"Para eles, nos nao somos humanos!": habitacao, territorio e a monitorizacao de violencias racializadas em Portugal./'For them, we are not humans!': housing, space and monitoring of racialized violences in Portugal.

AutorAlves, Ana Rita
  1. Introducao (12)

    A existencia de tendas de pano e lona onde a chuva insiste em passar, de casas abarracadas de madeira e cartao que o vento teima em levantar, ou de pequenas casas de alvenaria onde a humidade persiste, integra, periclitante, a paisagem de cidades e vilas em Portugal. Estes aglomerados constituem testemunhos dispersos, embora concisos, de uma precariedade habitacional que persiste no pais, mas tambem da resiliencia quotidiana de muitas familias, que encontraram na ocupacao e na autoproducao das suas casas o seu unico refugio (Cf. Agier, 2015). Foi assim que, aos poucos, tomaram forma lugares onde a precariedade habitacional se soma, tantas vezes, a falta de acesso a bens essenciais como agua, eletricidade e saneamento basico, tal como acontece em parte do Bairro das Pedreiras (Beja), no Bairro da Torre (Loures, AML) (3) ou no Cerro do Bruxo (Faro).

    Habitados maioritariamente por pessoas negras e ciganas, (5) estes e outros bairros evocam um fantasma que volta permanentemente para nos assombrar (Cf. Gordon, 2008). De facto, o esquecimento social da escravizacao racial (e do colonialismo) (Cf. Nimako; Willemsen, 2011), quando algo seu continua vivo (Cf. Gordon, 2008)--o racismo--contribui para a constante reinvencao de sujeitos racializados, reproduzindo-se a sua desumanizacao por via da manutencao de nocoes de europeidade e nao-europeidade (Cf. Hesse, 2007). Depositadas nos seus corpos atraves da recriacao de territorios e fronteiras reais e imaginadas (Fanon, 2008; Hesse, 2007), estas nocoes estao vinculadas, como descreve Sherene Razack (2002), a processos de racializacao experienciados diretamente como espaciais:

    Quando a policia larga populacoes aborigenes nos limites da cidade deixando-as morrer de frio, ou param jovens negros nas ruas ou nos centros comerciais; quando os olhos dos vendedores seguem corpos negros, presumindo que sao ilicitos; quando os locais de trabalho permanecem constantemente brancos nos postos mais bem pagos e totalmente negros nos seus niveis inferiores; quando areas nobres da cidade sao totalmente brancas e as zonas pobres sao maioritariamente negras, experienciamos a espacialidade da ordem racial na qual todos vivemos (Id., p. 6, traducao da autora). A espacializacao da "raca" e a racializacao do espaco tem-se relacionado, aqui, em particular, com a criacao, manutencao e reinvencao de condicoes para a persistencia de situacoes de precariedade habitacional e de segregacao residencial. As praticas governamentais racializadas, exercidas por agenciamentos (6) (brancos) europeizados sobre agenciamentos (nao-brancos) nao-europeizados, refletem logicas administrativas e regulatorias que "avaliam, determinam e controlam os criterios de admissao a concecao europeia de humanidade, enquanto reificam deficiencias colonialmente percebidas nos outros 'nao-europeus' relacionadas com uma suposta, mas imposta, diferenca racial" (Hesse, 2007, p. 655-656, traducao da autora). E neste sentido que uma analise sobre habitacao, territorio e racismo nos podem ajudar a perceber como o retracar constante da linha de cor (Du Bois, 1889) tem concorrido para a perpetuacao de zonas de nao-ser (Fanon, 2008), que se estendem do corpo a casa e ao bairro, fazendo com que persistam, nas democracias europeias, vidas nao-choraveis sujeitas ao subemprego, a repressao legal, e expostas, de forma distinta, a violencia e, ate mesmo, a morte (Butler, 2009). Assim, a manutencao de uma alteridade racial, para alem de extrair destes sujeitos qualquer estatuto politico, torna-os, aos olhos do Estado, ingovernaveis, recorrendo-se politicamente da 'raca' como meio de producao de inimigos racializados, da sociedade civil e da soberania estatal (Amparo Alves, 2018). E neste sentido que a 'raca' tem vindo a ordenar e a estruturar o social, o Estado e os seus sujeitos, constituindo, por isso mesmo, um modo e dispositivo de dominacao (Cf. Goldberg, 2015), que interessa aqui problematizar, em particular, no campo da habitacao.

    Este artigo procurara mapear e analisar um conjunto de relatorios elaborados por institutos publicos nacionais, tais como como o Instituto da Habitacao e da Reabilitacao Urbana (IHRU) ou o Instituto Nacional de Estatistica (INE), e de agencias internacionais, assim como a Organizacao das Nacoes Unidas (ONU), a Comissao Europeia Contra o Racismo e a Intolerancia (ECRI), o extinto Observatorio Europeu do Racismo e da Xenofobia (EUMC) e a atual Agencia dos Direitos Fundamentais da Uniao Europeia (FRA). Prestar-se-a particular atencao aos que examinam, em detalhe, a intersecao entre discriminacao racial e acesso a habitacao em Portugal. De forma complementar, esta analise critica dos discursos institucionais (van Dijk, 1996), reveladores de como pensam e agem os estados face a discriminacao racial, dialogara com a experiencia de uma viagem etnografica realizada, em fevereiro de 2017, a um conjunto de acampamentos, bairros autoproduzidos e de realojamento, de norte a sul do pais. Argumenta-se que esta analise situada permitira perceber a forma como Portugal tem vindo a ser retratado, em particular, pelas principais agencias internacionais de monitorizacao, procurando desvelar racionalidades e governamentalidades racializadas e historicamente obliteradas, no campo da habitacao.

  2. Arqueologias nacionais sobre habitacao (e racismo)

    Numa tentativa de contrariar a grave carencia habitacional que, na decada de 1980--segundo o XII Recenseamento da Populacao e II Recenseamento Geral da Habitacao (1981)--, se materializava num total de 46.391 alojamentos familiares nao classicos (7) (INE, 1984; PORDATA, 2015), um conjunto de politicas publicas foi sendo desenhado e implementado, ao longo das ultimas decadas, pelo Estado portugues (Cf. Baptista, 1999; Serra, 2002; Avila, 2013). Deste, destacam-se a bonificacao de juros ao credito a habitacao, os programas de incentivo ao arrendamento e tambem alguns programas de realojamento (IHRU, 2015), tais como o Programa Especial de Realojamento (PER)--considerado a iniciativa mais ambiciosa de promocao de habitacao publica no Portugal democratico, ja que responsavel pela edificacao de 48.558 unidades habitacionais nas areas metropolitanas de Lisboa e Porto (Allegra et al., 2017) (8). Nao obstante estas e outras iniciativas de ambito governamental e autarquico tenham contribuido, timida mas significativamente, para a melhoria das condicoes habitacionais de milhares de agregados familiares (Alves, 2016), de acordo com o Instituto Nacional de Estatistica (INE) existiria ainda, em 2011, um total de 6.612 alojamentos familiares nao classicos em Portugal (Direccao-Geral do Territorio, 2016). Hoje, sabe-se serem muitos mais. Segundo o recente Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional foram identificados, pelas autarquias, 25.762 agregados familiares "em situacao habitacional claramente insatisfatoria" (IHRU, 2018). O relatorio estima que cerca de metade das familias sinalizadas--o que corresponde a um total de 11.999 agregados (46,58%)--habitam no que designam de barracas e construcoes precarias (Ibid.), (9) denunciando uma precariedade habitacional obtusa em diversas latitudes do territorio. Ademais, se analisarmos outro estudo do Instituto da Habitacao e da Reabilitacao Urbana (IHRU), especifico sobre as Condicoes de Habitacao das Comunidades Ciganas Residentes em Portugal, constata-se que cerca de um terco da populacao cigana (10) habita hoje em alojamentos nao classicos (32%), enquanto aproximadamente metade reside em habitacao social (46%) (IHRU, 2015b). (11) Tal, permite concluir que a maioria da populacao cigana residente em Portugal nao pode escolher livremente a sua morada (77%), deixando adivinhar a persistencia de processos de marginalizacao historicos--institucionais e quotidianos--daquela que e hoje a maior e mais pobre minoria etnica europeia. Enquadrado no ambito da Estrategia Nacional para a Integracao das Comunidades Ciganas (2013-2020), este levantamento e unico na sua natureza pois a recolha e disponibilizacao de dados de base etnico-racial nao e ainda realizada em Portugal. (12) Como tal, embora um olhar atento aquela que e cada vez mais uma extensa producao mediatica, academica, associativa e comunitaria sobre espacos de precariedade habitacional (13) denuncie tambem uma acentuada presenca de populacao afrodescendente a habitar as franjas mais precarizadas de cidades como Lisboa e Amadora, nao e possivel aferir o numero de pessoas negras a viver em situacoes analogas aquelas que sabemos serem hoje as das comunidades ciganas. Neste sentido, embora se possa inferir que, ao que tudo indica, a persistencia de processos historicos de racializacao das populacoes e de racismo institucional sejam fatores fundamentais na determinacao do acesso a uma habitacao condigna em Portugal, nao ha dados quantitativos disponiveis que o confirmem. A ausencia de dados estatisticos, acresce a quase inexistencia de relatorios oficiais ou de estudos academicos sobre racismo institucional, segregacao e habitacao em Portugal (Cf. Alves, 2013). Este tem sido, de resto, parte do argumentario das agencias de monitorizacao internacionais que de forma sistematica tem sublinhado a escassez de dados disponibilizados sobre discriminacao no acesso a habitacao em Portugal, recomendando a sua recolha como forma preferencial de monitorizacao do racismo em sectores como a habitacao, mas tambem como a educacao, o emprego, entre outros (Cf. EUMC, 2003/2004; ECRI, 2006). Segundo o Comite dos Direitos Economicos, Sociais e Culturais da Organizacao das Nacoes Unidas, o acesso a uma habitacao condigna nao implica apenas garantir uma infraestrutura de qualidade, senao garantir, tambem, o acesso a bens essenciais e a uma casa de tamanho adequado ao agregado familiar. A adequabilidade de uma habitacao implica ainda que esta esteja localizada num espaco ambientalmente saudavel e digno e que possua, na sua proximidade, servicos e equipamentos essenciais. E ainda...

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