Double equity in court decisions in the Plata Viceroyalty during the late eighteenth century/Dupla equidade em sentencas do Vice-Reinado do Prata no final do seculo XVIII.

AutorGarcia-Huidobro, Joaquin

Introducao

A pratica de nao fundamentar as sentencas judiciais na Europa e um tema que se encontra dentro de um debate historiografico com duas visoes opostas: por um lado, ha historiadores que defendem a ideia de que, a medida que durante a Idade Media foram sendo substituidas as formas mais elementares de juizo pela atividade de juizes que eram delegados pelo Rei para administrar a justica, resultou ser muito natural que, nas suas resolucoes, nao explicassem os motivos que as justificavam. Entendia-se que justificar as sentencas, alem de provocar interminaveis discussoes que poderiam afetar a estabilidade das sentencas, tambem retiraria a forca majestatica daquilo que fosse decidido.

Dentro desse contexto, o juiz deveria aparecer como uma figura distante, caso procurasse que as suas resolucoes fossem respeitadas (1). Por outro lado, os advogados, sim apresentavam motivos nas suas alegacoes, de maneira que, na medida em que os juizes aceitavam os argumentos de um dos litigantes, poderiam deduzir-se os motivos que o inclinaram a sentenciar de uma forma ou de outra.

Alem disso, quando se tratava de tribunais colegiados, a falta de explicacoes reforcava a ideia de unanimidade na decisao, uma das caracteristicas mais apreciadas na fase decisoria, ate porque poderia acontecer que a decisao fosse correta, mas nao os motivos que a fundamentavam, fato que poderia provocar a duvida dos litigantes e dos suditos (2). Por ultimo, nao ha duvidas de que este modo de proceder era muito mais rapido, facilitando, como se recomendava nas leis, uma prestacao de justica que evitasse demoras desnecessarias.

Por outro lado, ha tambem historiadores, embora em menor numero, que consideram que a ideia de uma pratica comum de nao motivar as sentencas parte de uma hipotese falsa e que, de fato, quando se consultam os inumeraveis processos judiciais, tanto na Peninsula quanto na America, podem ser encontradas sentencas que claramente estao motivadas.

Do ponto de vista historico, um dos autores que mais estudaram esta questao pode dar-nos a chave do problema. Eduardo Martire, no seu livro sobre a administracao da justica na America espanhola, ao tratar na sua Segunda Parte sobre "O estilo castelhano-indiano de nao motivar as sentencas", faz referencia a uma Lei de Las Partidas "que foi observada pacificamente em Castela e se estendeu ate America" (MARTIRE, 2009: 69). Essa mesma lei permitia aos juizes decidir diretamente, sem necessidade de fundamentar suas sentencas, de maneira que suas decisoes se realizavam dentro "da consciencia do juiz, mundo fechado onde ninguem tinha acesso" (MARILUZ URQUIJO, 1976: 141).

De fato, como informa Martire, na Espanha, a praxis judicial foi diferente em Castela e em Aragao: na primeira, tendia-se a nao motivar as sentencas, enquanto que em Aragao, sim, o que naturalmente induz a certa confusao. Contudo, a partir da Real Cedula de Carlos III, de 23 de junho de 1768, unificou-se o mesmo procedimento, de Castela, para todo o Reino. Nessa Cedula determinava-se que as sentencas nao fossem motivadas para evitar demoras, perdas de dinheiro e dilacoes inuteis (MARTIRE, 2009: 72). Dessa forma, o texto da Real Cedula indicava que:

Para evitar os prejuizos que resultam com a pratica que observa a Audiencia de Mallorca de motivar as sentencas, dando lugar a disquisicoes dos litigantes, consumindo muito tempo na extensao das sentencas, que acabam sendo um resumo do processo, e as custas que resultam para as partes: manda S.M. cesse essa pratica de motivar suas sentencas, atendo-se as palavras decisorias, como se observa no Conselho, e na maior parte dos Tribunais do Reyno; e que, a exemplo do que vai prevenido para a Audiencia de Mallorca, os Tribunais Ordinarios, inclusive os privilegiados, deixem de motivar as sentencas como ate agora, com os vistos e atentos, referidos nos autos, e os fundamentos alegados pelas partes, derrogando, como nesta parte se derroga, o auto acordado 22 tit. 2 liv. 3. duvida 1 ou outra qualquer Real resolucao ou estilo que houver em contrario (SANCHEZ, 1803: 113).

Dessa forma, conclui Martire, "fica consagrada na America, sendo assim na Peninsula, a nao motivacao dos altos tribunais indianos" (MARTIRE, 2009: 72) (na realidade, no texto nao se distingue entre tribunais altos e inferiores, de maneira que afeta a todo tipo de tribunais, que foram atingidos pela proibicao dirigida diretamente a Audiencia de Mallorca, da Coroa de Aragao).

Contudo, quando se estudam os arquivos da epoca, e possivel constatar que, a pesar da opiniao dominante na historiografia e da proibicao legal de Carlos III, ha casos, se bem que isolados, em que os juizes, sim fundamentam as suas sentencas.

Nas paginas a seguir veremos (I) o debate historiografico em torno a fundamentacao das sentencas; (II) seis casos, cujos expedientes datam do periodo entre 1776-1793, isto e, posteriores a Real Cedula de 1768 (quatro desses casos tiveram lugar em Buenos Aires, um em Cordoba e outro em Lujan); depois (III) faremos algumas comparacoes entre eles, tentando mostrar os motivos que levaram esses juizes a afastarem-se do estabelecido pela legislacao que proibia a fundamentacao das sentencas, e mostraremos as fontes filosoficas dessa atitude, para terminar (IV) mostrando que nesses casos encontramo-nos diante de um procedimento intelectual que qualificamos como "dupla equidade". Os documentos podem ser encontrados no "Archivo General de la Nacion" (AGN), em Buenos Aires.

  1. O debate historiografico em torno aos motivos das sentencas

    Num livro de 2011, La motivacion de las resoluciones judiciales, Aliste Santos, no item intitulado "Juizo critico sobre a tese que proclama a inexistencia da obrigacao de motivar resolucoes judiciais em Castela" indica o que poderiamos denominar de chaves para a compreensao de todo este debate. Diz o autor: "Existe uma tese geralmente aceita pela maioria dos autores que escreveram sobre este tema, que vincula o nascimento da obrigacao de motivar as resolucoes judiciais no marco do iusnaturalismo racionalista de finais do seculo XVIII" (ALISTE, 2011: 88). E aponta como um dos responsaveis pela difusao dessa tese a influencia do professor e jurista italiano Michele Taruffo, conhecido historiador do Direito, principalmente do processual, que estabeleceu como hipotese o nascimento da obrigacao de fundamentar as sentencas no pensamento ilustrado do seculo XVIII (ALISTE, 2011: 88).

    Nessa mesma chave, num artigo ainda mais recente (2013) Ortego Gil corrobora que "a historiografia deixou de lado as sentencas de Castela por essa aparente falta de motivacao" (ORTEGO, 2013: 361). Ortego, a hora de dar uma explicacao para esses desentendimentos, nos diz que, embora pareca nao existir uma explicacao unica, provavelmente tera a ver com o fato de "partir de criterios que sao proprios da etapa codificadora" (ORTEGO, 2013: 361).

    Nesse mesmo artigo, o autor citava Garcia-Gallo e Tomas y Valiente como exemplos de historiadores que defendiam a hipotese da nao motivacao das sentencas. O primeiro, com uma extensa e profunda bibliografia, principalmente entre os anos 1940 e 1960, fazia ver que essa pratica de nao fundamentar as sentencas dificultava ou impedia entender quais seriam os motivos que levavam a uma determinada sentenca (ORTEGO, 2013: 361). A afirmacao desse estudioso recolhe, certamente, um fato evidente: se nao forem indicados os motivos, dificilmente poderemos conhece-los.

    Por outro lado, o historiador Francisco Tomas y Valiente, tambem com uma importante bibliografia entre os anos 70 e 80 do seculo passado, apontava igualmente na mesma direcao, afirmando que as sentencas nao passavam de simples declaracoes de vontade, carentes de justificacao, o qual, na sua opiniao, permitia comprovar a arbitrariedade judicial da epoca (TOMAS Y VALIENTE, 1969: 182).

    Teriamos de acrescentar ainda uma figura muito influente na area da historia do direito indiano, ja citado acima, Jose Maria Mariluz Urquijo, quem era explicito ao explicar que as sentencas ficavam fechadas na consciencia do juiz, sem que ninguem pudesse conhecer seus motivos:

    Las Partidas, maximo expoente da recepcao do universo juridico romano canonico em Castela, aludem expressamente ao...

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