Efeitos do registo predial português

AutorArmindo Saraiva Matias
Páginas16-31

Page 16

1. Breve introdução: nota histórica; noções gerais; princípios gerais

O problema do registo, mormente do registo predial, surge, inelutavelmente, com a necessidade de dar publicidade a direitos, situações jurídicas ou simples factos.

Aquela publicidade pode resultar e resulta, normalmente, espontânea, mas, por vezes, ela tem de ser - convém que seja - provocada.

No primeiro caso, a publicidade espontânea nasce naturalmente, da aparência, de factos, actos ou situações que são praticados em público.

Há, no entanto, casos, em que a publicidade se torna indispensável, no mundo do direito e, não obstante, tais situações seriam sempre desconhecidas, se não fossem voluntariamente publicitadas - trata-se de publicidade provocada.

Sucede, mesmo, que a publicidade provocada se reporta, as mais das vezes, às situações jurídicas mais importantes. Lembre-se o estado das pessoas, recorde-se a situação jurídica dos bens imóveis.

Temos, assim, que enquanto a publicidade espontânea não carece de nenhum instrumento ou artifício (como é o caso da posse) a publicidade provocada necessita de instrumento adequado e que é o respectivo registo (registo civil no caso do estado das pessoas, registo predial em caso de prédios, registo de bens móveis, tratando-se de automóveis, aeronaves e navios).

O sistema de registo, em Portugal, de forma sistematizada, surgiu, apenas, com a Lei Hipotecária de 1836, aliás alterada poucos anos depois, em 1863.

Durante a época medieval, há referências dispersas aforais e tombos que publicitavam a atribuição de certos bens. Mas não pode falar-se de registo pelo seu carácter assistemático e eventual.

Como registo organizado, surge, apenas, na segunda metade do século XIX, sendo o seu regime acolhido pelo Código Civil de 1867, a propósito da hipoteca.

De então para cá, houve uma sucessão de diplomas tendentes a autonomizar o registo predial do Código Civil, designadamente em 1928, 1929 e, sobretudo, em 1959, com o aparecimento de um verdadeiro Código de Registo Predial (Decreto-lei 42.545, de 8 de outubro de 1959).

Page 17

A substituição do Código Civil de 1867 pelo Código Civil de 1967 não poderia deixar de operar grandes alterações no que respeita ao registo predial tendo sido, então, aprovado um novo Código de Registo Predial pelo Decreto-lei 47.611, de 28 de março de 1967.

Actualmente, com algumas alterações, entretanto introduzidas, pelos Decretos-lei 355/85, de 2 de setembro, 60/90, de 14 de fevereiro, 80/92, de 7 de maio, 30/93, de 12 de fevereiro, 255/93, de 15 de julho, 227/ 94, de 8 de setembro, 267/94, de 25 de outubro, 67/96, de 31 de maio e 375-A/99, de 20 de setembro, vigora o Código do Registo Predial de 1984, aprovado pelo Decreto-lei 224/84, de 6 de junho e, agora, muito recentemente, novamente alterado pelo Decreto-lei 533/99, de 11 de dezembro.

O registo predial português é efectuado em serviços públicos e por funcionários públicos, aplicando-se, naturalmente, no que concerne aos aspectos institucionais e de regime, o direito público, administrativo.

Já no que concerne aos actos, situações ou direitos constantes do registo não podem deixar de ser regulados pelo direito substantivo correspondente, o direito civil, direito material privado.

De outro lado, elementos essenciais do registo predial são os relativos às coisas, não os referentes às pessoas.

Assim, o registo inicia-se com uma descrição de prédios a ela se reportando todas as inscrições e averbamentos posteriores.

A descrição contém todos os elementos indispensáveis à identificação do prédio, enquanto a inscrição contém a indicação dos factos definidores da situação jurídica dos mesmos. Os averbamentos, quer à descrição quer à inscrição, destinam-se a actualizar ou corrigir aquelas.

Função essencial do registo é, como já se viu, dar publicidade à situação jurídica dos prédios com vista à segurança do comércio jurídico imobiliário.

Mas o registo não se esgota aqui: como adiante veremos, pode ter efeitos muito para além da publicidade, como sejam, o da constituição do próprio direito (como na hipoteca) ou o da aquisição tabular.

A doutrina tem elaborado um conjunto de princípios gerais que muito tem contribuído para a construção de uma teoria do registo e até para a elaboração de códigos sistematizados. Vejamos, muito resumidamente, quais são estes princípios.

Princípio da instância

A regra geral é que só por impulso dos interessados pode funcionar o registo predial. De resto, apenas em caso de excepção, expressamente prevista na lei, poderá o funcionário público proceder a registo oficioso. O Estado disponibiliza os serviços, mas deixa aos particulares a iniciativa de a eles recorrer.

Terão legitimidade para requerer o registo as partes da relação jurídica subjacente, como também aqueles que nesse registo tenham interesse.

O registo, em boa verdade, ao contrário do que já aconteceu, no passado, nem sequer é obrigatório, não estando prevista qualquer sanção, quando a ele se não proceda; constitui, apenas, ónus de legitimação para quem for titular do direito.

Princípio da legalidade

O registo tem natureza pública e quem o efectua é funcionário público.

Destes pressupostos resulta que não é teoricamente admissível a prática de actos ilegais. Entende-se, com efeito, que ao funcionário encarregado do registo - o Conservador - está cometida a função de avaliar e se pronunciar sobre a legalidade dos actos sujeitos a registo, na dupla perspectiva, formal e substantiva.

Deste modo, o Conservador deve apreciar a legalidade dos títulos, quanto à for-

Page 18

ma que revistam, como também a validade substantiva dos actos sujeitos a registo, designadamente a capacidade e a legitimidade dos outorgantes em face de registos anteriores.

Entende-se, todavia, que o Conservador só poderá intervir, recusando o registo, quando o entenda ferido de nulidade. Se o acto for simplesmente anulável, não poderá o Conservador, salvo raras excepções (como não o pode o próprio Juiz, sem que tal lhe seja requerido), declarar a invalidade do acto contra a vontade das partes.

Não obstante estes poderes do Conservador, a lei impõe-lhe que proceda ao registo, a não ser em casos especialmente graves, como será o da nulidade manifesta, o da não sujeição a registo, ou a manifesta insuficiência de suporte documental (art. 69ai do Código).

Nos outros casos, impõe-lhe a lei que registe provisoriamente. O registo provisório poderá ser efectuado, por natureza ou por dúvidas, podendo estas ser removidas pelos interessados, sob pena de caducidade do registo. Todavia, os registos provisórios, se tornados definitivos, têm a vantagem de retroagir os efeitos ao seu início.

As decisões do Conservador são impugnáveis, graciosamente, por via de reclamação, ou contenciosamente para os respectivos tribunais de comarca da área.

Princípio da tipicidade

Qual é o objecto do registo? São factos, direitos ou situações jurídicas?

Segundo a visão mais corrente, registam-se direitos. É assim, por exemplo, no registo espanhol.

No registo predial português, a partir de 1959, deixaram de registar-se direitos para se registarem factos jurídicos. Assim o refere o art. 2a do Código.

Note-se, todavia, que o que se visa é a publicidade de direitos; isto é, o objecto do acto do registo é o facto que comprova o direito.

E, sendo assim, haverá tipicidade?

A doutrina é unânime em reconhecer a tipicidade quanto aos direitos, não quanto aos factos. Com efeito, é manifesto existir um numerus clausus de direitos reais; não de factos. Todavia, quanto a estes, poderá falar-se de tipicidade indirecta, na medida em que só estão sujeitos a registo os factos constitutivos, modificativos ou extintivos daqueles direitos reais.

Principio do trato sucessivo

Trata-se de estabelecer uma cadeia sucessiva e ininterrupta de inscrições de aquisição até ao titular da última alienação.

É um princípio fundamental do registo, na medida em que assegura o seu fim último que é o de dar a conhecer as vicissitudes da coisa. Consiste na impossibilidade de proceder a registo definitivo de aquisição de direitos ou de constituição de encargos sem que os bens estejam previamente inscritos em nome de quem os transmite ou onera.

Consciente das dificuldades do reata-mento do trato sucessivo, em determinadas circunstâncias, o legislador veio permitir o recurso a meios extraordinários como sejam a justificação judicial e a justificação notarial. Trata-se de processos tramitados em base testemunhal.

Obsta-se, assim, à interrupção definitiva e irrecuperável da cadeia registai.

Princípio da prioridade

Traduz a concretização do brocardo latino prior tempore potior jure. Isto é, prevalece o direito primeiramente inscrito. Com duas notas: hipotecas da mesma data asseguram os respectivos créditos, na proporção; os registos provisórios, convertidos em definitivos, mantêm a prioridade que lhes couber pela inscrição provisória e não pela data da conversão.

Page 19

Princípio da legitimação

Este princípio, introduzido pela mais recente revisão do Código do Registo Predial, de 1984, exactamente com esta designação, constante da epígrafe do art. 9a, legitimação de direitos sobre imóveis, constitui um reforço da imposição do trato sucessivo. Com efeito, veio dispor que não apenas o registo está vedado, enquanto não houver inscrição a favor do alienante ou onerante, mas também que é vedada a prática do próprio acto de alienação ou...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT