Entre a Economia e a Crítica Feminista da 'Racionalidade': um esboço dos cursos de economia doméstica no Brasil

AutorElaine da Silveira Leite
CargoProfessora do Programa de Pós-graduação em Sociologia (PPGS), da Universidade Federal de Pelotas
Páginas254-281
http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2016v15n33p254
254 254 – 281
Entre a economia e a crítica feminista da
“racionalidade1: um esbo dos cursos
de economia doméstica no Brasil
Elaine da Silveira Leite2
Resumo
Partindo da perspectiva da sociologia econômica, que considera a economia resultado de cons-
truções sociais moldadas por princípios ético-religiosos, morais e culturais, este artigo pretende
esboçar um retrato do surgimento das escolas, dos cursos superiores e dos manuais de econo-
mia doméstica no Brasil e de sua decadência, correlacionando-os com as ondas do movimento
feminista. Em especial, destacaremos o crescente campo de estudos sobre a crítica feminista da
economia. Esta desponta como crítica direta à economia mainstream, que pretende desconstruir
a ideia do homo oeconomicus da teoria neoclássica. Deste modo, a pesquisa busca ilustrar que,
ao longo da produção do conhecimento de tais cursos, ocorreu um ofuscamento das atividades
econômicas que envolvem o ambiente doméstico e a intimidade, “simbolicamente” naturalizan-
do a atribuição das ações racionais aos homens.
Palavras-chave: Economia. Economia doméstica. Crítica feminista. Sociologia econômica.
Racionalidade.
1 Entre economias e a crítica feminista
A palavra “economia”, historicamente, refere-se às atividades vinculadas à
organização do lar. Etimologicamente, “economia” é composta de duas pala-
vras gregas: oikos, que signica “agregado familiar”, e nomos, entendido como
“costume ou lei”, o que envolve, de modo geral, a ideia de gestão (BOLAND,
1997)3. Nos tempos antigos, o termo “economiaera usado para distinguir
a economia da casa (oikos) em relação à cidade (polis) (BOLAND, 1997).
1 Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no XVII Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado entre
20 e 23 de julho de 2015 em Porto Alegre (RS).
2 Professora do Programa de Pós-graduação em Sociologia (PPGS), da Universidade Federal de Pelotas (UFPel),
Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: elaineleite10@gmail.com
3 Ver a continuação dessa discussão em: BOLAND. D. G. Economics and Aristotle’s Division of the Sciences,
1997. Disponível em: .cts.org.au/1997/aristotl.htm>. Acesso: jan. 2014.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 15 - Nº 33 - Maio./Ago. de 2016
255254 – 281
De acordo com Aristóteles4, oikos (família, doméstico) é denido como a for-
ma especíca de koinwnia (comunidade, associação), que integra os indiví-
duos na vida comum; como membros de um oikos, estes podem se tornar
membros de uma polis (BOLAND, 1997).
A noção de “economia”, portanto, vem associada à ideia de gestão para
a garantia de provisões adequadas para uma comunidade. Neste sentido, Po-
lanyi (1977) apresenta uma distinção entre as concepções substantiva e for-
mal da economia. De acordo com o referido autor, a economia sempre fez
parte da história da humanidade em seu sentido substantivo; já o seu caráter
formal, que abrange a noção de mercado, é muito recente. “Aristóteles tinha
razão: o homem não é um ser econômico, mas sim, um ser social. Ele não
procura salvaguardar seu interesse pessoal com a aquisição de bens materiais,
ao contrário, ele procura assegurar o bem-estar social, o estatuto e os benefí-
cios sociais” (POLANYI, 1977, p. 87). A partir deste ponto, Polanyi arma,
contestando os economistas clássicos, que a economia é submersa nas relações
sociais. A transição para uma sociedade que está submergida pela economia
é uma evolução muito recente (POLANYI, 1977). Assim, o autor refere-se à
importância da compreensão desse signicado substantivo de economia para
de fato entender, historicamente, as práticas econômicas e as diferenças entre
os vários sistemas sociais e econômicos que precederam o capitalismo e, ao
mesmo tempo, também foram responsáveis por sua atual conguração.
A concepção de economia, portanto, deriva de um deslocamento do ter-
mo, que passou do campo privado para o da administração pública, indo do
manejo dos recursos domésticos para o gerenciamento de questões que envol-
vem a economia de uma nação (POLANYI, 1997; ELIAS, 2006: 171). Neste
sentido, a expressão “economia política” nasce como sintoma principal dessa
mudança; os siocratas foram os responsáveis pela introdução do termo em
um domínio mais amplo, público e cientíco (ELIAS, 2006, p. 171). Consi-
derados os precursores da ciência econômica moderna, os siocratas foram in-
uenciados pelas ciências naturais e tomavam os aspectos da sociedade como
um conjunto de funções – em certa medida autorreguladas como os processos
da natureza que seguem suas próprias leis; assim, passaram a descrever e
formular leis que explicavam as relações entre os fenômenos no campo da
4 Ibid.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT