Os direitos intelectuais do arquiteto

AutorJosé Roberto Fernandes Castilho
Páginas119-145

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La arquitectura es lo que queda cuando se retira la piedra.

Michelangelo1

I Introdução

A obra arquitetônica é, por definição, obra plástica consubstanciada em forma durável. Assim, no campo da realização artística, cumpre observar que a obra arquitetônica ou urbanística não se materializa instantaneamente, ou quase instantaneamente, como a obra musical, por exemplo, ou mesmo a obra literária. Dado este fato, analisaremos no presente texto certos direitos intelectuais específicos do profissional da Arquitetura, notadamente os que têm por fundamento o possível descompasso entre projeto e obra – ou entre arquitetura e construção –, o que caracteriza claro ato ilícito. A partir deles, pode-se concluir acerca da existência de um subsistema de proteção dos direitos intelectuais do autor-arquiteto.

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O projeto é a antevisão ou prefiguração da obra mas é certo que a edificação propriamente demanda processo complexo de transformação da forma em matéria2, que se perfaz no tempo, mediante várias etapas, podendo encontrar problemas específicos de realização (intercorrências) pelos vários “agentes da edificação” envolvidos. Assim, entre a concepção intelectual da edificação e, ao depois, sua construção, ocorrem diversos fatores que podem interferir na própria criação arquitetônica ou urbanística primitiva, adulterando-a. É exatamente para garantir a integridade da criação aquando de sua transitivação, isto é, de sua inserção no mundo real, que se apresentam os direitos dos quais trataremos. O art. 24/V da Lei nº
9.610/98 é claro ao estabelecer como direito moral de autor “o de modificar a obra, antes ou depois de utilizada” (destaquei), o que decorre da anterior declaração constitucional3. Só o titular dos direitos autorais poderá fazer isso: outras pessoas, mesmo o dono da edificação, por exclusão não podem.

Então, dado aquele possível desajuste projeto/obra, tais direitos são, antes, direitos de proteção da criação e do criador intelectual no campo da Arquitetura, para evitar que seja concebida uma edificação e seja realizada outra, fato que atentaria contra os direitos autorais do arquiteto, trazendo-lhe prejuízos. Na verdade, algumas legislações chegam a punir penalmente a modificação do projeto devidamente aprovado pela autoridade, durante a execução da obra. É o caso do Código Penal alemão de 1871 que estabelecia a seguinte contravenção: submete-se à pena de multa “quem, como

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construtor, arquiteto ou operário de construção, executa ou deixa de executar uma obra ou conserto, para o qual é necessária aprovação da polícia, sem esta aprovação ou com arbitrária modificação da planta aprovada pela autoridade” (art. 367/XV, destaquei). Isto continua a ser previsto em outros ordenamentos urbanísticos, como o francês. Neste caso, o que se protege diretamente é o ato da autoridade pública que aprovou o projeto. Porém, é evidente que a alteração de elementos projetuais, por si só, já constitui fato irregular violando tanto o direito do arquiteto autor do projeto (e só o projeto arquitetônico ou urbanístico ou esboço gera direitos, não o mero croquis apócrifo) quanto a licença da autoridade, que incidiu sobre uma proposta específica que lhe foi submetida.

II Estrutura dos direitos de autor

Os direitos de proteção da obra intelectual inserem-se no campo dos Direitos Autorais, que constituem ramo do Direito Civil, como ensina a doutrina tradicional4, ou “ramo especial” do Direito, por suas particularidades, como pretendem outros, com entendimento divergente. Há, de fato, peculiaridades que os singularizam. Os direitos autorais são direitos híbridos porque têm duas faces: (a) os direitos morais de autor que criam vínculos inalienáveis e irrenunciáveis entre autor e obra, com várias dimensões (art. 24 da lei autoral); e (b) os direitos patrimoniais de autor, ou seja, de explorar economicamente a obra, como pretender o seu titular (art. 28 da mesma lei de 1998). Se os primeiros são direitos personalíssimos, extrapatrimoniais, apenas estes últimos estão no mercado e são transmissíveis, onerosamente ou não, por prazo certo ou indeterminado. O titular dos direitos autorais, portanto, pode ser o próprio

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criador ou não: em se tratando de obra pública, por exemplo, a lei exige expressamente a cessão dos direitos patrimoniais como condição de recebimento do projeto (art. 111 da Lei nº 8666/93, que é a lei de licitações e contratos).

Para ser protegida, a criação arquitetônica não precisa de regis-tro formal algum mas deve ter o requisito essencial da originalidade. Portanto, a criação original no campo da Arquitetura é que gera, de imediato, dela própria, direitos autorais para o seu criador, independente de registro em qualquer órgão porquanto a criação cultural é considerada emanação da personalidade do artista (princípio da proteção automática). O registro da obra projetual original – ao contrário do que ocorre com a patente (e a propriedade industrial)5

– é facultativo, apenas facilitando a comprovação da autoria. Se pretender registrar a criação para melhor salvaguarda dos seus direitos, o arquiteto pode fazê-lo, atualmente, no CONFEA (cf. Resolução nº 1.029, de 17 de dezembro de 2010). Mas é certo que o CAU-BR deverá disciplinar novamente o assunto.

De outra parte, os direitos autorais são direitos relativos ao trabalho original de profissional da Arquitetura porque é exatamente a “intenção plástica” que, no dizer de Lucio Costa, distingue aquela arte da simples construção, expressão da pura técnica com intuito meramente funcional6(como se vê nos conhecidos “caixotes” de concreto e vidro, de criatividade quase nula). Por envolver aspectos técnicos, estruturais, e artísticos, as normas referentes a tais direitos de proteção situam-se seja na nossa lei autoral geral (Lei nº
9.610/98), seja nas leis vigentes que disciplinam hoje a profissão de arquiteto (Lei nº 5.194/66, Capítulo II – Da responsabilidade e au-

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toria, e Lei nº 12.378/10, Dos Acervos Técnicos7), como veremos. Tanto é certo que a fonte normativa é dupla que os direitos se interpenetram na exata dimensão de sua dinâmica, que pretendemos aqui sistematizar.

Base da Arquitetura entendida como Arte, o pressuposto da originalidade é bastante polêmico e precisa ser bem compreendido. Obra original é obra inconfundível com outra, nada obstante siga os princípios de certo estilo (não importa qual seja ele), repertório formal de determinada época. Originalidade não quer dizer total e absoluta novidade, o que exigiria que cada arquiteto tivesse a mesma genialidade de um Oscar Niemeyer ou Paulo Mendes da Rocha, por exemplo. Tal não ocorre. Mesmo a obra escassamente original, que não aspire à “condição de música”, tem proteção legal. Porém grife-se que não é a pura funcionalidade que determina a originalidade mas a estética seja de um detalhe do projeto (notadamente, a fachada sobre a qual, no passado, havia até concursos ou, do contrário, juízo de reprovação8), seja do conjunto de toda a obra (como o projeto de arquitetura de interiores de um restaurante, por exemplo). Numa lide, a perícia técnica irá confrontar os projetos e verificar as semelhanças de soluções entre eles.

Em acórdão de 2006, concernente aos direitos autorais sobre obra fotográfica, o tribunal fez a seguinte distinção: “Importa desvendar o requisito da originalidade. Pode ser entendida por comparação com seu contrário, não protegido pelo ordenamento, a trivialidade. A forma expressa deve ser pessoal e inconfundível. Não está em jogo,

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nessa consideração, o valor estético. Os tribunais não são, é escusado dizê-lo, críticos de arte. Não se pronunciam sobre a capacidade de agradar ou dar prazer. Originalidade quer dizer, simplesmente, relativa novidade. Para dar um exemplo, as cópias de obras plásticas feitas por certos museus, para exibição ao público, enquanto restauram ou protegem o original, costumam ser tão belas e impressionantes quando o último, mas não são originais”9.

No domínio da Arquitetura, deve-se ressaltar que dispõem de tais direitos exclusivos tanto o autor de projeto arquitetônico original quanto o autor de projeto urbanístico original (um plano, uma requalificação, uma urbanização qualquer), embora nossa lei só se refira ao primeiro. A propósito, a lei portuguesa é clara ao incluir dentre as obras protegidas pelo Direito de Autor os “projetos, esboços e obras plásticas respeitantes à arquitetura, ao urbanismo, à geografia ou às outras ciências” (Código de Direito do Autor, Lei nº 45/85, art. 2º/1/”l”). O art. 25º do mesmo Código estabelece que “o autor de obra de arquitetura, de urbanismo ou de design é o criador da sua concepção global e respectivo projeto”. Nossa lei não é explícita a respeito do urbanismo, demandando interpretação ampliativa do texto posto, que cumpre seja feita mesmo haja vista que o urbanismo igualmente produz obras originais. Lucio Costa, por exemplo, diz que Brasília foi uma “cidade inventada”, embora não seja preciso chegar-se a tamanha escala para garantia de quaisquer direitos intelectuais10.

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III Direito de acompanhamento da obra

Em meados do XIX, John Ruskin no capítulo inicial de seu clássico estudo The seven lamps of architecture já dizia ser necessário distinguir cuidadosamente arquitetura e construção (“building”) que, na prática, se amalgamam. A construção teria apenas valor funcional enquanto a Arquitetura soma valor funcional e estético. O projeto arquitetônico consubstancia determinada concepção artística que molda e determina a construção. Como escreve José de Oliveira Ascensão11, “obra de arquitetura não é a construção na sua materialidade, mas a realidade incorpórea, encarnada ou...

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