Direitos territoriais indigenas as sombras do passado/Indigenous peoples lands rights under the shadow of the past.

AutorSantana, Carolina Ribeiro

Consideracoes iniciais

Recentemente, o fotografo Sebastiao Salgado inaugurou no Hall dos Bustos do Supremo Tribunal Federal uma exposicao que retrata indigenas de recente contato da etnia Korubo, habitante da Amazonia. No discurso de abertura Salgado afirmou que "essas populacoes indigenas representam a pre-historia da humanidade, feliz o pais como o nosso que pode conviver com sua pre-historia", e completou afirmando que eles "vivem como nos viviamos ha 4 mil anos atras, num estado de natureza fenomenal"1.

Aparentemente inocente, a frase carrega um conhecido equivoco. Proferida no palco da recente desconstrucao dos direitos territoriais dos povos indigenas, a Suprema Corte (2), revela nao apenas seu etnocentrismo, mas enrobustece o discurso da negacao do presente as populacoes indigenas. Este estereotipo de povos do passado produz um curioso fenomeno na opiniao de grande parte da populacao brasileira, a dificuldade de aceitacao de que eles tenham direitos no presente, e mais, engendra a reiterada retomada de debates ja exaustivamente travados durante a Assembleia Nacional Constituinte de 87/88. Para o senso comum, e nisso incluem-se parlamentares e juristas, teriam quais direitos ao presente ou ao futuro povos que, supostamente, sequer teriam saido do passado?

Para compreender esse insistente retorno dos debates constituintes e preciso, antes, retornarmos a eles e inteirarmo-nos do que pensavam os atores que na Assembleia discutiram a elaboracao do texto do artigo 231.

O processo de elaboracao do artigo 231

Em fevereiro de 1987 instalava-se no pais a Assembleia Nacional Constituinte e, com ela, a esperanca por dias melhores e pelo resgate de direitos autoritariamente violados durante o regime ditatorial. A expectativa, todavia, ja vinha do momento pre-constituinte (2) que agitou nao apenas movimentos sociais urbanos e campesinos, mas alcancou tambem o grupo que vinha tomando forma juntamente com o ritmo das lutas democraticas: o movimento indigena (3). A participacao deste e dos demais setores populares organizados em movimentos sociais foi, como lembrou Marilena Chaui, fundamental para o resgate do anseio da transformacao politica, historica e cultural que se desejava como resultado (CHAUI, 1987).

Para a antropologa Manuela Carneiro da Cunha, figura atuante durante o processo constituinte (CUNHA, 2018) - a epoca presidente da Associacao Brasileira de Antropologia - a revogacao do projeto historico empreendido pelo Estado brasileiro de assimilacao dos indigenas a sociedade nacional e uma das grandes conquistas dos povos indigenas. O jurista Carlos Frederico Mares de Souza Junior, tambem atuante durante o processo constituinte (4), relata-nos que em meados de 1988, em um dialogo com um indigena Macuxi a respeito do significado da constituicao, deu-se conta de que por melhor que fosse, uma Constituicao nao passaria "de uma coisa de branco, de uma forma de expressao de um direito que continuava sendo de dominador". O indigena Ailton Krenak, que proferiu antologico discurso durante a constituinte, afirma que para os indigenas a ocasiao significou uma experiencia de redescobrir o pais. Segundo ele "depois de escapar do genocidio, os indios descobriram o Brasil na luta pelo direito de estar presente aqui" (KRENAK, 2018).

Mobilizados, em grande parte, pelo Conselho Indigenista Missionario - CIMI e tambem pela Uniao das Nacoes Indigenas - UNI, mais do que readquirir direitos atropelados pela ditadura, as liderancas indigenas deslocaram-se para Brasilia no intuito de reivindicar suas condicoes existenciais, visceralmente atreladas ao seu direito de permanecer em suas terras. Com isto nao queremos afirmar que os indigenas nao tiveram direitos violados pela ditadura, mas, antes, que sequer seus direitos mais primordiais eram garantidos pelo Estado (5). Ate o momento da Constituinte um numero muito pequeno de indigenas possuia algum conhecimento sobre as estruturas juridicas, politicas e administrativas do Estado Brasileiro, o que impedia qualquer participacao em termos efetivamente igualitarios. Dispostos a ter voz diante de uma estrutura que nunca os ouviu, desejavam falar, na constituinte, sobre as demarcacoes de suas terras, a educacao escolar de seus filhos, a singularidade de suas culturas, a disponibilizacao economica de suas terras e seus recursos naturais, as grandes obras em seus territorios, as remocoes de suas aldeias e a atividade garimpeira e mineratoria.

As liderancas indigenas, e seus parceiros (ABA, CIMI, Conage, SBPC), desejavam inscrever na constituicao o direito originario sobre suas terras e o fim ao carater assimilacionista e tutor da politica indigenista, que os definia como grupos incapazes e, de certo modo, anacronicos do positivismo evolucionista das decadas anteriores. Tal inscricao partiu-se do principio de que o direito originario e "precedente e superior a qualquer outro que, eventualmente, se possa ter constituido sobre o territorio dos indios...", bem como que a demarcacao das terras "tem unica e exclusivamente a funcao de criar uma delimitacao espacial da titularidade indigena [...]. A demarcacao nao seria constitutiva, "aquilo que constitui o direito indigena sobre as suas terras e a propria presenca indigena e a vinculacao dos indios a terra [...]" (ANTUNES, 1996).

Assim, os anos de 87 e 88 registraram a primeira Assembleia Nacional Constituinte da qual participaram, ainda que sem voto, representantes indigenas. Um momento inedito no qual os indigenas de diversos povos posicionaram-se diretamente no dialogo com uma estrutura que, desde o seculo XVI, legislava sobre suas vidas sem consulta-los, e que nao se moveria tao facilmente para tal (6).

A organizacao da Constituinte foi liderada pela coalizao autodenominada Alianca Democratica (partidariamente representada pela coalizao PMDB-PFL e institucionalmente pelo Governo Jose Sarney) (ROCHA, 2013). Apesar de nova, ela representava a composicao de forcas cujas posicoes e emblemas mantinham o padrao da velha ordem, o periodo autoritario da ditadura militar no qual, lembre-se, ao menos 8 mil indios foram mortos (7). Ainda que isso nao seja suficiente para comprometer as conviccoes mudancistas do grupo, convem ter em mente que o ritmo de uma mudanca e, em grande parte, regulado pela composicao da elite que a dirigiu (LESSA, 1986). Sob esta organizacao a Constituinte se estendeu por 612 dias, processou mais de 62.000 emendas, teve cinco rodadas completas de votacao apenas no plenario que preenchem 327 volumes arquivados na biblioteca da Camara Federal (GOMES, 2013).

A primeira versao de um dispositivo constitucional que impulsionou as discussoes em torno dos direitos territoriais indigenas foi produto da Comissao Afonso Arinos (8) que, apresentou sua proposta em setembro de 1986. Elaborada pelo jurista Jose Afonso da Silva, a proposta estava em conformidade, em diversos pontos, com o que vinha sendo discutido pelas liderancas indigenas (9),vez que o jurista a submeteu a diversas organizacoes indigenistas que com os indigenas dialogavam a esse respeito (ver nota 5). Em dezembro do mesmo ano a Uniao das Nacoes Indigenas apresentou uma proposta a comissao Arinos ressaltando ou modificando determinados pontos, como a substituicao da expressao silvicolas por indios, o destaque para o carater exclusivo dos indigenas no usufruto das riquezas do solo e subsolo, o acrescimo da natureza juridica de bens publicos federais indisponiveis as terras indigenas, a enfase na legitimidade de indigenas ou comunidades indigenas enquanto partes ingressantes em juizo para defesa de seus interesses e o destaque na prevalencia de seus usos, costumes e tradicoes as previsoes legais comuns em atos e negocios. A proposta contemplava, portanto, a previsao da inalienabilidade das terras por eles ocupadas, a possibilidade de exploracao das riquezas naturais das terras pelos indigenas; a nulidade e extincao de efeitos juridicos decorrentes de negocios que tenham por objeto tais terras; a intervencao do Ministerio Publico nas acoes judiciais nas quais indigenas estivessem envolvidos, bem como o reconhecimento de acoes judiciais propostas por indigenas ou grupos de indigenas.

O Anteprojeto elaborado pela Comissao absorveu em seu texto diversas sugestoes apresentadas pelos representantes dos povos indigenas, mas cedeu a continuidade da tutela estatal, mantendo a restricao da capacidade civil dos indigenas, uma vez que condicionava a validade juridica dos contratos por eles firmados a participacao obrigatoria de suas organizacoes federais protetoras (art. 382, [section] 3.). O texto, todavia, jamais foi remetido formalmente a Constituinte. Embora encomendado pelo Executivo, "seus conteudos parlamentaristas, democratizantes e 'progressistas'" (10) nao se afeicoavam as expectativas do Presidente da Republica, Jose Sarney.

Veja-se o que conta Gisele Cittadino sobre este evento (CITTADINO, 2004):

"E verdade que sempre foi publica a discordancia de Sarney em relacao ao parlamentarismo, mas sua decisao de nao enviar o anteprojeto da Comissao ao Congresso Constituinte parece estar ancorada em mais de uma razao. A declaracao do deputado Jose Genoino, do PT de Sao Paulo, ao jornal Correio Brasiliense, em 10/6/88, resume bem estes motivos: 'Para falar a verdade, o anteprojeto dos Notaveis e bem melhor que o texto aprovado pela Comissao de Sistematizacao, de uma maneira Geral. O Presidente Sarney o engavetou justamente porque era avancado demais.' Ainda que nao tenha sido formalmente encaminhado a Constituinte, para servir de subsidio, como inicialmente previsto por Tancredo Neves, o anteprojeto da Comissao nao foi esquecido. Das mais variadas formas ele circulava nos bastidores do Congresso. Informalmente, partes significativas do seu texto foram copiadas por constituintes, o que levou o deputado Manuel Moreira, do PMDB paulista, a observar: 'No lugar de plagiar, vamos examinar logo o original.'" A Comissao desagradou tambem a OAB, visto que a Ordem a via como uma ameaca a...

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