A sobrevivência do modelo patrimonial na reforma administrativa gerencial do Estado brasileiro

AutorLuiz Henrique Urquhart Cademartori; Raísa Carvalho Simões
Páginas127-153

Luiz Henrique Urquhart Cademartori. Pós-Doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de Granada, Espanha. Doutor em Direito pela UFSC. Mestre em Instituições Jurídico-Políticas pela UFSC. Professor Adjunto I da UFSC, na graduação e pós-graduação. Consultor do INEP e SESu-MEC. Ex-Assessor Jurídico do CECCON.

Raísa Carvalho Simões. Aluna Integrante do Grupo de Pesquisa do Projeto Casadinho (Edital MCT/CNPq/CT-Infra/CT-Petro/Ação Transversal IV n 16/2008), Parceria entre a UFSC-UFC.

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Introdução

A crise fiscal que atingiu o Estado brasileiro na década de 80 trouxe consigo tendências reformadoras mundiais em minimizar, em grau significativo, o papel estatal na vida econômica e política dos países1. A partir disso, no contexto brasileiro, já não vendo outra esperança de solução ao período de instabilidade senão questionar a administração públicaPage 128 baseada em estruturas burocráticas, a gestão governamental de Fernando Henrique Cardoso apresentou ao Congresso Nacional o plano de “Diretrizes da Reforma do Aparelho do Estado”.

Compilada em tópicos voltados à redução do déficit público, à eficiência administrativa e a sua conseqüente transparência e participação, foi aprovada em julho de 1998 a Emenda Constitucional nº19, que tinha como finalidade incorporar na administração pública brasileira um modelo gerencialista de gestão. Todavia, como se verá adiante, o plano de desestatização – um dos pilares do novo modelo de gestão - proposto pela EC/19 possuía em sua estrutura diversos pontos que permitiam a fácil confusão do patrimônio da esfera pública com a esfera dos interesses privados, característica fundamental do modelo patrimonialista2 que imperou na sociedade brasileira durante todo o século XIX e que, supostamente, havia sido superado pelo advento do modelo burocrático de organização administrativa, posteriormente implantado.

Atualmente, observa-se uma constante pretensão em buscar um modelo de organização governamental primoroso, que seja capaz de atender as demandas sociais e cumpra, principalmente, a função para o qual o Estado foi destinado constitucionalmente. No entanto, ainda que não seja o objetivo desse trabalho descrever um modelo de gestão administrativa em detalhes, o que se pretende é a identificação de práticas patrimonialistas no seu bojo, contrariando a idéia de já ter sido superado pelos modelos de organização posteriores. Cumpre mencionar, a propósito, que os pontos a serem suscitados revelam apenas alguns dos resquícios do patrimonialismo na reforma administrativa gerencial, a fim de instigar uma reflexão sobre o tema no contexto jurídico-administrativo brasileiro, não sendo o propósito desse artigo, pois, totalizar os estudos sobre a matéria.

1. Aspectos Históricos do Patrimonialismo

Já não é de hoje que o termo favoritismo surge no contexto da administração pública brasileira e nos holofotes da mídia. Durante o processo de formação do Estado e, sobretudo, desde o início da modernização da administração pública do país, já se evidenciavam práticas de favorecimento indevido imperando na esfera publica e seu entorno de relações privadas.

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Em contrapartida aos tempos atuais, em que o conceito, associado ao termo patrimonialismo, é objeto de repúdio por parte das modernas sociedades, noutro tempo, o favoritismo demonstrava-se como um dos traços fortes do sistema patrimonialista vigente nos modelos de organização do Estado pré-legalista. Pertencia, pois, a um padrão social tradicionalista propenso a entrelaçar a coisa pública com a privada e supervalorizar os interesses pessoais no âmbito público.

Patrimonialismo é uma definição oriunda das obras do sociólogo Max Weber que, ao estudar detalhadamente as relações das sociedades com o Estado, concebeu ser um tipo específico de dominação tradicional existente entre uma autoridade política e o povo. Para o autor, está presente a dominação tradicional quando a legitimidade do soberano dá-se por meio da própria crença de seus súditos na santidade das ordens emanadas pelo seu senhor, caracterizando-se, o patrimonialismo, quando a forma do exercício desse modelo de dominação tendesse ao seu extremo, momento em que o poder individual do governante é amparado por critérios unicamente pessoais, sendo natural a apropriação da coisa pública como se sua fosse (WEBER, 1991).

Sobre o assunto, Reinhard Bendix ensina que: “No patrimonialismo, o governante trata toda a administração política como seu assunto pessoal, ao mesmo modo como explora a posse do poder político como um predicado útil de sua propriedade privada. Ele confere poderes a seus funcionários, caso a caso, selecionando-os e atribuindo-lhes tarefas especificas com base na confiança pessoal que neles deposita e sem estabelecer nenhuma divisão de trabalho entre eles. [...] Os funcionários, por sua vez tratam o trabalho administrativo, que executam para o governante como um serviço pessoal, baseado em seu dever de obediência e respeito. [...] Em suas relações com a população, eles podem agir de maneira tão arbitraria quanto aquela adotada pelo governante em relação a eles, contanto que não violem a tradição e o interesse do mesmo na manutenção da obediência e da capacidade produtiva de seus súditos. Em outras palavras, a administração patrimonial consiste em administrar e proferir sentenças caso por caso, combinado o exercício discricionário da autoridade pessoal com Weber descrever a característica historicamente vislumbrada do fenômeno da “distribuição das terras senhoriais”, sendo este o núcleo embrionário da transformação de um patriarcalismo originário em patrimonialismo puro. consideração devida pela tradição sagrada ou por certos direitos individuais estabelecidos” (BENDIX, 1986. p. 270-1).

Já a típica forma moderna de legitimar a dominação política, conhecida por racional-legal, nos dizeres de Max Weber, constituir-se-ia quando todas as funções públicasPage 130 pertencessem a um mesmo sistema de normas racionalmente organizadas que, de forma impessoal e universal, estabeleçam as esferas necessárias de atuação da autoridade.

Da História de formação do Estado brasileiro retira-se que, desde a época em que o país era uma colônia de Portugal, a administração pública já atuava como sendo uma extensão do quintal do patrimônio do soberano, característica típica do modelo patrimonialista de dominação. Como representação mais original nessa seara, jurista e intelectual Raymundo Faoro, em sua paradigmática obra “Os donos do Poder”, apontou ter sido estruturado o país pelos ditames do patrimonialismo, fruto de uma cultura herdada dos colonizadores portugueses.

Para ele, os primórdios de existência do Estado brasileiro estariam inspirados no estamento, modelo no qual os membros da sociedade são rigidamente divididos em grupos conforme a posição social que ocupam. Estruturado, sobretudo, na desigualdade social, o estamento configuraria, assim, o governo em que poucos dirigem e percebem privilégios em decorrência do status ocupado. É um sistema governamental em que uma minoria, “ao pretexto de representar o povo, deturpa, o controla” (FAORO, 1989).

Nesse sentido, elaborando uma refinada teoria descritiva do patrimonialismo sobre o território brasileiro, ensina Faoro: “De outra natureza é o estamento – primeiramente uma camada social e não econômica, embora possa repousar, em conexão não necessária real e conceitualmente sobre uma classe. O estamento político, de que aqui se cogita, abandonado o estamento profissional, por alheio ao assunto – constitui sempre uma comunidade, embora amorfa: os seus membros pensam e agem conscientes de pertence a uma mesmo grupo, a um círculo elevado, qualificado para o exercício do poder. A situação estamental, a marca do indivíduo que aspira aos privilégios o grupo, se fixa no prestígio da camada, na honra social que Lea infunde sobre toda a sociedade. [...] ao contrário da classe, no estamento não vinga a igualdade das pessoas – o estamento é, na realidade, um grupo de membros cuja elevação se calca na desigualdade social. [...].

Significa esta realidade – o Estado patrimonial de estamento – que a forma de domínio, ao contrário da dinâmica da sociedade de classes, se projeta de cima para baixo. Todas as camadas, os artesãos e os jornaleiros, os lavradores e os senhores de terra, os comerciantes e os armaleiros, orientam suas atividade dentro das raias permitidas, respeitam os campos subtraídos ao controle superior e submetem-se a regras convencionalmente fixadas” (FAORO, 1989. p. 46-7).

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O monarca português enxergava-se como uma “autoridade incontestável” no Brasilcolônia, não admitindo aliados ou sócios, acima dele só a Santa Sé. Aos súditos, cumpria o dever de obediência suprema à majestade e, aos que bem o serviam, restava a gratificação com privilégios sob de todas as formas, como doações de terras, isenção de impostos, cargos administrativos, qualificações honoríficas, etc.

A propósito, extrai-se da aludida obra: “A propriedade do rei – suas terras e seus recursos – se confundem nos seus aspectos públicos e particulares. Rendas e despesas se aplicam, sem discriminação normativa prévia, nos gastos da família ou em obras e serviços de utilidade geral. O rei, na verdade, era o senhor de tudo – tudo hauria dele a legitimidade para existir – como expressão de sua autoridade incontestável bebida vorazmente da tradição visigótica e do sistema militar” (FAORO, 1989. p. 8).

Entretanto, Raymundo Faoro não foi o único estudioso a associar o termo...

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