Delinquência juvenil: fruto de desamparo familiar ou estatal?

Autor1. Taciana Marconatto Damo Cervi - 2. Virgínia Marconatto Damo
Cargo1. Mestre em Direito, professora do curso de graduação em Direito da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai. - 2. Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul. Pós-graduanda em Direito Público pela Unisul. Pesquisadora.
Páginas216-233

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Introdução

Ao trazer à baila as principais normas de proteção à infância e à adolescência na história do Brasil, o presente estudo pretende, primeiramente, fornecer ao leitor uma noção da situação jurídica dos menores de dezoito anos, desde o Brasil Colônia até os dias atuais. Outrossim, será possível tomar conhecimento das raízes históricas das legislações de amparo à criança e ao adolescente – embora nem sempre tenha sido este o objetivo das legislações em cotejo. Nesse sentido, analisar-se-á o enfoque dado por cada legislação no contexto histórico em que foi formulada.

No segundo item, far-se-á uma reflexão acerca da importância da família na formação da personalidade do infante, e seguindo os ditames do artigo 227 da Constituição Federal, será feita uma reflexão sobre o papel da sociedade e do Estado na prevenção da delinquência juvenil, com enfoque às políticas públicas. Por fim, buscar-se-á explicitar e comentar, criticamente, os principais direitos sociais elencados no artigo 6º da Constituição Federal de 1988 e sua efetivação, que juntamente com os princípios fundamentais garantem a dignidade da pessoa humana para o infante.

1 A evolução histórica da proteção a crianças e adolescentes em conflito com a lei no Brasil
1. 1 Brasil Colônia

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O descobrimento do Brasil por parte de Portugal em busca de novas terras inicia a fase histórica do Brasil Colônia. Nesse período, Portugal descobre no Pau-brasil a maior fonte de riquezas e utiliza-se da mão de obra indígena. Inicia-se o processo de depredação das florestas brasileiras e, também, de escravização indígena e negra. Ocorre a completa dominação dos povos indígenas, que implica desprezo de tudo que aqui existia e submissão forçosa dos povos que até então habitavam a colônia aos descobridores portugueses.

Neste contexto, a criança indígena passa a ser alvo de castigos físicos aplicados pelos portugueses, muito embora Costa e Veronese3 ressaltam o modo afável com que as crianças indígenas eram tratadas por seus pais e o carinho e tempo despendido por eles na educação de suas crianças.

Por esta afabilidade, passam a ser alvos fáceis do doutrinamento cristão que desconstituiu e oprimiu a cultura indígena. E foi por meio da catequese que a cultura indígena se dissipou gradualmente: aqueles que se negavam a participar do processo doutrinal, conforme Costa e Veronese4, sofriam corretivos e castigos físicos. “O tronco funcionava como castigo para os que quisessem faltar à escola, e a palmatória era comumente utilizada buscando obediência” porque, “sem castigo não se fará vida”, sentenciava o Padre Luiz de Grã em 1553, conforme as autoras.

Diante de tantas punições e castigos físicos, o índio começou a rejeitar o trabalho, não mais servindo de mão de obra. A escravidão do índio no Brasil Colônia iniciou em 1534 e encerrou-se em 1755, resultando em mais de duzentos anos de desaculturamento, destribalização e humilhação em nome da fé católica e da economia portuguesa. Como se iniciava o ciclo do açúcar, os portugueses viram no negro africano a escapatória. Estes começam a chegar ao Brasil, segundo Costa e Veronese5, com as primeiras expedições, entre 1516 e 1526. Em 1531 já existia uma quantidade razoável de negros no Brasil, vindos já na condição de escravos, de Portugal e não da África.

Os ciclos econômicos do Brasil jamais teriam existido sem os negros; apesar disso, o país iria maltratálos brutalmente e tingir o chão com o seu sangue. Quando do fim da escravidão indígena, a indústria açucareira estava em plena expansão, consolidando, assim o comércio de negros da África. Ao chegarem ao Brasil em péssimo estado de higiene e saúde, os negros eram submetidos a um tempo de quarenta dias de espera para se recuperarem. Eram alimentados precariamente, até serem comprados. A média de idade dos negros que Page 218desembarcavam nos portos do Rio de Janeiro e da Bahia variava entre doze e quinze anos, e nos períodos mais intensos do tráfico, entre quinze e quarenta anos.

Durante essa época no Brasil, tudo girou em torno da escravidão. Percebe-se a total ausência do Estado nas questões relacionadas à proteção da população infanto-juvenil.Em nome da economia e do lucro, Portugal desestabilizou sociedades africanas inteiras e fez desaparecer vários povos. Apenas em 1775 houve a regulamentação do recolhimento de crianças órfãs e abandonadas, pelo então Ministro Sebastião José de Carvalho e Mello. A primeira Casa de Expostos, então, teria sido fundada em 1726, na Bahia, e em 1738 foi fundada outra, no Rio de Janeiro, conforme explicita Rizzini6. Mais tarde, houve ainda a instalação de uma terceira, no Recife, no final do século XVIII, conforme ressalta Marcilio7.

A “Roda de Expostos”, segundo o mesmo autor, remonta à Idade Média e provém do dispositivo onde se colocavam os bebês que se queriam abandonar, sem que se possibilitasse o reconhecimento da identidade de quem os abandonava. A forma cilíndrica, dividida ao meio por uma divisória, era fixada no muro ou na janela da instituição. No tabuleiro inferior e em sua abertura externa, o expositor depositava a criancinha que enjeitava. A seguir, ele girava a roda e a criança já estava do outro lado do muro. Puxava-se uma cordinha com uma sineta, para avisar a vigilante ou rodeira que um bebê acabava de ser abandonado.

Marcilio8 afirma que por quase um século e meio a Roda de Expostos foi praticamente a única instituição de assistência à criança abandonada em todo o Brasil, de 1726 a 1950, quando foi extinta a última roda dos enjeitados. As crianças ali depositadas permaneciam por um período de dois meses. O índice de mortalidade era altíssimo. Os que sobreviviam eram enviados para amas de leite com as quais ficavam até os sete anos. Ao atingirem essa idade, os meninos eram encaminhados para o Arsenal da Marinha e ao Recolhimento das Órfãs, se meninas. Em ambas instituições, as crianças trabalhavam até os quatorze anos, em troca de moradia e alimento. A partir dos quatorze, poderia empregar-se e receber salário. Relatos dão conta de que poucas crianças conseguiam chegar aos 10 anos. Quando não entregues à roda, eram assolados por todo o tipo de doenças, pela fome e pelo abandono. Nessa época, segundo Costa e Veronese9, o branco tinha o direito ético e o apoio religioso de oprimir e violentar o negro.

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Para Nunes10, esse período caracteriza-se pela quase completa ausência do Estado no atendimento à infância e à adolescência, sobre os quais ou recaía a solidariedade das casas de misericórdia ou o destino insólito das rodas de expostos. A partir de então, inicia-se o período histórico do Brasil Império, com a chegada da Família Real Portuguesa ao país, em 1808.

1. 2 O Brasil Império

Nos anos anteriores a 1830, não havia legislação específica de amparo a crianças e adolescentes. Estes eram punidos de maneira pouco diversa da punição aplicada aos adultos11. Costa e Veronese12 relatam que a partir de 1808, Portugal entra em crise e a Corte Portuguesa se instala no Brasil. Então, a partir de 1828, é que surgem as primeiras medidas de controle da educação por parte do poder público: através do Aviso de 10 de janeiro de 1828, a Coroa estipulou que houvesse toda a dedicação na educação religiosa e regularidade de costumes, como estrutura da boa ordem social.

Até aqui, a preocupação com a infância restringia-se ao recolhimento de crianças órfãs e abandonadas. A legislação dessa época tinha caráter assistencial, caritativo e de raízes religiosas, totalmente vinculado à Igreja Católica, o que denotava a relação estreita existente entre o poder público e a Igreja.

Durante esse período, na descrição de Costa e Veronese13, houve grande manifestação pela abertura de escolas. A pobreza, em tese, não constituía empecilho para a educação escolar, contudo a redação do art. 69 do Decreto 1.331-A, de 1854, não deixa dúvidas acerca da diferenciação entre os filhos de escravos e os demais: “não serão admitidos à matrícula, nem poderão frequentar as escolas: os meninos que padecerem moléstias contagiosas; os que não tiverem sido vacinados, e os escravos”. Como se vê, os filhos de escravos não estavam sob a proteção da Igreja, tampouco do Estado.

Apenas em 1860 a questão da escravidão começa a impressionar a elite intelectual brasileira que passa a realizar uma campanha abolicionista que culminaPage 220com a aprovação da Lei do Ventre Livre. Conforme Veronese14, somente em 28 de setembro de 1871 foi aprovada a Lei 2.040, chamada Lei do Ventre Livre ou Lei Rio Branco, promulgada pela então regente do Império, Princesa Isabel, na ausência de D. Pedro II, seu pai.

A Lei do Ventre Livre aparentemente representava para a época uma significativa evolução positiva com relação aos direitos humanos das crianças negras ao estabelecer que seriam livres os filhos de mães escravas, nascidos após a promulgação da lei. Entretanto não criou mecanismos para evitar a reescravidão, pois os menores ficariam em poder de suas mães até a idade de oito anos quando, então, o senhor de suas mães poderia entregá-los ao governo em troca de uma indenização, ou utilizar os serviços do menor até que completasse a maioridade.

Se por um lado, a lei definiu o destino dos filhos de escravas e complicou a perpetuação do regime escravocrata, de outra banda, contribuiu para o aumento expressivo de crianças negras...

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