Émile Durkheim: de ideólogo da laicidade a precursor das teorias pós-seculares

AutorRaquel Weiss
CargoDoutora em Filosofia pela USP.Diretora do Centro Brasileiro de Estudos Durkheimianos
Páginas428-448
http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2017v16n36p428
428 428 – 448
Émile Durkheim: de ideólogo
da laicidade a precursor das
teorias pós-seculares
Raquel Weiss1
Resumo
Este artigo apresenta e articula três eixos argumentativos que, em seu conjunto, propõem uma
reinterpretação da concepção de religião presente na obra de Émile Durkheim, que resulta na
possibilidade de tomar seus escritos f‌inais como fonte de justif‌icativa para teorias pós-seculares.
O primeiro eixo insere o autor em seu contexto histórico, de modo a apresentar a natureza de seu
engajamento normativo com o princípio da laicidade que compunha o ideário moral da Terceira
República francesa. O segundo eixo constrói uma narrativa acerca da obra do autor na qual se in-
dica uma transformação de sua concepção de religião, bem como da relação desta com a dimen-
são moral da vida. A tese aqui defendida é a de que seu entendimento sobre a religião presente
em As Formas Elementares da Vida Religiosa (DURKHEIM, 1912) é plenamente compatível com
as ideias de pós-secularização como diagnóstico de época e como horizonte normativo da mo-
dernidade tardia. O terceiro e último eixo representa uma tomada de posição por parte da autora
acerca da ideia de pós-secular como melhor forma para ensejar o pluralismo religioso e axiológico.
Palavras-chave: Durkheim. Religião. Moral. Laicidade. Pós-secular. Pluralismo.
Introdução
Em nosso imaginário sociológico, Émile Durkheim tem sido quase sem-
pre representado como teórico da laicidade, às vezes como crítico das religiões
reveladas e, em alguns casos, como defensor da substituição funcional de Deus
pela sociedade. Se a primeira dessas representações está mais próxima de seu
real engajamento com o universo político-losóco de seu tempo e traduz
com alguma delidade boa parte de seus escritos, o mesmo não ocorre com as
outras duas, ainda que certas armações, tomadas de forma isolada, possam
conduzir a esta ideia.
1 Doutora em Filosof‌ia pela USP. Professora do Departamento de Sociologia e do Programa de pós-graduação
em Sociologia da UFRGS, Diretora do Centro Brasileiro de Estudos Durkheimianos.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 16 - Nº 36 - Maio./Ago. de 2017
429428 – 448
De um modo ou de outro, todas essas ideias têm como pano de fundo
duas temáticas centrais em sua obra, que às vezes coincidem: a religião e a
moral, esta tomada a partir de um recorte bastante especíco, enquanto edu-
cação moral. Assim, minha proposta neste texto consiste em indicar uma série
de articulações possíveis, a partir da reconstrução de algumas dualidades que
se apresentam ora como tensões, ora como passagens, com o intuito de situar
histórica e teoricamente o sentido especíco da laicidade presente na obra
durkheimiana. Com isso, espero salientar que este tema gura em seus escritos
em uma conotação essencialmente normativa, que traduz o engajamento do
autor com movimentos intelectuais e políticos de seu tempo, em relação aos
quais se posiciona de forma singular.
Grosso modo, o percurso que constitui a primeira parte deste texto passa
por uma brevíssima reconstrução histórica da temática da laicidade no âmbito
da Terceira República e por uma apresentação do signicado da ideia de edu-
cação moral laica defendida por Durkheim. Na segunda parte, sugiro uma
ampliação interpretativa da obra do autor, defendendo que no decorrer de sua
obra a radicalidade de suas convicções quanto à possibilidade de instituição de
uma moralidade laica deu lugar a uma visão mais matizada e complexa acerca
do signicado da religião enquanto fenômeno social, que desloca a ênfase na
dimensão da crença para a dimensão da práxis, isto é, dos ritos.
O desdobramento desse processo resulta na formulação de uma concep-
ção geral sobre a modernidade que deixa em aberto o futuro das religiões,
indicando a possibilidade de um horizonte normativo de coexistência entre
religiões diversas, novas e antigas, sem abandonar imperativos seculares que
reivindicam maior reexividade e a necessidade de não submeter a sociedade
política à autoridade de uma religião revelada. É precisamente nesse sentido
que gostaria de sugerir que podemos tomar Durkheim como precursor das
teorias pós-seculares. Ao nal, convido a uma reexão sobre a pertinência
dessas teorias e as condições de possibilidade do pós-secular como arcabou-
ço moral para conceber a convivência entre diferentes crenças e práticas que
habitam as sociedades contemporâneas, incluindo, aqui, as crenças e práticas
estritamente seculares.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT