Do you know who you're talking to? Notes on the principle of equality in contemporary Brazil/"Sabe com quem esta falando?": Notas sobre o principio da igualdade no Brasil contemporaneo.

AutorBarroso, Luis Roberto

Introducao

O Brasil e um pais adoravel. Faz sol na maior parte do ano, a trilha musical e otima e as pessoas, no geral, sao amistosas e tem alegria de viver. Muitos dizem que a vida aqui e uma festa. E de fato ela pode ser. O problema e que se voce for pobre, mulher, negro ou gay, e muito provavel que nao tenha sido convidado. Por tras do mito do "brasileiro cordial" e da democracia racial, esconde-se uma historia de injustica e discriminacao. A desigualdade extrema e marca profunda da formacao social do Brasil. Somos herdeiros de uma sociedade escravocrata--fomos o ultimo pais do continente americano a abolir a escravidao--, acostumada a distinguir entre senhores e servos, brancos e negros, ricos e pobres. Fomos criados em uma cultura em que a origem social esta acima do merito e da virtude, e na qual, na percepcao dos cidadaos e dos agentes estatais, parece existir superiores e inferiores.

A despeito desse cenario desolador, temos feito extraordinario progresso nas ultimas decadas. A mudanca mais revolucionaria e que merece maior destaque foi o surgimento de uma consciencia social. Quando o primeiro coautor deste trabalho era jovem--em outra vida, portanto--, a elite brasileira, tal como a classe dominante latino-americana em geral, tinha planos de fazer um pais so para si e para os seus. Organizava uma festa opulenta, mas bem pequena. Pequena em todos os sentidos. A exclusao social era uma ideologia professada ora abertamente, ora de modo subrepticio. E mesmo quando nao se manifestasse em declaracoes expressas, poderia ser detectada nas politicas publicas que invariavelmente beneficiavam os que se encontravam no topo da piramide.

Felizmente, esse tempo ja se foi. Nossa geracao foi contemporanea de uma mudanca profunda de consciencia e percepcao. No Brasil de hoje, e possivel identificar projetos progressistas, liberais ou conservadores de inclusao social. Mas nenhum grupo politicamente relevante cometeria a ousadia de nao ter um. Esse e um avanco notavel. E verdade que ele veio mais por medo do que por generosidade, na medida em que os indices de violencia e criminalidade dispararam. Mas o fato incontestavel e que descobrimos que nao e possivel fazer um pais, digno desse nome, somente para alguns. Ou a festa e para todos, ou nao havera festa. Como intuitivo, o despertar de uma nova consciencia nao muda a realidade no curto prazo, nem conquista todos os coracoes e mentes de uma vez. Trata-se de um processo que precisa de valores, persistencia e paciencia. E de gente disposta a empurrar a historia.

As anotacoes que se seguem procuram trazer uma reflexao sobre os desafios da igualdade na realidade brasileira. Nos topicos iniciais, faz-se uma breve digressao teorica acerca das dimensoes da igualdade--formal, material e como reconhecimento--, com comentarios sucintos sobre as duas primeiras. O foco principal do texto, porem, recai sobre a igualdade como reconhecimento, explorando tres de suas vertentes: (i) a discriminacao racial; (ii) a discriminacao contra as mulheres; e (iii) a discriminacao em relacao a orientacao sexual e a identidade de genero. A conclusao a que se chega e a de que percorremos, com sucesso, um longo caminho. Porem, ainda estamos atrasados e com pressa.

  1. Uma nota teorica: tres dimensoes da igualdade

    A igualdade constitui um direito fundamental e integra o conteudo essencial da ideia de democracia. Da dignidade humana resulta que todas as pessoas sao fins em si mesmas (2), possuem o mesmo valor e merecem, por essa razao, igual respeito e consideracao (3). A igualdade veda a hierarquizacao dos individuos e as desequiparacoes infundadas, mas impoe a neutralizacao das injusticas historicas, economicas e sociais, bem como o respeito a diferenca. Em torno de sua maior ou menor centralidade nos arranjos institucionais, bem como no papel do Estado na sua promocao, dividiram-se as principais ideologias e correntes politicas dos ultimos seculos. No mundo contemporaneo, a igualdade se expressa particularmente em tres dimensoes: a igualdade formal, que funciona como protecao contra a existencia de privilegios e tratamentos discriminatorios; a igualdade material, que corresponde as demandas por redistribuicao de poder, riqueza e bem estar social; e a igualdade como reconhecimento, significando o respeito devido as minorias, sua identidade e suas diferencas, sejam raciais, religiosas, sexuais ou quaisquer outras.

    A Constituicao brasileira de 1988 contempla essas tres dimensoes da igualdade. A igualdade formal vem prevista no art. 5, caput: "todos sao iguais perante a lei, sem distincao de qualquer natureza". Ja a igualdade como redistribuicao decorre de objetivos da Republica, como "construir uma sociedade livre, justa e solidaria" (art. 3, I) e "erradicar a pobreza e a marginalizacao e reduzir as desigualdades sociais e regionais" (art. 3, III). Por fim, a igualdade como reconhecimento tem seu lastro em outros dos objetivos fundamentais do pais: "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raca, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminacao" (art. 3, IV).

    Nao sera o caso aqui de se aprofundar a analise teorica dessas tres dimensoes. O objetivo dessa apresentacao e destacar a evolucao da materia na experiencia brasileira recente. Todavia, e pertinente enfatizar, antes de prosseguir, que esses tres planos nao sao independentes um do outro. A igualdade efetiva requer igualdade perante a lei, redistribuicao e reconhecimento.

  2. Igualdade formal: ainda nao chegamos la

    A igualdade formal e a do Estado liberal, cuja origem foi a reacao aos privilegios da nobreza e do clero. Na sua formulacao contemporanea, ela se projeta em dois ambitos diversos. Em primeiro lugar, na proposicao tradicional da igualdade perante a lei, comando dirigido ao aplicador da lei--judicial e administrativo--, que devera aplicar as normas em vigor de maneira impessoal e uniforme a todos aqueles que se encontrem sob sua incidencia. Em segundo lugar, no dominio da igualdade na lei, comando dirigido ao legislador, que nao deve instituir discriminacoes ou tratamentos diferenciados baseados em fundamento que nao seja razoavel ou que nao vise a um fim legitimo.

    Esta e uma pagina virada na maior parte dos paises desenvolvidos, mas ainda existem problemas nao resolvidos entre nos. E certo que a maior parte das dificuldades nessa area tem mais a ver com comportamentos sociais do que com prescricoes normativas. O Brasil e um pais no qual relacoes pessoais, conexoes politicas ou hierarquizacoes informais ainda permitem, aqui e ali, contornar a lei, pela "pessoalizacao", pelo "jeitinho" ou pelo "sabe com quem esta falando" (4). Pa ralelamente a isso, as estatisticas registram que os casos de violencia policial injustificada tem nos mais pobres a clientela natural. Sem mencionar que certos direitos que prevalecem no "asfalto" nem sempre valem no "morro", como a inviolabilidade do domicilio e a presuncao de inocencia.

    E inegavel, todavia, que no plano normativo tambem subsistem resquicios aristocraticos e pouco republicanos. Cabe lembrar que ate a Constituicao de 1988, juizes e militares eram imunes ao pagamento de imposto de renda (5). Ja sob a vigencia da nova Constituicao, e ate a aprovacao da Emenda Constitucional no 35/2001, nao era possivel instaurar acao penal contra parlamentares, independentemente de qual fosse o crime, sem previa licenca da casa legislativa a que pertencesse. Atualmente, nao e possivel a decretacao de prisao, salvo em caso de flagrante delito, mesmo quando presentes os requisitos da prisao preventiva. Por fim, com intensa gravidade, subsiste o foro privilegiado para diversas autoridades e para parlamentares, que respondem a acoes penais perante o Supremo Tribunal Federal. Nesse particular, uma jurisprudencia leniente do STF tem permitido a manipulacao corriqueira da jurisdicao, com renuncias e eleicoes para cargos diversos, fazendo com que processos subam e descam, gerando prescricao e impunidade.

    A igualdade formal e um ponto obrigatorio de passagem na construcao de uma sociedade democratica e justa. Porem, notadamente em paises com niveis importantes de desigualdade socioeconomica e exclusao social, como e o caso do Brasil, ela e necessaria, mas insuficiente. A linguagem universal da lei formal nem sempre e sensivel aos desequilibrios verificaveis na realidade material. Tomem-se dois exemplos historicos. O principio da igualdade esta presente nas constituicoes brasileiras desde a Constituicao Imperial de 1824. Sob sua vigencia, porem, o pais conviveu, sem que se assinalassem perplexidade ou constrangimento, com o voto censitario, os privilegios aristocraticos e o regime escravocrata. Ja a Constituicao de 1891, a segunda constituicao do pais, editada apos a proclamacao da republica, aboliu a necessidade de comprovacao de renda para votar. No entanto, como o sufragio nao era estendido aos analfabetos, que correspondiam a esmagadora maioria da populacao, na pratica, o voto permanecia censitario. A igualdade de todos perante a lei convivia perfeitamente com a exclusao dos pobres, dos negros e das mulheres da vida social.

    Ainda hoje, muitas vezes, normas pretensamente neutras (i.e., compativeis com a igualdade formal) produzem efeitos praticos sistematicamente prejudiciais a um determinado grupo, de modo a violar o principio da igualdade em sua vertente material. Trata-se da chamada discriminacao indireta, relacionada a teoria do impacto desproporcional (disparate impact) (6). A teoria ja foi aplicada pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 1.946 (Rel. Min. Sydney Sanches), em que se conferiu interpretacao conforme ao art. 14 da Emenda Constitucional no 20/1998, que instituiu um valor maximo para o pagamento de beneficios pelo INSS, para excluir de seu ambito de incidencia o salario-maternidade. Isso porque, caso o empregador fosse obrigado a arcar com a diferenca entre o teto previdenciario e o salario da trabalhadora gestante, haveria um desestimulo a contratacao de mulheres, produzindo...

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