Direito a identidade: etnofotografias na Praca da Se/Identity rights: ethno-photographies in Praca da Se.

AutorSalgado, Gisele Mascarelli

Eletrizados/Cruzam os ceus do Brasil/Na rodoviaria/Assumem formas mil /Uns vendem fumo/Tem uns que viram Jesus/Muito sanfoneiro/Cego tocando blues/Uns tem saudade/E dancam maracatus/Uns atiram pedra/Outros passeiam nus. (Chico Buarque de Holanda em Brejo da Cruz) Introducao

Direitos da personalidade englobam aqueles relativos ao controle do uso do corpo, nome, imagem, aparencia ou quaisquer outros aspectos formadores da identidade. Visam proteger a dignidade, regulando as acoes de reconhecimento entre sujeitos como condicao essencial para o desenvolvimento das potencialidades fisicas, psiquicas e morais. A interacao social cria vulnerabilidades as identidades de todos os sujeitos, uma vez que a construcao e a manutencao de uma relacao positiva consigo mesmo so e atingivel com a ajuda da concordancia e das reacoes afirmativas de outros sujeitos. Nos termos de Honneth (1997, p. 24): "sem a referencia a esses pressupostos intersubjetivos e completamente impossivel explicar porque uma pessoa sofre danos quando um aspecto especifico do entendimento de si proprio e destruido por certas acoes, falas ou circunstancias". Portanto, os direitos da personalidade, positivados em legislacoes de diversos paises e tratados em capitulo proprio no Codigo Civil Brasileiro de 2002 (artigos 11 a 21) tem uma origem moral: apoiam-se no principio de que todos tem o direito a construcao e manutencao de uma relacao positiva consigo mesmo e pressupoe que as acoes de reconhecimento de outros sujeitos tem um papel decisivo na realizacao desse direito, o que justifica a preocupacao dos legisladores em regular essas acoes entre sujeitos.

Entretanto, entre o direito positivado nos codigos e o vivenciado pelos sujeitos em sua existencia social concreta ha profundos abismos. Se o percurso do pensamento moral (filosofico) para a positivacao juridica foi realizado, o impacto da positivacao na regulacao da acao concreta dos sujeitos sociais ainda esta longe de ser alcancado, em especial quando se refere a maneira como a subclasse vivencia esses direitos. O direito a identidade e socialmente significado de maneira seletiva, persistindo uma recusa de sua extensao a subclasse ou, em outras palavras, uma recusa a legitimar a subclasse como um sujeito coletivo desse direito. Como sustenta Bauman (2005, p. 46):

Se voce foi destinado a subclasse (porque abandonou a escola, e mae solteira, vivendo da previdencia social, viciado, ou ex-viciado em drogas, sem-teto, mendigo ou membro de outras categorias arbitrariamente excluidas da lista oficial dos que sao considerados adequados e admissiveis), qualquer outra identidade que voce possa ambicionar ou lutar para obter lhe e negada a priori. O significado da "identidade de subclasse" e a ausencia de identidade, a abolicao ou negacao da individualidade, do "rosto"--esse objeto do dever etico e da preocupacao moral. Voce e excluido do espaco social em que as identidades sao buscadas, escolhidas, construidas, avaliadas, confirmadas, ou refutadas. Integracao e exclusao sao duas faces complementares da identidade, uma maneira contemporanea de significar nao so as igualdades e diferencas, mas tambem as fronteiras entre Nos e Outros. Assim, o objetivo desse artigo foi explorar, a partir de um estudo etnofotografico na Praca da Se (Sao Paulo--SP) realizado durante o ano de 2013, como a subclasse, na maneira como definida por Bauman (2005), negocia e constroi suas identidades e, dessa forma, vivencia, ou deixa de vivenciar, o Direito a identidade.

  1. Subclasse e identidades

    Quando Bauman (2005) sustenta que o significado da identidade de subclasse e a ausencia de identidade e a negacao da individualidade, o que ele busca revelar e uma visao externa, ou seja, a visao do restante da sociedade sobre a subclasse. Isso nao significa que os membros da subclasse nao construam e negociem identidades multiplas e diferenciadas nas relacoes entre si e mesmo nas relacoes, normalmente conflituosas, com outros membros da sociedade civil e com os representantes do aparelho de Estado (policiais, defensores publicos, juizes, promotores, etc.), mas simplesmente que essas se tornam invisiveis aos demais e somente aos demais. Obviamente, os membros de cada comunidade de pessoas pertencentes a subclasse reconhecem as identidades e individualidades de cada um, chegando mesmo a desenvolver ao mesmo tempo um senso de diferencas entre eles e de um destino comum, alem de lacos de afetividade, sentimentos de justica, solidariedade e conflito, como ficou evidenciado na pesquisa de campo da qual esse artigo trata adiante. Se ha, ainda nas palavras de Bauman (2005), uma recusa a priori a identidade da subclasse, ha tambem uma resistencia coletiva e individual, uma luta pelo reconhecimento que se instala no interior dessas comunidades, com reflexo nas acoes desses sujeitos tanto a nivel intracomunitario quanto extracomunitario.

    O termo comunidade e aqui usado com referencia a uma coletividade humana circunscrita a um espaco geografico e existencial, ou, em outras palavras, pessoas que vivem atadas por lacos de convivencia e que compartilham uma condicao social e, em alguma medida, um destino. Se e verdade que ha identidades que dao sentido a e que, portanto, definem uma comunidade, tambem e verdade que essas identidades nao sao algo monolitico, univalente e sem ambiguidades e conflitos. Ha aqueles que nasceram de familias vivendo nas ruas e ha aqueles que, por algum motivo, tiveram que se inserir nessa comunidade em um momento de suas vidas e, dentre esses, aqueles cuja situacao de rua sera temporaria ou que pelo menos e vivenciada como tal. Bauman (2005), referindo-se a sua experiencia de polones vivendo na Inglaterra, qualifica essa situacao como desconfortavel e por vezes perturbadora. Suas palavras podem servir para descrever a situacao dos moradores de rua:

    Sempre ha alguma coisa a explicar, desculpar, esconder ou, pelo contrario, corajosamente ostentar, negociar, oferecer e barganhar. Ha diferencas a serem atenuadas ou desculpadas ou, pelo contrario, ressaltadas e tornadas mais claras. As "identidades" flutuam no ar, algumas de nossa propria escolha, mas outras infladas e lancadas pelas pessoas em nossa volta, e e preciso estar em alerta constante para defender as primeiras em relacao as ultimas. Ha uma ampla probabilidade de desentendimento, e o resultado da negociacao permanece eternamente pendente (Bauman, 2005, p. 19). Ha tambem, entre os moradores de rua, aqueles que exercem atividade laboral, recebendo rendimentos em subempregos formais ou nao. Sao, portanto, tecnicamente, membros da classe trabalhadora e que se diferenciam, e se percebem diferentes, nao somente na esfera economica, mas, tambem, em termos identitarios do lumpesinato com o qual dividem o mesmo espaco. Entretanto, essa diferenca some aos olhos daqueles que, passantes, nao compartilham o mesmo espaco existencial, mesmo que, eventualmente, compartilhem o mesmo espaco geografico. A esses trabalhadores, membros de uma classe, tambem e negada qualquer outra identidade a nao ser a de subclasse, o que evidencia tanto a invisibilidade e a exiguidade dos espacos de negociacao concedidos a essa comunidade pelos demais membros da sociedade quanto o aspecto territorial do estigma a eles imposto: o fato de ser morador de rua, vivendo em um espaco particularmente estigmatizado da geografia urbana, sobrepoe-se a situacao de classe no que diz respeito a atribuicao de identidades. Sobre o estigma que se cola a certas areas urbanas Wacquant (2007, p. 66) afirma que:

    Ao inves de estar disseminada em territorios ocupados pelas classes trabalhadoras, a marginalidade avancada tende a se concentrar em areas cada vez mais isoladas e delimitadas, percebidas por ambos os lados, o de dentro e o de fora, como purgatorios sociais, terra de leprosos no coracao das metropoles posindustriais, onde apenas o refugo da sociedade aceitaria habitar. Quando esses 'espacos penalizados' (PETONNET, 1982) sao, ou ameacam tornar-se, artefatos permanentes da paisagem urbana, discursos difamatorios proliferam e se grudam a esses espacos 'de baixo' nas interacoes simples da vida cotidiana, e 'de cima', no campo do jornalismo, policial e burocratico (e ate mesmo cientifico). Uma mancha e assim sobreposta aos estigmas ja existentes e tradicionalmente associados a pobreza e a origem etnica ou condicao de imigrante pos-colonial a qual esta intimamente ligada, mas nao e redutivel. E notavel que Erving Goffman (1963) nao tenha mencionado o lugar de residencia como uma das disabilites que podem 'desqualificar o individuo e privar-lhe da total aceitacao dos outros'. No entanto, a infamia territorial apresenta propriedades analogas as de natureza fisica, moral e dos estigmas tribais, e coloca dilemas de gestao da informacao, identidade e relacoes sociais muito similares a estes, ao mesmo tempo em que guarda propriedades especificas e proprias. Dos tres principais tipos de estigma catalogados por Goffman (1963)--abominacoes do corpo, manchas de carater individual e marcas de raca, nacao e religiao - e ao terceiro que o estigma territorial e semelhante, uma vez que, como este, 'pode ser transmitido hereditariamente e igualmente contaminar todos os membros de uma familia'. Mas, ao contrario desses selos de desonra, o estigma territorial pode ser facilmente dissimulado e atenuado, mesmo anulado, por meio da mobilidade geografica. As questoes relacionadas ate o momento expressam as dificuldades e ambiguidades na propria caracterizacao sociologica dessa populacao. Thoburn (2002) destaca essa complexidade conceitual, presente desde os primordios da sociologia, ressaltando, inclusive, que o termo lumpenproletariat e instavel na obra de Marx e Engels e que outros termos sao usados no percurso dessa obra para caracterizar o mesmo tipo de coletividade. Isso e, ainda segundo o autor supra, uma evidencia de que o lumpenproletariat nao seria uma identidade em si, um grupo social a priori. Na verdade, a distincao entre o...

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