O direito fundamental à saúde e o acidente de trabalho: por uma investigação mais precisa do nexo causal

AutorSilvio Beltramelli Neto; Paola Stolagli Lustre
Páginas142-170

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Introdução

A denominação “acidente do trabalho”, hoje, de forma abrangente, incluindo também as doenças proissionais e outros eventos acidentários, nos é dada pela Lei de Planos e Benefícios da Previdência Social (Lei n.
8.213, de 24 de julho de 1991), em seus arts. 19 e 20. A partir da previsão legal, infere-se que integram o conceito de acidente o fato lesivo à saúde física ou mental que, ligado ao exercício do trabalho, resulte em morte ou em redução da capacidade laborativa. O nexo causal é a relação de causa e efeito que se tem entre o infortúnio e o trabalho, de forma que qualquer lesão que seja resultante de acidente de outra origem não será considerada acidente do trabalho.

Não obstante a quantidade e a complexidade de normas que estabelecem obrigações aos empregadores e empregados, relativas à saúde e segurança laboral, verifica-se um elevado número de acidentes do tra-balho. Todavia, a investigação das causas desses infortúnios, sobretudo nos âmbitos da empresa e do Poder Judiciário tende, historicamente, a concentrar-se na igura do acidentado e em seu comportamento, aliados às circunstâncias mais aparentes do microespaço em que as atividades eram pela vítima desempenhadas. Em decorrência, o debate acerca da existência de ato inseguro por parte do trabalhador ainda domina as lides relativas a acidentes de trabalho.

A percepção de que o acidente de trabalho consiste em sério agravo à integridade física ou mental do trabalhador, embora óbvia, costuma ocultar-se no bojo das discussões jurídicas desatadas após o ato lesivo consumado. Dito de outro modo, a violação de um direito humano e fundamental, o direito à saúde, perde relevância em meio ao confronto de teses apresentadas unicamente na perspectiva econômica da reparação pela responsabilidade civil, ante uma lesão já havida.

Em sendo comumente assim, uma mudança de postura que resgate a dramaticidade de um evento grave como o é qualquer acidente de trabalho

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frente à investigação de suas causas deve, necessariamente, por em relevo, para além da mera discussão (econômica) com vistas ao ressarcimento do dano consumado, a ocorrência de uma violação a um direito humano cuja fruição condiciona a própria existência do indivíduo.

Nessa esteira, o presente trabalho dedica-se a propor uma necessária mudança de paradigma, no que tange à apuração do nexo causal em matéria de acidente de trabalho, para muito além da averiguação centrada na existência ou não de ato inseguro cometido pela vítima do infortúnio.

1. O dever estatal de proteção do direito fundamental à saúde do trabalhador

Sem embargo da necessária análise da obrigação dos particulares que protagonizam a relação de trabalho em face do direito à saúde, interessa, neste instante, focalizar a postura que o Estado deve adotar, inclusive quando do exercício da iscalização e da prestação jurisdicional, frente a situações que envolvem a saúde laboral.

É sabido que a Constituição Federal (CF) consagra o direito humano à saúde como direito fundamental, fazendo-o, em linhas gerais, no seu art. 6º, e especificando-o em seus arts. 196 e seguintes. O art. 196 da CF estabelece que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. Diz, ainda, que o Estado, para a consecução dessa tarefa, deve levar a efeito “políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos”.

Especificamente no que se refere à saúde do trabalhador, o texto constitucional não é menos incisivo e a inclusão da matéria no documento nuclear do ordenamento jurídico nacional não deixa dúvidas de sua importância para a sociedade brasileira.

É direito de qualquer trabalhador a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (art. 7º, XXII, da CF). Tal dispositivo salienta a obrigação do “Estado-Legislador” para com a salvaguarda da saúde do obreiro.

Até mesmo visando potencializar a atenção à saúde laboral, e dotando o Estado de legitimidade para impô-la aos particulares, a mesma Constituição Federal faz questão de admitir a existência de um meio ambiente do trabalho, submetendo-o, por conseguinte, a todo o arcabouço legal protetivo do meio ambiente considerado em todas as suas dimensões (natural, artificial e cultural). Arcabouço esse que se encontra erigido de modo sistematizado

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e com aplicação especíica às relações de trabalho, a partir da articulação de dispositivos constitucionais (arts. 200, VIII c/c 225 c/c 7º, XXII e XXVIII), supralegais49 (Convenção n. 155 da OIT, ratificada pelo Brasil em 1992, seguida de outras dedicadas à saúde e segurança do trabalho, como as Convenções ns. 161, 162, 164, 167, 170 e 176) e legais (Lei n. 6.938/81, arts. 19 a 21 da Lei n. 8.213/91, arts. 155 a 159 da CLT e Normas Regulamentadoras editadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego).

Em se tratando o direito à saúde de um direito humano consagrado pela Constituição Federal — fazendo-o, por isso, um direito fundamental50

—, a hipótese atrai para o Estado brasileiro o dever de proteção, concebido segundo os padrões consagrados nacional e internacionalmente, sobretudo nas searas do direito constitucional e do direito internacional dos direitos humanos, respectivamente.

Ensina Canotilho que os direitos humanos desempenham quatro funções fundamentais: função de defesa ou de liberdade, função de prestação social, função de proteção perante terceiros e função de não discriminação51. Esta classificação coloca em clara evidência o papel de sujeito passivo do Estado frente aos direitos humanos.

A função de defesa ou de liberdade é decorrência da histórica preocupação com a limitação do poder estatal, gênese dos direitos humanos, que põem, então, os interesses do cidadão (em especial a sua liberdade) a salvo da intervenção arbitrária do Estado. A função de prestação social está associada aos direitos humanos cuja concretização (otimização) dependa de providências positivas do Estado, v. g., saúde, educação e segurança. A função de não discriminação deriva da igualdade como pilar da salvaguarda da dignidade da pessoa humana, instando o Estado a tratar seus cidadãos como iguais, em todas as suas instâncias de atuação (administrativa, regulamentadora e julgadora).

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Importa, contudo, a este estudo, dar destaque à função da proteção perante terceiros, a qual, embora igualmente oponível ao Estado, distingue-se da função de prestação social por exigir providências estatais voltadas à proteção dos titulares de direitos humanos em face da violação perpetrada por terceiros (outros particulares). Esta hipótese trata, mais propriamente, de medidas de proteção (ação de proteger para evitar ação de violação) e não de promoção (ação para permitir que direito seja fruído), como visto na função anterior. No exercício da função de proteção perante terceiros, os diferentes órgãos estatais são instados a prevenir e reprimir afrontas a direitos humanos, principalmente mediante providências administrativas (Poder Executivo), edição de leis regulatórias e punitivas (Poder Legislativo) e realização de investigações, julgamentos e imposição de sanções (autoridade policial, Ministério Público e Poder Judiciário).

As quatro funções dos direitos humanos colocam em voga o equívoco, que a teoria das gerações ajudou a consolidar, no sentido de que há diferentes categorias de direitos humanos, as quais acarretam distintos tipos de obrigações, em uma divisão estanque, quais sejam: liberdades públicas geram direitos negativos (de abstenção) e direitos econômicos, culturais e sociais geram direitos positivos (de prestação). Certo é que todo direito humano está apto a ensejar dever de respeito, promoção e proteção.

O dever de respeito é consequência da função de defesa ou liberdade e da função da igualdade (mormente a formal). O dever de proteção desdobra-se da função de proteção perante terceiro. Finalmente, o dever de promoção desdobra-se da função de prestação social e de não discriminação (especialmente a material).

Tomando-se o direito fundamental à saúde como exemplo, o Estado:
(i) cumpre seu dever de respeito quando, por exemplo, observa a obrigação de não se valer da tortura para ins de apuração criminal; (ii) adimple seu dever de proteção, ao legislar em favor da saúde, bem como, em sua função jurisdicional, ao conferir efetividade, no caso concreto transformado em lide, às normas protetivas da integridade física e mental do indivíduo, tais como as disposições de salvaguarda da saúde do trabalhador; e (iii) satisfaz o dever de promoção, por meio de políticas públicas de prevenção e tratamento de agravos à saúde, como se verifica com as atividades previstas para serem realizadas pelo Sistema Único de Saúde.

Conclui-se, pois, no que interessa para os limites deste artigo, que as autoridades estatais envolvidas com a saúde do trabalhador — nesse grupo inserindo-se, dentre outros e com relevância, os Auditores-Fiscais do Trabalho, os membros do Ministério Público do Trabalho e os Magistrados da Justiça do Trabalho — estão juridicamente obrigadas, em virtude do dever

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de proteção dos direitos humanos, a dotar, no caso concreto, de máxima efetividade todo o sobredito complexo de normas dedicadas à proteção da saúde do trabalhador.

E a análise desse arcabouço normativo, a seguir realizada, evidencia objetivo claro de prevenção dos agravos à...

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