A efetivação do direito à creche no Brasil

AutorCristiane Maria Sbalqueiro Lopes
CargoProcuradora do Trabalho na 9ª Região (Curitiba) ? Núcleo de Combate à Discriminação e Núcleo de Combate à Exploração do Trabalho Infantil. Mestre e Doutora pela Universidade Pablo de Olavide de Sevilla
Páginas38-60

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1. A situação do brasil em termos de desenvolvimento humano e o objetivo deste artigo

No final de 2007, o Brasil passou a ser considerado integrante do grupo dos países com alto Índice de Desenvolvimento Humano — IDH —, por ter atingido o IDH 0,8 (índice que vai de 0 a 1). O país ocupa o 70º lugar no ranking de 177 países avaliados anualmente pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento — PNUD.

O IDH foi criado para medir a qualidade de vida por outros indicadores que não apenas o Produto Interno Bruto — PIB — que é o conjunto dos bens e serviços produzidos no país, justamente porque a riqueza, por si só, não significa distribuição de renda ou qualidade de vida. O IDH considera renda (PIB per capita), saúde (expectativa de vida ao nascer) e educação (taxa de alfabetização de adultos e matrículas no Ensino Fundamental, Médio e Superior).

Muito se comemorou a “conquista”, porém, apesar do aumento no índice, o Brasil perdeu três posições no ranking mundial em relação ao estudo anterior, caindo do 67º para 70º lugar. Além disso, outras sete nações conseguiram entrar

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para o grupo dos países desenvolvidos, que antes tinha apenas 63 integrantes. Se analisarmos esses dados pela ótica do “desempenho individual” da cada um dos países avaliados pelo PNUD, seremos forçados a admitir que não “conquistamos” nada, apenas perdemos posições. O que há para comemorar?

O motivo para o Brasil ter conseguido melhorar seu índice geral de desenvolvimento humano foi o aumento da renda, indicador que, num país com nossa história, quase nunca vem atrelado à distribuição de renda. Assim, nem o PIB, nem o próprio IDH, medidos isoladamente, podem espelhar o quanto um país é solidário ou promove os direitos humanos. É por isso que o PNUD vem diversificando os “índices” que pretendem mensurar o grau de desenvolvimento e qualidade de vida dos países, com justiça social. Desde o advento do IDH, outros quatro índices foram criados pelo PNUD: o Índice de Pobreza Humana em países em vias de desenvolvimento (IPH-1) e em países selecionados pela OCDE (IPH-2); Índice de Desenvolvimento de Gênero — IDG e Índice de Equidade de Gênero — IEG. Evidencia-se, portanto, que o PNUD está dedicando especial atenção aos países extremamente pobres (índices IPH-1 E IPH-2) e à igualdade de gênero (IGD e IEG). Essa priorização, evidentemente, não é gratuita. Para galgar uma melhor qualidade de vida, mais justiça, relações humanas mais equilibradas, enfim, o verdadeiro progresso da humanidade, é preciso eliminar suas principais mazelas: a pobreza (e desigualdade de renda) e o patriarcado (e desigualdade de gênero).

A desigualdade entre homens e mulheres e a desigualdade entre os seres humanos em geral não é um problema periférico dentre as tantas mazelas sociais que existem hoje em dia. É central. Por isso, também devem ser centrais e, portanto, prioritárias, as medidas tendentes à eliminação das desigualdades de poder e de renda e a promoção de relações humanas baseadas no respeito mútuo (e não no poder hierárquico).

Dentro da ampla gama de medidas tendentes à promoção dos direitos humanos, selecionamos uma delas, que pretenderemos defender, por sua ampla eficácia e polivalência. Essa medida garantirá a prioridade da infância, combaterá a pobreza e a desnutrição, diminuirá as desigualdades sociais, promoverá o equi-líbrio das relações de gênero, colaborará para a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres no mercado de trabalho e, finalmente, diminuirá a discriminação da mulher no mercado de trabalho.

Estamos falando da efetiva universalização
universalizaçãouniversalização
universalização
universalização do direito à creche para todas as crianças brasileiras. Propõe-se avaliar a questão não apenas sob o prisma da “prioridade absoluta” já declarada pela Constituição Federal, mas também como ponto fundamental para o desenvolvimento de relações de gênero mais harmônicas e eliminação da discriminação do trabalho da mulher.

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2. A centralidade da luta pela igualdade de gênero no processo de realização dosdireitos humanos

Não há como progredir em termos de direitos humanos sem progredir em termos de relações de gênero. Basta pensar no Afeganistão (pela Burca)1, no

Iraque, Líbano, Somália, Etiópia, Sudão e Quênia, Nigéria, Senegal (pela mutilação sexual de meninas ou bebês), que tal afirmação prescinde de justificativa.

É por isso que, antes de iniciarmos a discussão jurídica do assunto que dá nome a este trabalho, analisaremos a situação do Brasil em termos de Desenvolvimento de Gênero.

O IDG — Índice de Desenvolvimento de Gênero — é uma variação do IDH que considera separadamente a situação de homens e mulheres ao aplicar os mesmos critérios gerais referentes ao IDH. Galgamos, no Relatório de Desenvolvimento Humano de 2007 (calculado com dados de 2005), a 60ª posição.2 Parece uma posição intermediária que, a princípio, poderia sugerir que “estamos bem” e que não é necessário muito esforço nesta seara. No entanto, existem dezenas de países que tratam suas mulheres de forma tão desumana, que sequer mereceriam integrar as estatísticas do desenvolvimento “humano”. O Brasil não pode se comparar a esses países (porque tem o dever de querer para si algo melhor que isso) e é por isso que sustentamos que o país precisa avaliar sua posição de maneira crítica.

O outro índice específico divulgado periodicamente pelo PNUD é o Índice de Equidade de Gênero, calculado com base nos seguintes indicadores quantitativos: assentos parlamentares ocupados por mulheres, trabalhadoras especializadas e técnicas, funcionárias de escalão superior e gestoras. Também integra o índice uma ponderação entre rendimentos auferidos por homens e mulheres. Nesse aspecto, o desempenho do Brasil é ainda mais medíocre. Aqui, como no IDH — geral, ostentamos a 70ª posição no ranking. Apenas 9,3% dos parlamentares são mulheres e a renda das mulheres não passa de 58% da renda auferida pelos homens, apesar de 52% das mulheres exercerem funções em nível técnico ou especializado. A nota do Brasil, em equidade de gênero, é 0,49 (em IDH geral é 0,80). Esse 70º lugar é ainda mais desprezível, porque apenas 93 países integram a lista daqueles em que houve mensuração do Índice de Desenvolvimento de Gênero. Estamos, portanto, no fim da lista.3

Mas as estatísticas não são de todo desesperadoras. Em termos de equidade na educação, homens e mulheres têm o mesmo direito de acesso à

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escola no Brasil. Os números indicam que o grau de igualdade é praticamente 100%, com ligeira prevalência de mulheres sobre homens na educação técnica e superior. É um alívio constatar que o acesso à escola, no Brasil, não é um problema para as mulheres. Esse dado revela o foco para o qual se deve direcionar a atenção: o poder de gênero. Ou seja, não há necessidade de insistir em que homens e mulheres são iguais em direitos, em inteligência e até mesmo em oportunidades (in abstracto), esse discurso politicamente correto já está incorporado ao discurso do brasileiro e da brasileira “médios”. O problema reside nas relações de poder entre os gêneros, como bem indica o Índice de Equidade de Gênero.

Por isso, a igualdade na educação não é o fim da linha do trem da Justiça de Gênero. É apenas o começo. Há muita coisa para conquistar na luta por uma sociedade mais justa, e os indicadores do PNUD devem servir de instrumento justamente para isso: motivar as mudanças.

O Relatório do PNUD de 2007 inova nesta seara, apresentando uma primeira mensuração da quantidade de horas diárias vivenciadas por homens e mulheres no mercado de trabalho e fora do mercado de trabalho. O quadro “Gênero, Trabalho e Afetação do Tempo” revela o tempo gasto por homens e mulheres dentro e fora do mundo do trabalho remunerado. Dentre as horas vivenciadas fora do mercado de trabalho buscou-se contabilizar as seguintes:
a) cozinhar e limpar (inclui todas as tarefas domésticas); b) cuidar de crianças ou idosos; c) tempo livre (inclui prática de esportes) e d) cuidados pessoais (incluir comer, dormir). O quadro confirma a existência de uma divisão sexual do trabalho e, também, uma dupla jornada das mulheres, que, de um modo geral, trabalham sempre mais que os homens. Conhecer e mensurar a divisão de tarefas entre homens e mulheres dentro e fora do mercado de trabalho é essencial para tentar influir nesta realidade, e é por isso que, mais adiante, defen-deremos a necessidade de implementar uma política de creches que permita que tanto homens quanto mulheres possam empregar sua força de trabalho de uma forma remunerada.

O Brasil não apareceu neste quadro do Relatório de 2007/2008 do PNUD, mas existe, no nosso país, uma pesquisa semelhante sobre a situação da mulher, realizada em 2001, pela Fundação Perseu Abramo.

3. A pesquisa sobre a mulher brasileira nos espaços público e privado

Em 2001, a Fundação Perseu Abramo realizou uma pesquisa intitulada “a mulher brasileira nos espaços público e privado”. A pesquisa tratou de temas como saúde, trabalho, sexualidade, violência, educação, trabalho doméstico, cultura política e lazer. Nessa pesquisa, foram interrogadas 2.502 mulheres

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com idade a partir de 15 anos, distribuídas em 187 cidades e todas as regiões brasileiras, com margem de erro de cerca de 2 pontos percentuais...

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