Direito fordista e conciliação

AutorHenrique Guelber de Mendonça
CargoMestrando em Direito Processual na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Advogado.
Páginas134-162

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1. Introdução

“Estão conciliados; tenho mais o que fazer”. O excerto é retirado da célebre comédia teatral O Juiz de Paz na Roça, que data de 1838. A simplicidade e a inocência retratadas pela peça de Martins Pena não podem ser trazidas para hoje, pelo menos quando estamos a nos referir aos grandes centros urbanos. Transportamos, pois sobrevivente, para o século XXI, a dinâmica básica da atividade jurisdicional: duas pessoas, um desacordo, um juiz e uma solução. A primeira comédia de costumes do teatro nacional, de inestimável valor histórico, exemplifica-nos tanto a maneira como o juiz deve e, igualmente, como não deve se comportar.

O juiz na obra de Martins Pena, em que pese sua mão autoritária ao enfrentar os “conflitos de galinha”, tem o grande mérito de se deixar transbordar de simplicidade, ou melhor, de se deixar inserir na vida da comunidade como uma pessoa à qual deveriam os reclames ser levados, pois ele faria encontrar a solução. Essa solução que apresentava, e aí o paradoxo e o que demonstra o caráter comportamental e legal do qual deve o magistrado de hoje se afastar, trazia consigo, inevitavelmente, uma ameaça, não a de pagar determinado valor, mas de sofrer uma sanção eminentemente corporal. A prisão arbitrária fazia-se como o principal contra-argumento do qual se utilizava o Juiz de Paz para que suas decisões, igualmente arbitrárias, fizem-se cumprir.

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O que de mais crucial carece de ser sublinhado é o fato de que em cada momento histórico, para cada geração que sucede a outra, valores devem ser sopesados e reavaliados. Hodiernamente, pode o proceder do Juiz de Paz apresentar-se de forma incompreensível e trazer-nos indignação. Daí a chegar à óbvia conclusão de que o juiz de outrora não poderia, jamais, ser o juiz de hoje – e veja-se que sequer estamos a nos referir a juízos de outrora, como o das ordálias – não é tarefa das mais árduas. A sensibilidade da qual atividade jurisdicional deve se vestir é exatamente a de descobrir, e oferecer, aquilo que a sociedade de seu tempo almeja.

O presente trabalho, ancorado no ideal cappellettiano de justiça coexistencial, bem como no modelo que se convencionou chamar de revolução copérnica, se dedicará ao estudo da atividade do juiz e de sua desenvoltura na tentativa de conciliar as partes envolvidas no processo. Buscar-se-á, sem qualquer eufemismo, dizer sobre a realidade, nua e crua, que encontramos no emprego da atividade de conciliação pelos magistrados no processo civil.

O alerta preliminar ao leitor fica por conta da delimitação de nosso objeto. O desenrolar da pesquisa segue a traçar e tentar aprimorar a incumbência do juiz na tentativa de conciliação das partes. Não é nosso alvo específico o labor de conciliadores, mediadores ou juízes leigos, o que já se encontra assaz discutido em doutrina. Explica-se o afirmado pela razão de ser do modo que o jurisdicionado enxerga o próprio juiz, como ficará demonstrado ao se desenvolver o trabalho.

Métodos não-jurisdicionais de solução de controvérsias não estão em choque com o teor da atividade conciliatória. Pelo contrário. Aqui o cenário é de sinergia, não de competição. Tanto é assim que tomaremos emprestado, por exemplo, da mediação técnicas para o aprimoramento da função do juiz.

Em tempos de fast food, muitas das idéias que aqui serão expostas poderão parecer inconciliáveis com o vigente movimento de encurtar o tempo de resposta do judiciário na prestação jurisdicional. Dizeres populares como o tempo é inimigo da perfeição e quem tem pressa come cru, de princípios naturais da vida humana, subsidiarão a tese jurídica que se está a apresentar. Aliás, por qual razão o jurista/legislador vem se afastando de lições das mais franciscanas, inspiradas em ideários jamais suplantados ao longo de centenas e centenas de anos, faz indagar-nos sobre suas reais intenções. No entanto, pouparei o leitor de aqui levantar qualquer “teoria da conspiração” sobre osPage 136interesses que permeiam e pressionam o direito processual civil, que, apenas em tom provocativo, lembramos ser o direito do dinheiro.

A atividade conciliatória é consideravelmente importante. Aliás, muito mais importante do que podemos imaginar. Seja ela vista pela fresta da diminuição do período de angústia dos jurisdicionados submetidos a um processo judicial, seja ela movida pelo interesse estatal de diminuir o tempo e o custo do processo. O ponto chave é: estão os juízes preparados para conciliar? Qual a técnica por eles utilizada para a conciliação?

Antecipo-me para deixar claro que o problema não é sobre a capacidade (intelectualidade) para conciliar, mas sobre como (qual a técnica?) se concilia. Não basta anunciar aos quatro cantos que durante os dias 12 a 22 do mês tal, por exemplo, mutirões serão formados para a realização de conciliações. Não porque seja uma alternativa inválida, o que seria um despautério afirmar, mormente diante de nossa realidade, mas porque o famoso “vamos lá, vamos entrar num acordo” simplesmente é um estímulo que, se não fosse pela presença de um mistificado juiz bem defronte das partes, seria o mesmo que nada.

O verdadeiro pretexto sobre o qual se edifica o estudo é o de buscar nortear e estimular a prática da conciliação não como uma etapa burocrática em um procedimento já tão requintado. Procuramos tão-somente alertar para a oportunidade de prestar uma jurisdição efetiva quando o assunto for a promoção da satisfação das partes. A conciliação pode servir como verdadeiro remédio para a angústia e o sofrimento de quem se submete a um processo judicial.

2. A conciliação e o princípio constitucional da tempestividade da tutela jurisdicional

Todo e qualquer processo leva um certo tempo. Isso é fato. Há causas cuja complexidade e necessidade de instrução probatória prescindem de um longo curso até seu julgamento. Há causas, no entanto, em que o tempo é justamente o requisito essencial para o seu deslinde satisfatório. Isso se dá seja porque precisa o juiz de tempo para formar e conformar seu entendimento acerca daquela questão jurídica que lhe é posta, seja porque as partes, no decorrer do processo, estão sujeitas a mudarem de perspectiva sobrePage 137o objeto litigioso que, inevitavelmente, alterará os rumos da lide. O debate, por vezes, é revelador de solução que possibilita um desfecho mais ameno ao processo.

Não quero dizer que o processo deve esperar pelo juiz ou pelas partes indefinidamente, mas que há um tempo crucial para o amadurecimento dos debates e para a correta aplicação da lei. Esta lei, nunca é demais lembrar, deve sempre ser empregada de modo a satisfazer os caros valores constitucionais. Por mais relativo que seja o substantivo justiça, é possível sentenciar com a maior probabilidade de acerto quando não houver pressa em fazê-lo.

O que quer dizer inciso LXXVIII1, do art. 5º, da Constituição Federal é exatamente extirpar dilações processuais absurda e injustificadamente presentes na atividade jurisdicional2. Julgamentos monocráticos de recursos, súmulas vinculantes, repercussão geral, julgamentos liminares de causas tidas por repetitivas, ora, tudo isso se trata de alterações na legislação processual cuja desculpa é atender ao princípio constitucional da tempestividade da tutela jurisdicional. Esquece-se, no entanto, em boa parte das vezes, que a busca da máxima efetivação dos princípios constitucionais é dever do qual o Poder Judiciário não pode desincumbir-se.

Assustamo-nos com a obviedade dessa constatação. São igualmente princípios constitucionais o devido processo legal, formal e substancial, a ampla defesa e o contraditório, enfim, o acesso à ordem jurídica justa. O que de mais fundamental ensina a atual doutrina constitucionalista pátria, em sua unanimidade, apoiada nas lições de Canotilho, Alexy e Dworkin, é a necessidade de se conformar os princípios constitucionais. Ao que parece, o legislador está a concretizar e projetar, sobre distintos diplomas normativos infra-constitucionais, princípios constitucionais segundo o critério cronológico, ou seja, não-conformador. Assim, a onda reformista empresta valia (ou maior valia) ao princípio mais recentemente introduzido no texto da Constituição em detrimento daqueles obrados pelo constituinte originário.

Não se trata de um protesto contra as reformas recentes que desaguaram na modificação da legislação processual civil, até porque, usadas na porção exata, ou seja, contra-balanceando a necessidade de agilidade com uma linhagem garantista ampla doPage 138processo justo – que não se resume a processo rápido – é inegável que elas se prestam a cooperar com a satisfação do jurisdicionado.

Importante e esclarecedor os dizeres de Canotilho:

“A consideração da constituição como sistema aberto de regras e princípios deixa ainda um sentido útil ao princípio da unidade da constituição: o de unidade hierárquico-normativa.

O princípio da unidade hierárquico-normativa significa que todas as normas contidas numa constituição formal têm igual dignidade (não há normas só formais, nem hierarquia de supra- infra-ordenação dentro da lei constitucional). Como se irá ver em sede de interpretação, o princípio da unidade normativa conduz à rejeição de duas teses, ainda hoje muito correntes na doutrina do direito constitucional: (1) a tese das antinomias normativas; (2) a tese das normas constitucionais inconstitucionais. O princípio da unidade da constituição é, assim, expressão da própria positividade normativoconstitucional e um importante elemento de interpretação.

Compreendido desta forma, o princípio da unidade da constituição é uma exigência da <> do sistema jurídico. O princípio da unidade, como princípio de decisão, dirige-se aos juízes e a todas...

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