A saúde do trabalhador como um direito humano

AutorJosé Antônio Ribeiro de Oliveira Silva
Páginas139-168

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1. Introdução

Dentre os direitos sociais que foram reconhecidos à pessoa humana e há quase um século estão catalogados nas Constituições contemporâneas como direitos fundamentais1, o direito à saúde assume especial relevância, porquanto de pouca valia os direitos de liberdade se a pessoa não tem uma vida saudável que lhe permita fazer suas escolhas. Basta lembrar que, estando doente, a pessoa não pode trabalhar e, se desempregada, não terá forças para exercer o seu direito ao trabalho, outro direito humano fundamental. Demais, conforme a doença que lhe tenha acometido, não poderá exercer determinadas atividades profissionais, diminuindo o seu leque de escolha quando da procura de trabalho, pouca valia tendo nesses casos a liberdade preconizada no inciso XIII do art. 5º da Constituição Federal.

Destas breves considerações se pode dessumir que a saúde do trabalhador, como espécie da saúde em geral, é um direito humano e, como tal, é inviolável, devendo ser observado rigorosamente tanto pelo empregador quanto pelo Estado em sua atividade regulatória e de fiscalização. E que quaisquer violações a esse direito fundamental, principalmente se resultado de acidente do trabalho, devem encontrar uma resposta satisfatória do sistema jurídico, pela voz interpretativa da doutrina e da jurisprudência.

Neste pequeno artigo, pretende-se desenvolver um estudo dessa temática, apresentando, primeiro, uma noção de direitos humanos, entendidos como os valores fundamentais de todo e qualquer sistema jurídico, com alicerce no princípio da dignidade da pessoa humana. Buscar os seus fundamentos também é preciso, para se encontrar, ao lado de seu fundamento ético-político, um de ordem moral — a idéia de dignidade do ser humano. Com base nestas reflexões, será possível sustentar que a saúde do trabalhador também se trata de um direito humano, compreendida no catálogo de necessidades básicas das pessoas, na teoria do mínimo existencial, em respeito à sua dignidade ontológica.

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Posteriormente, pretende-se fornecer uma noção do direito à saúde, em geral, bem como do direito à saúde do trabalhador, como espécie, a fim de se ter caminho seguro na busca do conteúdo essencial deste direito, na prevenção e na recuperação da saúde. E no campo da saúde do trabalhador, há dois aspectos essenciais que devem ser analisados: o direito à abstenção e o direito a inúmeras prestações, da parte do Estado e do empregador, consubstanciando o direito de prevenção, no seu conteúdo essencial.

Por fim, serão estudadas algumas das violações mais graves à saúde do trabalhador, para que se tenha a possibilidade de construção de uma nova forma de interpretação do manancial de normas e princípios a respeito da matéria, à luz do princípio ontológico da dignidade da pessoa humana, com o objetivo de se fornecer a adequada proteção a esse bem tão valioso: a saúde do trabalhador.

O que importa é que haja efetividade na proteção à saúde do trabalhador, em respeito ao direito fundamental a uma vida digna, fundamento último de qualquer sistema jurídico. Esta é a grande preocupação que permeia o artigo que segue.

2. Noção de direitos humanos

Observa Antônio Augusto Cançado Trindade que a idéia de direitos humanos é tão antiga como a própria história das civilizações, tendo se manifestado em culturas distintas e em momentos históricos sucessivos, na afirmação da dignidade da pessoa humana, na luta contra todas as formas de dominação, exclusão e opressão, na luta contra o despotismo e a arbitrariedade, na asserção da participação na vida comunitária e do princípio da legitimidade2. Demais, o avanço do reconhecimento e respeito aos direitos da humanidade não foi simétrico, porquanto alguns países os incorporaram a seus estatutos básicos antes de outros, havendo muito ainda a se conquistar em inúmeros países. Com efeito, pode-se mesmo afirmar que os direitos humanos são uma conquista histórica. Por isso, Celso Lafer preconiza que esses direitos tiveram reconhecimento em cada época, representando, assim, uma conquista histórica e política3. São uma construção, uma invenção da humanidade, ligada à organização da comunidade política4.

O postulado ético de Immanuel Kant está no princípio de toda explanação sobre os direitos humanos, no momento em que aquele filósofo enunciou que o homem não pode ser empregado como um meio para a realização de um fim, pois é um fim em si mesmo, haja vista que, apesar do caráter profano de cada indivíduo, ele é sagrado, porquanto na sua pessoa pulsa a humanidade. Este postulado conduz à dignidade da pessoa humana5. Daí decorre que toda pessoa:

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[...] tem dignidade e não um preço, como as coisas. A humanidade como espécie, e cada ser humano em sua individualidade, é propriamente insubstituível: não tem equivalente, não pode ser trocado por coisa alguma.6 (destaques no original)

Por isso, Miguel Reale, o maior jusfilósofo brasileiro, afirmou que o valor da pessoa humana é mesmo um valor-fonte, o fundamento último da ordem jurídica, na medida em que o ser humano é o valor fundamental, algo que vale por si mesmo, identificando-se seu ser com sua valia7.

Os direitos humanos são, portanto, valores fundamentais de todo e qualquer sistema jurídico, pelo menos num Estado Democrático de Direito. Repousam sobre o valor maior da dignidade da pessoa humana, um princípio praticamente absoluto para o mundo do direito.

José Afonso da Silva anota que a dignidade da pessoa humana é um valor supremo, que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida8.

Norberto Bobbio sustenta que os direitos humanos são direitos históricos, nascidos em certas circunstâncias, na luta em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual. Afirma que os direitos não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas, tendo em vista que surgem como proteção diante das ameaças à liber-dade da pessoa ou como remédios para suprir as indigências humanas, ou seja, como exigências, sendo que estas só nascem quando surgem determinados carecimentos. As exigências dos direitos são apenas estas duas: impedir os malefícios do poder ou dele obter benefícios9.

Segundo Pérez Luño, jusfilósofo espanhol, os direitos humanos são verdades demons-tradas através dos ditames da reta razão, expressando um conjunto de faculdades jurídicas e políticas próprias de todos os seres humanos e em todos os tempos10.

Não é a positivação, tampouco sua constitucionalização, que os torna dignos dessa adjetivação: humanos. São direitos humanos porque indissociáveis da pessoa humana, ou de sua dignidade. Vale dizer, a dignidade da pessoa somente estará assegurada quando respeitados esses direitos. Até porque ainda existem Estados que não os reconhecem, ao menos em sua totalidade, nas ordenações internas. Por outro lado, mesmo que determinado Estado promova, na ordem interna, a despositivação desses direitos, eles não deixarão de ser im-

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prescindíveis aos seus nacionais. De tal modo que a positivação, conquanto valiosíssima para a exigibilidade dos direitos humanos, não tem o condão de lhes conferir esse rótulo, ainda que se mude a nomenclatura para direitos fundamentais.

Os direitos humanos são direitos naturais, que pertencem ao indivíduo — que não pode ser dividido — e precedem a qualquer sociedade política. Não se pode olvidar, ainda, que inúmeros direitos encontram-se positivados nas Constituições atuais, mas sem que haja a eles respeito efetivo, mormente quanto aos direitos humanos denominados de sociais.

Entretanto, de se reconhecer que a expressão direitos fundamentais é a preferida pelos constitucionalistas e até mesmo pelos doutrinadores de direito do trabalho. Demais, quando se está a falar de direitos humanos positivados na Constituição, nada obsta que a eles se dê a adjetivação de direitos fundamentais. Tem-se que a distinção essencial entre direitos humanos e direitos fundamentais assenta na idéia de que aqueles têm como titulares apenas a pessoa humana, obra de Deus, ao passo que os direitos fundamentais também têm como titulares as pessoas jurídicas, criação do homem.

De tal modo que, a título de conclusão e sem qualquer pretensão de esgotar tão ampla matéria, pode-se fornecer (apenas) uma noção geral de direitos humanos. Tem-se que direitos humanos são um conjunto de direitos, garantias, faculdades, positivados ou não no sistema jurídico, sem os quais a dignidade da pessoa humana estará seriamente ameaçada, açambarcando toda uma gama de liberdades essenciais, bem como direitos mínimos à afirmação da pessoa para a concretização do ideal de igualdade. Sem os direitos sociais mínimos, a igualdade será meramente retórica. Sem as liberdades, a igualdade não se justifica.

3. Fundamento dos direitos humanos

Conquanto Norberto Bobbio enuncie que o fundamento dos direitos humanos é um problema mal formulado, afirmando ser ilusória a busca de um fundamento absoluto desse direitos11, o problema da fundamentação dos tais direitos é ainda atual. É tão atual que em recente obra, publicada na Espanha no ano de 2006, apontou-se o equívoco de Bobbio, ao afirmar que o problema dos fundamentos dos direitos humanos teve sua solução na Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de...

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