O empresário no Código Civil Brasileiro

AutorVinícius Jóse Marques Gontijo
Páginas76-88

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1. Introdução

Com a edição do Código Civil brasileiro, Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, um sem-número de questionamentos vêm sendo propostos pela doutrina, o que, certamente, implicará igual debate jurisprudencial. Neste contexto, um dos pontos mais delicados que se apresenta é a compreensão do "empresário", tanto pessoa natural, quanto pessoa jurídica.

A discussão que envolve a compreensão do que seja empresário é de capital importância, uma vez que ele é a figura central do modernamente chamado Direito Empresarial.

A partir da doutrina de Rubens Requião,1 pode-se ambientar o Direito Empresarial em períodos de prevalência de conceitos subjetivo, objetivo e subjetivo moderno, a saber:

No período de prevalência subjetiva, o Direito Empresarial era visto apenas a serviço dos, à época, chamados comerciantes. Assim, é que, no sistema subjetivo, "o comerciante ocupa o primeiro lugar. O direito comercial é essencialmente o direito do comerciante ou da profissão mercantil, e só acidentalmente o direito do ato de comércio".2

Já no período objetivo, o sistema desloca a base do Direito Empresarial da pessoa do comerciante para os atos de comércio, o que "tem sido acoimado de infeliz, de vez que até hoje não conseguiram os comercialistas definir satisfatoriamente o que sejam eles".3

A bem da verdade, a modificação do foco central do Direito Empresarial para os atos de comércio, teoria que orientou o Código Comercial Napoleónico e o Código Comercial brasileiro de 1850, tem conotação notadamente política: após a Revolução Francesa, o povo daquele país não tolerada a existência um ramo do direito, cuja função primordial seria a tutela direta dos privilégios de uma classe. Nesse sentido, tem-se a melhor doutrina:

"O Direito comercial chegava ao século XIX como o Direito dos comerciantes. A tradição anterior tinha uma base nitidamente pessoal, atribuindo-lhes jurisdição própria. A Revolução Francesa não poderia contemporizar com esse tipo de privilé-

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gio. Mas como a autonomia do Direito comercial era vivida como um dado otológicamente irrecusável, houve que remodelar: a competência dos tribunais de comércio seria ditada não pela qualidade das partes, mas pelo facto que dê azo ao litígio.

"Resultou daí a adopção dum sistema dito objectivo: o Code visava os actos de comércio, indicando depois, num sistema fechado, que actos seriam esses, para efeitos de jurisdição comercial. E os próprios comerciantes vinham definidos por referência aos actos de comércio. Segundo o artigo 1/1, do Code de Commerce, São comerciantes aqueles que exercem actos de comércio e disso fazem a sua profissão habitual."4

Ante o exposto, conclui-se que o "ato de comércio", na teoria objetiva, ocupa a posição anteriormente destinada aos empresários.

Atualmente, não causa indignação a existência de ramo do Direito que tenha o seu foco de tutela básico em uma classe determinada, que origina de uma relação jurídica básica, como é o caso do Direito do Trabalho5 e do Direito Empresarial.

Nesse diapasão, propugna-se o Direito Empresarial como sendo o direito dos empresários e das empresas. Com essa perspectiva laborou o legislador brasileiro na redação do Livro II do Código Civil de 2002/2003, fazendo emergir no direito positivo nacional a teoria subjetiva moderna,

A partir disso, temos que, da mesma maneira que em outros ramos do Direito, aplica-se ao Direito Empresarial o vetor básico que orienta a hermenêutica jurídica como procedimento interpretativo do fenômeno do Direito, com seus sistemas e escolas.

Conquanto na exegese do Direito Empresarial se aplique o procedimento interpretativo geral, há que se atentar para uma especificidade do ramo: ele existe para a tutela dos interesses e a regulamentação das relações jurídicas de uma classe, qual seja, a empresarial. Conforme pretendemos demonstrar, agrega-se-lhe, então, certo enfoque valorativo, ou seja, uma jurisprudência axiológica. Destarte, como ocorre no Direito do Trabalho para as relações de emprego, no Direito Empresarial se protege, ou, pelo menos é o que se deve proteger, as relações empresariais. O foco da tutela deve ser este e, mais especificamente, a tutela do empresário e da empresa.

Analógicamente, como no Direito do Trabalho e na aplicação de suas normas há o princípio in dúbio pro operario? no Direito Empresarial e na aplicação de suas normas, que regulamentam esta matéria, mesmo quando isso se dá por outros ramos, deve haver a prevalência, na dúvida, em favor do empresário. Em suma: não se pode interpretar o Direito Empresarial senão para otimizar a razão de sua existência e o foco de sua tutela e regulamentação: o empresário e a empresa. A empresa, objeto sob o qual o empresário exerce seu direito,7 hoje, é um bem que urge ser tutelado como atividade geradora de riquezas, na medida em que, a partir dela, se implementam empregos e auxilia a diminuição da criminalidade; melhora-se tecnológicamente o País; recolhe-se tributos e auxilia o Estado etc.

Quando o Código Civil adota a teoria subjetiva moderna, ele acolhe a proteção aos empresários e, via de conseqüência, à empresa. Eles passam, com suas relações jurídicas, a ser o foco central do Direito Empresarial que assumidamente deixa de se camuflar em atos de comércio, que aparen-

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temente faziam o ramo buscar a tutela de assuntos objetivos, provendo, assim, indiretamente, a classe, à época, dos comerciantes.

Com isso, o Direito Empresarial retorna ao seu eixo central histórico, a tutela dos empresários, de suas relações e da própria empresa, buscando o desenvolvimento do País.

Por tudo isso, no Código Civil, seguindo orientações modernas, o Direito Empresarial toma corpo como sendo o direito dos empresários, ou seja, retorna-se, reitere-se, ao subjetivismo, sendo que, obviamente, não é possível se confundir a empresa com a sociedade empresária ou mesmo o empresário}

Contudo, deve-se ressaltar que o resgate da concepção subjetiva não conseguiu minimizar a problemática existente quanto à fixação dos contornos precisos da figura central. Se os comercialistas não se entendiam no que tangia aos atos de comércio, muito menos no que se refere ao empresário e mesmo à empresa. Daí a necessidade premente de se compreender tecnicamente, no Código Civil brasileiro e no Direito nacional, o que vêm a ser empresário e sociedade empresária (que nada mais é do que a pessoa jurídica que tem por objeto o exercício de atividade própria do empresário - art. 982 do CC),9 afastando o seu conteúdo dos atos de comércio e do método utilizado no seu estudo, modernizándose e adequando-se, via de conseqüência, o ferramental técnico na pesquisa do assunto.

A figura central do Direito Empresarial não pode ser preterida, sob pena de ruir o sistema positivo que a assentou. A ausência de um trabalho técnico, com discussão sistemática na doutrina nacional gera insegurança nos operadores do direito.

Neste nosso artigo pretendemos estabelecer as balizas técnicas para a compreensão do que vem a ser empresário no Código Civil brasileiro.

2. Breve esforço histórico dos atos de comércio

Para a perfeita compreensão do que vem a ser empresário, impõe-se contex-tualizar o tormentoso problema dos atos de comércio, figura nuclear da teoria objetiva, que, por sua vez, foi acolhida pelo Código Comercial brasileiro de 1850.10

A doutrina brasileira, ao iniciar o estudo dos atos de comércio sempre colacio-nava a memorável frase de Brasílio Machado: "Problema insolúvel para a doutrina, martírio para o legislador, enigma para a jurisprudência".11

A despeito da crítica de Brasílio Machado, Fran Martins entendia que, indiscutivelmente, os atos de comércio prevaleciam sobre os comerciantes que não existiriam na hipótese da ausência dos atos de comércio.12

A grande dificuldade no que tangia aos atos de comércio se referia ao critério de

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caracterização deles,13 na medida em que a doutrina,.quase sempre, laborava em sintonia com conceitos e definições,14 como se o fenômeno jurídico {atos de comércio) pudesse ser, a partir de exemplos casuísticos, percebido de maneira hermética (apesar de se admitir a analogia) e imutável já que descrita racional e previamente, quando o mais adequado seria a utilização de um raciocínio indutivo, mais acertado para o ramo do Direito Empresarial, portanto, um método tipológico, defendido para a Ciência Jurídica por Ihering.15

Nessa perspectiva de conceituação, Alfredo Rocco procurou estabelecer um conceito positivista dos atos de comércio. Como os sistemas optaram, geralmente, pelo critério da enumeração exemplifica-tiva, ele buscou no Código Comercial italiano (que ele sempre reiterou referir-se, apenas e tão-somente, ao direito italiano) o elemento ou elementos que definiriam um determinado ato como sendo de comércio. Para tanto, a partir dos atos que considerava intrínsecamente comerciais, separou-os em quatro grupos: a) compra para revenda e ulterior revenda; b) operações bancárias; c) empresas em geral; e d) indústria de seguros.16

Obteve, em conclusão, que o elemento caracterizador dos atos de comércio era a troca indireta ou mediata, ou seja, uma interposição na efetivação da troca.

Em face disto, vários foram os dou-trinadores17 que definiram o ato de comércio como sendo aquele praticado habitualmente, com fito de lucro, para a mediação (circulação e intermediação) de bens e serviços, sendo que Waldirio Bulgarelli chamava a atenção para o fato de que tal definição não era boa, uma vez que nela não se incluía a produção, senão através de uma dilatação demasiada da compreensão do conceito de mediação.

Usando de critério similar ao de Alfredo Rocco, J. X. Carvalho de Mendonça classificou o sistema brasileiro dos atos de...

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