A preservação dos efeitos dos atos administrativos viciados

AutorProf. Jacintho Arruda Câmara
CargoProfessor de direito administrativo da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Páginas1-27

Professor de direito administrativo da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e mestre em direito administrativo pela mesma Faculdade. Consultor em Direito Público e Regulação.

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Introdução

Um dos aspectos de maior apelo prático envolvendo a invalidação diz respeito aos efeitos produzidos pelo ato viciado. Invalida-se, pode se dizer, com o fim de desconstituir os efeitos produzidos por um ato desconforme ao direito, ou para que este não chegue sequer a produzi-los. A invalidação, portanto, guarda íntima relação - pelo menos se vista por um ângulo finalísticocom o problema da eficácia.

O estudo a ser desenvolvido dá conta deste aspecto, mais especificamente, aborda a preservação dos efeitos produzidos pelo ato viciado.

Não se teve por objetivo formular uma nova classificação a respeito dos atos administrativos inválidos, buscou-se algo diverso. Partindo do pressuposto de que um ato administrativo foi produzido com vício, é posta a questão de saber se os efeitos já produzidos por este ato viciado devem, ou não, ser preservados pelo ordenamento jurídico.

Para tanto, utilizou-se o seguinte método.

Numa primeira etapa, foi descrito analiticamente o fenômeno da preservação dos efeitos dos atos administrativos viciados. Nesta fase estão fincadas as premissas do trabalho, os principais conceitos utilizados e as acepções em que cada termo está sendo empregado.

Delimitou-se o objeto de estudo: o ato administrativo e seus efeitos, sendo feita a distinção entre ato viciado e ato inválido - premissa indispensável para que se compreenda a análise formulada -; para logo após proceder-se à descrição das formas pelas quais são preservados os efeitos dos atos administrativos viciados. Page 2

Demarcado o tema e após a descrição de como se processa o fenômeno, passou-se para uma segunda fase, na qual são vistos os fundamentos jurídicos da preservação dos efeitos dos atos viciados.

Os princípios gerais do direito foram de fundamental importância neste enfoque. São os princípios que indicam quando, no caso concreto, os efeitos dos atos administrativos viciados devem ser preservados.

Três princípios, por estabelecerem uma maior relação com o tema, foram analisados: a segurança jurídica, a legalidade e a boa-fé. Sempre que possível foram dadas mostras de como eles são aplicados nas situações concretas, colocando-se em relevo as situações em que estes princípios parecem estar em conflito.

Ao final analisou-se uma questão tópica: o conflito de interesses envolvendo administrados na questão da preservação dos efeitos do ato administrativo viciado. Com base no tratamento dado ao longo do trabalho, propôs-se uma solução para o problema. A intenção, neste último tópico, foi mostrar a operacionalidade do esquema proposto e não esgotar o infindável leque de problemas que cercam o tema.

1- A atividade administrativa e seus efeitos - demarcação do objeto do trabalho

A Administração intervém com cada vez maior intensidade na vida social. Foi-se o tempo do Estado Gendarme, inerte guardião dos direitos individuais. O Estado hoje continua protegendo, mas também constrói estradas, promove a educação, responsabiliza-se pela saúde, interfere na economia. É incontestável que a atividade administrativa se põe muito mais complexa hoje que outrora.

Entretanto, por mais complexa que se torne, essa atividade não fugirá da dicotomia ato/fato jurídico. O Estado, seja qual for sua espécie, será sempre ente jurídico - nesta acepção, cabe a proposição Kelseniana segundo a qual o Estado é sempre Estado de Direito.

Despótico, autoritário, democrático, populista, qualquer que seja sua denominação, haverá sempre a necessidade de imposição de normas para a efetivação de suas atividades e, por outro lado, estas normas só podem existir decorrentes de um fato - fato jurídico, em sentido amplo. Norma não deriva diretamente de norma. Há sempre, necessariamente, entre duas normas, a intersecção de um fato (visão dinâmica do ordenamento).

A Constituição (norma) deriva do fato jurídico de uma Assembléia Constituinte, que é antecedido de outra norma: a norma fundamental (fundamento de validade formal de todo o sistema, desconstituída de conteúdo). No outro extremo da "pirâmide", dando concreção ao ordenamento, tem-se o fato jurídico da expedição da sentença produzindo norma individual e Page 3 concreta, que põe termo ao litígio, sendo antecedida pelas normas de direito processual e de direito material aplicáveis ao caso concreto. Essa é a dicotomia da qual o direito não pode fugir.

Prosseguindo: o Estado age administrativamente com fundamento em lei (lei em sentido amplo, incluindo lei ordinária ou a própria Constituição, em alguns casos) produzindo fatos. Ao expedir uma ordem de prisão, ao efetuar a prisão de um deliqüente; regulamentando sua própria atuação na vigilância sanitária, dando cumprimento a esta regulamentação. Em todos os casos o Estado age para dar cumprimento à lei. Nesta perspectiva não se encontra diferença entre as suas variadas atividades.

Mudando o prisma, largando a causa (a lei) e partindo para a análise dos efeitos que a atividade administrativa provoca, pode-se, seguindo a lição de Merkl, dividir em duas grandes classes a atividade administrativa: numa, estariam abarcados os "atos meramente executivos" - aqueles que aplicam um preceito jurídico a um caso concreto sem estabelecer outro preceito jurídico; noutra, juntar-se-iam os "atos criadores de direito" - seriam todos os atos que, ao dar execução a uma norma jurídica superior, estabelecem outra norma da qual também derivam obrigações e direitos.

De um lado fatos, fatos jurídicos (agora em sentido estrito); de outro, atos jurídicos, abstratos ou concretos . Todos provocam efeitos - efeitos jurídicos -, a diferença está na natureza desses efeitos produzidos. Se o efeito produzido pela atividade for uma norma, tem-se um ato administrativo. Se não, se for apenas a execução de um preceito normativo (gerando conseqüências jurídicas, sim, mas não novas normas), ter-se-á um fato jurídico administrativo.

O conceito de ato administrativo, no entanto, ainda está por demais amplo para os fins que se quer alcançar nesta monografia. Há necessidade de demarcá-lo um pouco mais, de modo a afastar aqueles atos que fujam do escopo do que se quer tratar, que ostentem grandes diferenças de regime jurídico: tais como os atos convencionais (os chamados contratos administrativos, por exemplo) - dentre estes os concebidos sob normas de direito privado - e os atos produtores de normas gerais e abstratas.

Para este propósito, adotar-se-á como definição instrumental a de "ato administrativo em sentido estrito", dada pelo Professor Celso Antônio Bandeira de Mello, que corresponde à seguinte noção: "declaração unilateral do Estado no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante comandos concretos complementares da lei (ou, excepcionalmente, da própria Constituição, aí de modo plenamente vinculado) expedidos a título de lhe dar cumprimento e sujeitos a controle de legitimidade por órgão jurisdicional.".

1. 1- O ato administrativo viciado

É necessário que se faça a diferença entre ato viciado e ato inválido.

A constatação de um vício no ato administrativo e a invalidação de um ato têm algo em comum, mas que não é suficiente para identificá-las.

O ponto comum é a falta de conformidade com o ordenamento jurídico. Page 4

O ato possui vício se não obedecer, se não se enquadrar às normas que lhe são superiores e lhe servem de fundamento de validade. A constatação de que um ato é portador de vício se dá por um juízo.

A invalidação é mais que um juízo verificador de adequação entre normas. É manifestação normativa também, cujo propósito é a expulsão (retirada do sistema) de norma desconforme ao ordenamento. Esta manifestação advém de um órgão dotado de competência para tanto.

O juízo de verificação de um vício é condição necessária da invalidação, mas não suficiente. Pode ser que haja juízo constatando um vício de determinada norma sem que esta seja invalidada pela autoridade competente. O juízo que estipula o vício de uma norma é um momento logicamente anterior à manifestação normativa da invalidade. Mas a invalidade não é decorrência lógica do juízo constatador do vício.

O próprio ordenamento pode determinar que normas portadoras de vícios permaneçam no sistema como válidas. Pode ser, outrossim, que apesar de apresentarem vício, alguns dos efeitos produzidos por elas antes da retirada...

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