O direito em movimento
Autor | Paranaguá, Pedro - Branco, Sérgio |
Páginas | 93-121 |
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Licença e cessão de direitos
A licença e a cessão: autorizações necessárias
Normalmente, o artista cria por demanda de sua criatividade. Tornou-se famosa uma entrevista dada pela escritora Rachel de Queirós em que uma jornalista lhe indagou se era verdade que preferia o jornalismo à literatura. Recebendo uma resposta afirmativa, a jornalista lhe perguntou, então, por que ela produzia literatura, ao que a escritora teria respondido com a seguinte pergunta: “Você já pariu?” Diante da negativa da entrevistadora, ela completou: “Quando se fica grávida, é imperativo parir”.61
Uma vez criada a obra, o artista geralmente gosta de vê-la circular, de modo a atingir o maior número possível de pessoas, para que nelas cause a impressão desejada. Como em regra apenas o autor pode dar origem à circulação da obra, a LDA prevê os mecanismos de autorização para que a obra chegue ao público.
Na prática, o que se verifica é que um músico precisa de alguém que fixe o fonograma e faça cópias de seus CDs; o escri-
61 Disponível em:
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tor precisa de uma editora; o roteirista de uma obra audiovisual precisa de uma produtora e assim por diante. Com o avanço da tecnologia, a necessidade de intermediários vem diminuindo consideravelmente, a ponto de, hoje em dia, vários artistas produzirem e distribuírem as próprias obras. Mas mesmo esses dificilmente escapam da necessidade de, em maior ou menor grau, celebrar contratos relacionados aos direitos autorais de suas obras.
A matéria relativa à circulação de direitos autorais está pre-vista na LDA, a partir do art. 49. Diz este que os direitos de autor podem ser total ou parcialmente transferidos a terceiros, por ele ou por seus sucessores, a título universal ou singular, pessoalmente ou por meio de representantes com poderes especiais, mediante licenciamento, concessão, cessão ou por outros meios admitidos em direito.
Caracteriza-se a cessão pela transferência da titularidade da obra intelectual, com exclusividade para o(s) cessionário(s). Já a licença é uma autorização dada pelo autor para que um terceiro se valha da obra, com exclusividade ou não, nos termos da auto-rização concedida. Ou seja, a cessão assemelha-se a uma compra e venda (se onerosa) ou a uma doação (se gratuita), e a licença, a uma locação (se onerosa) ou a um comodato (se gratuita).
A própria LDA prevê algumas limitações concernentes à possibilidade de transmissão total (cessão total) dos direitos autorais. As principais são as seguintes:
● a transmissão total deve compreender todos os direitos de autor, exceto naturalmente os direitos morais, que são intransmissíveis, e aqueles que a lei excluir (art. 49, I);
● a cessão total e definitiva depende de celebração de contrato por escrito (art. 49, II);
● caso não haja contrato escrito, o prazo máximo de cessão dos direitos será de cinco anos (art. 49, III);
● a cessão se restringirá ao país em que se firmou o contrato (art. 49, IV);
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● a cessão somente poderá se operar para modalidades de utilização já existentes quando da celebração do contrato (art. 49, V);
● a interpretação do contrato, sendo restritiva, terá como consequência que, não havendo especificação quanto à modalidade de utilização, entender-se-á como limitada apenas a uma que seja aquela indispensável ao cumprimento da finalidade do contrato (art. 49, VI);
● a cessão total ou parcial dos direitos de autor presume-se one-rosa (art. 50);
● a cessão dos direitos de autor sobre obras futuras abrangerá, no máximo, o período de cinco anos (art. 51).
A quem pertencem os direitos nos casos de contrato de trabalho e de prestação de serviços?
A antiga lei autoral, a Lei nº 5.988/73, determinava, em seu art. 36, que, se a obra intelectual fosse produzida em cumprimento a dever funcional ou contrato de trabalho ou de prestação de serviços, os direitos de autor, salvo convenção em contrário, pertenceriam a ambas as partes. No entanto, a LDA não deter-mina a quem pertencem os direitos autorais de obras produzidas a partir de contrato de trabalho ou de prestação de serviços. Dessa forma, em geral as partes devem determinar, por meio contratual, a quem pertencem esses direitos. Trataremos desse assunto nas seções a seguir.
O caso Amor, estranho amor: Xuxa para maiores
Maria da Graça Meneghel, mais conhecida como Xuxa, protagonizou ao lado de Vera Fischer e Tarcísio Meira, em 1982, o filme erótico Amor, estranho amor, dirigido pelo célebre Walter Hugo Khouri. Na época da produção do filme, Xuxa era modelo iniciante e sua fama decorria sobretudo de seu namoro com o rei
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do futebol, Pelé. A futura “Rainha dos Baixinhos” havia estreado no cinema no filme Fuscão preto, imediatamente antes de participar de Amor, estranho amor.
Ocorre que, no filme de Khouri, Xuxa interpreta uma pros-tituta que seduz um menino de 12 anos, interpretado por Marcelo Ribeiro. Como, a partir de 1983, ano seguinte ao da produção do filme, Xuxa passou a se dedicar à carreira de apresentadora de programas infantis, sua participação em Amor, estranho amor se tornou um fardo para ela.
Como é notório, Xuxa propôs ações judiciais62para impedir a veiculação do filme em vídeo, formato cuja venda explodiu em meados dos anos 1980. As ações foram propostas por Xuxa Promoções e Produções Artísticas Ltda. e por Maria da Graça Meneghel, a Xuxa, contra a CIC-Vídeo Ltda. e a Cinearte Produções Cinematográficas Ltda. Para facilitar a compreensão do caso em análise, trataremos Xuxa como autora e as rés genericamente, sempre que não identificadas.
A primeira ação consistia em medida cautelar de busca e apreensão, com pedido de liminar, de fitas de videocassete reprodutoras do filme Amor, estranho amor, sob a alegação de utilização não autorizada do referido filme através de vídeo, já que o contrato com a apresentadora previa apenas a veiculação do filme em cinemas. Alegava ainda a autora que a exploração comercial do filme por meio de videocassete tornava a obra aces-sível ao público infantil, para o qual passara a exercer sua atividade principal.
A segunda ação, ordinária, pleiteava indenização da distribuidora do filme, a CIC-Vídeo Ltda., postulando perdas e danos pela distribuição desautorizada do vídeo. Entre os diversos pedidos apresentados, destacamos:
62 TJ-RJ, Ap. Cível nº 3.819/91. Informações disponíveis em Direito Autoral, 2000.
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● pedido de danos morais por parte da autora em decorrência da exibição de sua nudez para o público privado ligado então às suas atividades de apresentadora;
● pedido de danos materiais, que deveriam refletir a remuneração a que faria jus a autora se tivesse consentido na distribuição do vídeo, entre outros segmentos.
A decisão de primeiro grau acolheu substancialmente os pedidos da autora, exceto quanto aos danos morais pleiteados.
Em sede recursal, foram mantidas as decisões proferidas em primeiro grau, destacando-se do acórdão os seguintes excertos:
● Aplicado o princípio ao caso vertente, depreende-se que as partes só cogitaram de uma prestação de serviços temporários e de cunho artístico. Portanto, a divulgação através de videocassete não é propaganda, é fato não cogitável no contrato e, portanto, comercialização por outra forma que encerra no caso presente um enriquecimento sem causa, na medida em que é dogma constitucional que a todo trabalho deve corresponder uma remuneração específica.63● No ângulo estritamente legal, socorre-nos a Lei 5.988/73, especificamente em seus artigos 3º e 35, ao considerar que são formas de utilização da obra intelectual as reproduções levadas a efeito pelas demandas, e que essas formas são independentes entre si, não se podendo considerá-las embutidas no contrato, uma vez que os negócios referentes à propriedade imaterial dos artistas, tal como a voz, a imagem e a expressão corporal, são sempre interpretados restritivamente (...).
● As autoras, por isso, agiram certo ao buscar a vedação da comercialização por um sistema não previsto no pacto, a alcançar
63 Grifos no original.
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um público privado inteiramente diverso daquele que era o destinatário do filme: o freqüentador de cinemas públicos. Os demandados procuraram levar o caso para o lado de que o interesse das promoventes da causa seria material, o de participar dos lucros com a venda dos videocassetes, mas, na verdade, não é isso que se sente do processado.
● Após o lançamento da fita, ocorrido em 1982, a segunda autora
[Xuxa] se projetou, nacional e internacionalmente, com programas infantis na televisão, criando uma imagem que muito justamente não quer ver atingida, cuja vulgarização atingiria não só ela própria, como crianças que são o seu público, ao qual se apresenta como símbolo da liberdade infantil, de bons hábitos e costumes e da responsabilidade das pessoas.
● É evidente que o sucesso que tornou Xuxa uma das maiores atrações televisivas deu motivo a que a ré e a denunciada se interessassem mais em explorar a sua imagem, deixando de lado até as dos outros grandes artistas que participaram do filme, para relançamento da película, em 1987, em grandes cadeias de cinema e lançamento de videocassete, com publicidade que aliava a nudez em que aparecera à sua condição nova de Rainha dos Baixinhos.
● Todas essas circunstâncias justificam o reconhecimento do acerto da decretação da procedência da medida cautelar e do direito a perdas e danos, bem estabelecidos no julgamento em duas parcelas, uma relativa à retribuição daquilo a que faria jus atualmente se autorizasse a reprodução de sua imagem através de videocassete — em razão de usurpação e ocorrência de enriquecimento ilícito...
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