Enquadramento sindical dos motoristas (antes, durante e depois das Leis ns. 12.619/12 e 13.103/15)

AutorPaulo Ricardo Pozzolo
Páginas214-243

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Introdução

Na sociedade capitalista há clara divisão de duas classes sociais distintas, cuja característica fundamental é a relação de dominação versus subordinação. De um lado, os detentores do capital e, de outro, a força de trabalho; portanto, a classe dos empregadores e a classe dos trabalhadores. No âmbito dessa grande segmentação entre capital e trabalho, existem várias subdivisões formadas a partir da noção de semelhança das atividades empreendidas. Tratam-se de subclasses espontaneamente constituídas que, organizadas, assumem relevância como fato social e, por isso, repercutem no ordenamento jurídico.

Objeto de estudo principalmente da Sociologia, o surgimento dessas subclasses sociais reverbera no Direito do Trabalho em razão da força jurígena que o Direito lhes atribui. O nascimento desses grupos e sua autoafirmação como categorias profissionais e econômicas precede a constituição do sindicato, pois este não é a categoria em si, mas apenas a entidade hábil a representá-la no mundo jurídico.

A formação da categoria é sempre anterior à do sindicato, tratando-se de conceitos interligados, mas distintos. Categoria, para o Direito do Trabalho, é um conjunto de trabalhadores ou de empregadores ligados entre si por um interesse comum. O sindicato, por sua vez, é a personificação da categoria ou a conformação jurídica desses movimentos sociais informais e relevantes aos quais o Direito atribui juridicidade.

Sindicato é pessoa jurídica de direito privado, cuja figura mais próxima é a da associação, adquirindo personalidade jurídica com o registro no cartório e personalidade sindical com o registro no Cadastro Nacional de Entidades Sindicais (CNES), do Ministério do Trabalho e Emprego.

A organização das categorias e sindicatos é feita, no Direito brasileiro, pelo enquadramento sindical, conforme exposto a seguir.

1. Enquadramento sindical
1.1. Conceito e previsão legal

Afirmando que a união entre as pessoas é natural, Aristóteles assevera que “o homem é um animal social”. Desse modo, a associação em grupos é inerente ao homem e, dentre as causas pelas quais surgem coalizões humanas de repercussão social, o trabalho é a de maior relevância. Estudos sobre

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as origens do sindicalismo mostram a histórica tendência do homem em formar vínculos e constituir agrupamentos em decorrência (e em torno) de seu ofício. No dizer da doutrina francesa, “se se procura o que faz a unidade e a duração de um grupo humano; se se observa o motivo pelo qual os membros de um deter-minado grupo são ligados entre si; se se quer saber em virtude de que permanecem unidos, concluir-se-á que tal se dá, ou pelo parentesco, ou pela localidade, ou ainda pela atividade1. Dos diversos fatores que instigam o homem a se agrupar, o exercício de trabalho comum é o de maior veemência; o labor é a principal motriz das coalizões. É que “a atividade cria laços mais profundos entre os homens do que os decorrentes da localidade e, em certos casos, do parentesco, porque o exercício de uma atividade, e especialmente de uma profissão, cria características das quais o indivíduo jamais se liberta e que até transmite a seus descendentes2.

Na sociedade atual, o sindicato é a clássica entidade de representação dos interesses existentes na relação capital x trabalho. Nascido como consequência da Revolução Industrial e resultante do despertar do espírito de resistência e do propósito associativo dos trabalhadores, oprimidos e sujeitos às mais precárias condições de labor, o sindicato é o principal organismo de sua união, de sua defesa e de sua oposição aos detentores do poder econômico. Constitui “agrupamento no qual várias pessoas, exercentes de uma atividade profissional, convencionam pôr em comum, de maneira duradoura e mediante organização interna, suas atividades e uma parte de seus recursos, em vista de assegurar a defesa e a representação de sua profissão e de melhorar suas condições de existência3.

É verdade que os trabalhadores podem constituir outras associações das mais diversas naturezas, inclusive de cunho profissional, diante dos inequívocos termos do caput do art. 8º da CF/88. O reconhecimento da entidade sindical pelo ordenamento jurídico não afasta a possibilidade de criação de organizações diversas, ainda que também nascidas em decorrência de labor comum e formadas por pessoas de mesma atividade laborativa (categoria profissional) ou de mesma exploração de capital (categoria econômica). Contudo, de todas as agremiações oriundas de vínculos de capital e de trabalho, somente aos sindicatos foi estendida a prerrogativa de defender os interesses individuais e coletivos daqueles que representam, em questões judiciais ou administrativas (arts. 8º, III, da CF/88 e 531, “a”, da CLT). Nisso reside a importância de identificar qual é o sindicato responsável pela defesa de determinado trabalhador ou de certo empregador.

O organismo sindical não representa uma generalidade, um conjunto heterogêneo, mas um grupo homogêneo de sujeitos ligados entre si por laços de solidariedade, afinidade e de interesse comum decorrentes da profissão ou do trabalho desenvolvido. A representação do sindicato é reduzida a certa divisão de todos os participantes da relação capital x trabalho, a uma dada classe delimitada e pré-definida. A aferição do grupo homogêneo a que pertencem trabalhador e empregador, individualmente considerados, repercute na identificação do sindicato que os representa e defende seus respectivos interesses.

O enquadramento sindical, previsto nos arts. 511 e 570 a 577 da CLT, pode ser enunciado como a atividade de aferir a categoria a que certo empregador e determinado trabalhador pertencem, relacioná-los aos grupos já reconhecidos no ordenamento jurídico e, a partir disso, identificar o sindicato que os representam. Proceder a tal enquadramento nada mais é que descobrir “quem representa quem”, de modo a posicionar trabalhador e empregador em determinada parte de toda a estrutura sindical brasileira.

Não obstante o Brasil perfilhe a liberdade sindical, nos termos definidos pelo art. 8º da CF/88, o ordenamento jurídico adota também a unicidade dos sindicatos (teoria do monismo), objeto de reflexão do próximo tópico.

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1.2. Princípio da unicidade sindical e o enquadramento previsto nos arts 511 e 570 a 577 da CLT

A Convenção n. 87 da OIT, considerada a mais importante daquele organismo e o mais essencial diploma sobre liberdade sindical, não ratificada pelo Brasil, estabelece que trabalhadores e empregadores “terão direito de constituir, sem autorização prévia, organizações de sua escolha, bem como o direito de se filiar a essas organizações, sob a única condição de se conformar com os estatutos das mesmas4.

Consagra, assim, a livre constituição de sindicatos segundo os desejos da coletividade envolvida, um dos desdobramentos do princípio maior da liberdade sindical5, que pressupõe a supressão (pelo Estado convenente) da obrigatoriedade de representação por sindicato único6.

Em sistemas nos quais vigora a ampla liberdade sindical de que trata a Convenção n. 87 da OIT, os membros de determinada coletividade são absolutamente livres não só para se auto definirem como classe distinta das demais, como também para “constituir tantas associações sindicais quantas lhe pareçam convenientes para representá-la, sem monopolizar numa só a chamada base territorial, que é o limite geográfico de sua atuação7. Neles, tal liberdade dá ensejo à multiplicação de entidades sindicais e, além disso, garante a livre filiação de empregado e empregador perante aquela que mais lhes interesse. A expressão “constituir organizações de sua escolha”, contida na Convenção n. 87 da OIT, traduz “o direito de qualquer grupo de trabalhadores ou de empregadores de formar um sindicato, com a estrutura e a representatividade que considere as mais convenientes e ainda que outro sindicato já funcione com igual representação profissional ou econômica, na mesma localidade8. Tais sistemas admitem a unidade sindical (representação por único sindicato, desde que decorrente da manifestação espontânea de vontade da coletividade envolvida), mas repelem a unicidade sindical (representação por único sindicato em virtude de obrigatoriedade imposta pela lei).

A liberdade sindical, tal como prevista na Convenção n. 87 da OIT, não foi adotada no Brasil. A Constituição Federal de 1988 incluiu apenas alguns de seus desdobramentos no ordenamento jurídico (autonomia sindical e garantia de que ninguém será obrigado a filiar-se ou a manter-se filiado a sindicato, previstas nos incisos I e V do art. 8º), mas não assegurou a liberdade sindical plena. Na doutrina, é voz corrente que “a Assembléia Constituinte brasileira de 1988, apesar de ter cantado em prosa e verso que asseguraria a liberdade sindical, na verdade a violou, seja ao impor o monopólio de representação sindical e impedir a estruturação do sindicato conforme a vontade do grupo de trabalhadores ou de empresários, seja ao obrigar os não-associados a contribuir para a associação representativa de sua categoria9.

O princípio da unicidade sindical, vigente no ordenamento jurídico brasileiro (art. 8º, II, da CF/88), impõe a representação da categoria por um único sindicato na mesma base territorial. Tal significa que os integrantes de determinada classe econômica e de certa classe profissional (v. g.,

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metalúrgicos), embora livres para decidir entre filiarem-se ou não...

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