As intermitências da prisão

AutorPedro Dalla Bernardina Brocco
CargoBacharelando da Faculdade de Direito de Vitória
Páginas154-180

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1 Introdução

A prisão como forma punitiva hegemônica é um fenômeno global de não mais de dois séculos: sabe-se que ele desempenha um papel central na atividade de punir e corrigir os criminosos. Sabe-se também que ela é, ainda, o principal instrumento utilizado pelo DireitoPage 155 Penal para realizar os seus objetivos de defender a sociedade, prevenir o crime e corrigir o criminoso. Porém, é notória a crise pela qual passa a instituição carcerária no Brasil. A criminalidade aumenta, os presídios permanecem cheios, uma divisão cada vez mais latente se forma entre cidade e favela, asfalto e morro, “cidadão de bem” e bandido. Este trabalho procurará mostrar de onde a prisão tirou o seu fundamento e quais são os seus verdadeiros objetivos. Veremos que ela não cessa de dar-se como solução a problemas que a acossam sistematicamente já há algum tempo.

A primeira tarefa que se faz necessária é reconstituir o momento da passagem da punição à vigilância na história da repressão. O método utilizado será o histórico-analítico, e como base teórica serão utilizados os escritos de Michel Foucault, mais precisamente sua obra Vigiar e Punir. Seus trabalhos, apesar de terem um foco maior na Europa, não serão um empecilho para serem pontos de referência para países como o Brasil, visto terem as prisões tomado forma global e generalizada no mundo ocidental a partir do século XIX e estarem até hoje produzindo efeitos.

2 Da punição à vigilância

A cena punitiva característica para crimes de regicídio na primeira metade do século XVIII é aquela narrada no início de Vigiar e Punir1, relativa ao suplício de Robert-François Damiens, executado em 1757 por ter atacado o rei da França com uma faca: o corpo que sobe ao cadafalso e é exposto em suas agruras e sofrimentos; a situação-exemplo do exercício do poder do soberano sobre o seu oposto, o corpo supliciado, mutilado, estraçalhado: ali onde aparece a verdade do crime, quem o cometeu, quem se vinga através do verdugo.

Este ritual de maceração e suplícios possuía como objetivo menos mostrar por qual motivo as leis são aplicadas, mas quais são os inimigos e as forças ameaçadoras; procura renovar o poder soberano em manifestações singulares, eventuais e descontínuas – renovação de um poder que acontece nos rituais que ostentam uma realidade de superpoder. Por isso era necessário que os suplícios acontecessem em lugares públicos e aparecessem em sua forma mais cruel aos olhos ávidos dos espectadores, que, de antemão, esperavam o seu provável, sangrento e teatral desfecho.

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O suplício penal, contudo, não consistia em qualquer punição corporal ou na manifestação de uma justiça sem controle: era a produção diferenciada e calculada de sofrimentos, através de rituais organizados para a marcação das vítimas(ou pacientes) e para a manifestação do poder punitivo. Um poder que exatamente nos “excessos” dos suplícios se investe e se aloja: são nos suplícios aparentemente desmesurados que se investe toda a economia do poder.

O corpo do criminoso, no interior dessas práticas, não cessa de aparecer. Logo após a conclusão do processo criminal – que, curiosamente, era secreto –, e concluída a culpa, o corpo é submetido, à luz do dia, ao castigo público, a levar a verdade do crime que cometeu. É exposto, mostrado, passeado; serve como suporte público de um processo que ficara até então obscurecido. Ao mesmo tempo, o corpo fala, atesta a culpa, passeia pelas ruas e cruzamentos com cartazes pendurados nas costas, no peito ou na cabeça “para lembrar a sentença”. Em seguida, o documento de condenação é lido à porta das igrejas e ao pé do patíbulo, diante do qual o condenado reconhece solenemente seu crime: o corpo que complementa as atividades dos magistrados, até então à sombra, que age como um “parceiro” na acusação, no desdobramento da condenação.

O apelo indeclinável à confissão do crime continua, sob os olhos do público, no suplício. Ali, diz Foucault2, se cada um dos atores desempenha bem seu papel, a cerimônia penal tem a eficácia de uma longa confissão pública. O corpo fica ainda “preso” ao seu suplício depois de executado: o cadáver é exposto no local do crime ou num dos cruzamentos mais próximos.

Houve ainda, de forma muito rica, a utilização de suplícios “simbólicos”, nos quais a forma de execução faz lembrar a natureza do crime: corta-se a língua dos blasfemadores, queimam-se os impuros, corta-se o punho que roubou, ostenta-se junto ao corpo o objeto usado para cometer o crime, etc. É esta velha jurisprudência que, segundo Vico, “foi toda uma poética”3.

A crueldade da punição terrena é o prelúdio da punição futura; também, por outro lado, esboça a promessa do perdão eterno. O “quanto” o supliciado poderá agüentar pode ser a prova de sua inocência ou de sua beatitude, do erro ou acerto dos juízes e da compatibilidadePage 157 entre o julgamento dos homens e o de Deus: daí a curiosidade popular em torno do cadafalso – ali o supliciado será julgado em seus últimos atos.

Da tortura à execução, portanto, o corpo produz e reproduz a verdade do crime. Através do jogo de rituais e de provas, confessa o acontecimento do crime, mostra que o leva inscrito em si e sobre si, através das práticas ostensivas dos castigos.

O corpo várias vezes supliciado sintesa a realidade dos fatos e a verdade da informação, dos atos de processo e do discurso do criminoso, do crime e da punição. Peça essencial, conseqüentemente, numa liturgia penal em que deve constituir o parceiro de um processo organizado em torno de direitos formidáveis do soberano, do inquérito e do segredo. (FOUCAULT, 1987, p.41)

O suplício judiciário deve ser entendido como uma forma de defesa contra o ataque direto ao soberano: ataque pessoal, pois a lei emana de sua vontade; ataque “físico”, pois a força da lei é a força do príncipe. Neste ínterim é que possui funcionamento o castigo corporal – em torno da soberania, onde as leis são feitas a partir do núcleo maciço do poder régio – que antes de tudo rechaça os ataques ao ordenamento jurídico que simboliza o soberano. O corpo do rei, aqui, não é simplesmente uma metáfora, mas uma realidade política.

A partir da segunda metade do século XVIII, porém, surgem as grandes teorias da reforma penal. Cresce em toda parte o protesto contra os suplícios levado a cabo por filósofos, teóricos do direito, magistrados e legisladores das assembléias. Reivindicam penas moderadas, proporcionais aos delitos e que respeitem a humanidade: é que mesmo no pior dos assassinos pode ser encontrada a centelha da “humanidade” – conceito universal e irredutível, prelúdio da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Doravante, a noção de humanidade surge como limite de direito, fronteira do poder legítimo de punir. A própria punição, aliás, deve ficar menos vinculada à vingança ilimitada do soberano: surge o homem-medida do poder.

Este homem-limite ocupa um lugar precípuo, estratégico, na economia do poder que começa a se formar; o eixo se desloca do carrasco, aquele que agia em nome do rei e executava o inimigo, para esta nova e lírica figura do homem, digno de castigos “humanos”, mais suaves e não opressivos.

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O funcionamento desta nova economia do poder é fenômeno complexo e digno de diversas abordagens. Em primeiro lugar, talvez viu-se que a crueldade ilimitada das antigas penas fosse um desafio lançado pelo soberano aos seus súditos que, acostumados a ver jorrar sangue, poderiam aceitá-lo um dia através de vinganças igualmente sangrentas. Nas cerimônias públicas de maceração percebia-se também o choque entre o poderio armado da justiça e a massa amedrontada, ameaçada, mas não menos encolerizada.

É certo também que o crime sofreu uma mudança de finalidades ou objetivos: desde o fim do século XVII notou-se uma diminuição considerável de crimes de sangue em detrimento de delitos contra a propriedade – o roubo e a vigarice tornaram-se mais comuns que os assassinatos, os ferimentos a golpes. A criminalidade, com efeito, antes ocasional e difusa, freqüente nas classes pobres, dá lugar àquela limitada e hábil. Os criminosos do século XVIII são aqueles “velhacos, espertos, matreiros que calculam”4. Um movimento global desloca a ilegalidade do ataque aos corpos para o desvio dos bens. Nota-se, neste período, o surgimento do aparelho policial destinado a impedir o crescimento de uma criminalidade organizada e vigiar o corpo social. Deve-se juntar, ao conjunto de precauções que levou ao surgimento do aparelho policial, a crença de uma criminalidade crescente e ameaçadora. A polícia nasce, portanto, da necessidade de proteção dessa nova forma material da fortuna: a polícia de Londres surgiu e se firmou a partir da demanda de proteção e vigilância de docas, entrepostos, armazéns, estoques, etc. Seu chefe-geral, Colquhoun, era, até então, um comerciante.

A criminalidade sofre mudanças influenciadas pela modificação da produção de riquezas e sua valorização, maior importância dada à propriedade e suas relações e policiamento mais estreito da população, com técnicas mais apuradas de descoberta, captura e coleta de informações: afinamento das práticas punitivas a partir de um deslocamento das ilegalidades.

Talvez venha à tona a seguinte questão: a mudança das punições atende mesmo ao respeito à humanidade dos condenados, ou simplesmente corresponde à necessidade que emerge com a nova criminalidade? Decerto vigiar o comportamento cotidiano das pessoas, sua identidade e seus gestos mais banais torna-se politicamente mais útil do que manifestações descontínuas e ilimitadas de poder.

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Sobre isso, talvez os reformadores estejam de acordo: antes de criticar as práticas cruéis e arcaicas ou a arbitrariedade da justiça, estão eles criticando uma justiça que ora comete excessos, ora sutilezas; uma...

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