talmente, não constituíram objeto de preocupação central desta dissertação.

A regulamentação antidumping gerava pouco ou nenhum interesse no período que se estendeu até o final dos anos oitenta, época marcada pela pequena abertura comercial brasileira. A partir de então, as intensas transformações económicas por que passou o Brasil passaram a evidenciar a importância do tema.

Com as reformas de cunho liberal implantadas, sobretudo a partir do governo Collor, a indústria nacional passou a sofrer intensa concorrência com produtos importados e a regulamentação antidumping, assim como as demais medidas de defesa comercial, ganhou relevância.

Contudo, as autoridades brasileiras tinham pequena familiaridade com o institu-

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to. A falta de compreensão de sua finalidade, aliada a problemas macroeconômicos - principalmente o longo período de baixas taxas de crescimento -, é um dos fato-res que tornaram a inserção do Brasil no comércio internacional um processo traumático para certos setores da economia.

Por isso, é necessário, primeiramente, compreender de que trata o instituto, tarefa que é iniciada no item segundo abaixo. Nele, o dumping será conceituado, serão tratadas as suas definições económica e jurídica e apresentadas as suas formas próprias e impróprias.

O item três é dedicado à distinção entre o dumping e outras práticas de comércio comumente com ele confundidas, como as salvaguardas, os subsídios, o preço predatório e a concorrência desleal.

Traçado este caminho é possível chegar, por fim, ao item quatro, que é dedicado aos fundamentos da legislação antidumping. A sua compreensão é fundamental, pois é ela que fornece as bases que justificam a aplicação das medidas. Essa parte demonstrará que muito do que se fala sobre dumping é fruto de confusão ou retórica para justificar a aplicação das medidas.

2. Conceito de dumping

O termo dumping é utilizado de forma ampla hodiernamente. Seu conceito é compreendido diversamente pela economia, pelo direito e, principalmente, pelo senso vulgar leigo, que o emprega em situações que não constituem tecnicamente dumping. Estas diversas e irregulares utilizações do termo se devem, em grande parte, a divergências epistemológicas e axio-lógicas, que matizam a abordagem jurídica, política e económica do mesmo.

Em qualquer delas, no entanto, há sempre três ideias, que estão presentes: (i) a de prática desleal de comércio internacional; (ii) a carga semântica pejorativa, incutindo a sensação de comportamento ilícito ou reprovável; e (iii) o emprego do vocábulo em inglês, sem a utilização de qualquer tradução.1 Este entendimento tem raízes na própria evolução da aplicação do instituto, que se deu primordialmente como se disse nos Estados da common law.2

A origem do termo, no entanto, não fornece base que corrobore essa compreensão. Estudos etimológicos especulam que ele tenha surgido do irlandês arcaico, "thumpa", que significa "atingir alguém" ou, posteriormente, "depósito de munições".3

No inglês moderno, pode-se encontrar um verbo correlato: to dump, que significa "to put or throw down with more or less of violence; to unload; to drop down; to deposit something in a heap or unshaped mass",4 ou seja, "despejar, descarregar; desembaraçar-se de, jogar fora".5 Em âmbito comercial, portanto, o termo significaria o ato de "inundar o mercado",6 ou, mais precisamente, o ato de "colocar mercadorias no mercado em grande quantidade e a preços muito baixos".7

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Já na doutrina, atribui-se a autores norte-americanos a construção teórica do instituto, embora ele tenha sido primeiramente tratado pelos economistas. Assim, a primeira utilização do termo teria sido feita por Adam Smith, mas em um contexto diverso, para designar situações que atual-mente mais se aproximariam da figura dos subsídios.8 Em sua acepção contemporânea, teria sido o economista J. Viner quem o empregou pela primeira vez.

2. 1 Definição económica

Os economistas identificam a prática do dumping como sendo a discriminação de preços entre dois mercados nacionais, ou nas palavras de J. Viner "The one essen-tial characteristic of dumping, I contend, is price-discrimination between purchases in different national markets".9

Essa discriminação compreende aquela realizada entre diferentes mercados de exportação e não se refere, como se verá na definição jurídica, a uma comparação feita entre o mercado importador e o mercado exportador.

Contudo, não há consenso entre os economistas acerca das causas e das consequências do dumping, como se verá mais a fundo no item 4. Trata-se de problema grave, uma vez que a discórdia atinge os fundamentos e a efetividade que justificam a aplicação das medidas antidumping, o que pode causar efeitos adversos ou imprevistos sobre o mercado. Há casos, como se verá, em que a prática de dumping pode ter efeitos benéficos para a indústria nacional, como o dumping de insumos, sendo até desejada a sua ocorrência.10

O argumento económico utilizado com maior frequência para justificar a aplicação das medidas antidumping é a desqualificação da concorrência realizada pelos produtos importados. Estes, além de serem vendidos com discriminação de preços entre mercados nacionais, implicariam a prática de preços predatórios, o que afastaria investimentos e agravaria problemas sociais.

2. 2 Definição jurídica

A definição jurídica de dumping, ainda que seja o fruto da influência de diversas legislações nacionais, é dada pelo direito internacional e pode ser encontrada no artigo VI do GATT 1947 nos seguintes termos: "The contractingparties recognize that dumping, by which products of one country are introduced into the commerce ofanother country at less than the normal value of the products, is to be condemned ifit causes or threatens material injury to an established industry in the territory ofa contracting party or materially retards the establishment of a domestic industry (...)".

Além do mencionado artigo, também disciplina a matéria um acordo específico da OMC, celebrado com o intuito precípuo de interpretar os termos vagos citados acima. Trata-se do Acordo sobre a Implementação do Artigo VI do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio 1994 (ou Agreementon the Implementation of Article VI of the General Agreement on Tariffs and Trade 1994), conhecido e daqui em diante mencionado apenas como "Acordo Antidumping". O artigo 2.1 deste Acordo também

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traz uma definição desta prática: "For the purpose ofthis Agreement, a product is to be considered as being dumped, i.e. introduced into the commerce of another country at less than its normal value, ifthe export price of the product exportedfrom one country to another is less than the comparable price, in the ordinary course oftrade, for the like product when destined for consumption in the exporting country".

No Brasil, a prática do dumping é definida pelo art. 42 do Decreto 1.602, de 23 de agosto de 1995, que regulamenta as normas e os procedimentos relativos à implementação do artigo VI do GATT, da seguinte forma: "Para .os efeitos deste Decreto, considera-se prática de dumping a introdução de um bem no mercado doméstico, inclusive sob as modalidades de draw-back, a preço de exportação inferior ao valor normal". Em seguida, o art. 5° define o valor normal como sendo "o preço efetiva-mente praticado para o produto similar nas operações mercantis normais, que o destinem a consumo interno no país exportador".

Para o direito, portanto, a definição de dumping também é baseada na diferenciação de preços entre dois mercados. Porém, a sua ocorrência restringe-se aos casos em que os produtos de um país são introduzidos no comércio de outro por valor abaixo daquele praticado no mercado do país exportador. Note-se que a definição jurídica não coincide com a definição económica de dumping. Por ora, é necessário registrar apenas que esta - a...

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