O direito entre facticidade e validade

AutorLuiz Moreira
Páginas99-135
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CAPÍTULO III
O DIREITO ENTRE FACTICIDADE
E VALIDADE
3.1. DA RAZÃO PRÁTICA À RAZÃO COMUNICATIVA
É próprio da modernidade, segundo a concepção descrita em
Direito e Democracia: entre facticidade e validade156, a identificação da
razão prática a uma faculdade subjetiva constituída a partir de um sujeito
singular ou de um macro sujeito. A filosofia prática parte da premissa
solipsista de um sujeito individual que pensa o mundo e a história a partir
de si mesmo. O que se quer frisar é que a razão prática, atrelada a uma
faculdade subjetiva, tornou-se, ao mesmo tempo, uma razão de cunho
normativista. É o conteúdo normativista da razão prática que permite à
modernidade oferecer ao indivíduo uma alternativa aos problemas que
afetam sua vida e sua comunidade. Assim, com esse recurso, o indivíduo
passa a ser a sede de toda moralidade e de toda politicidade. Caberia à
razão prática servir de guia para a ação do indivíduo, oferecendo-lhe
uma orientação normativa para sua ação, cabendo ao Direito Natural,
por sua vez, a institucionalização dessa ação em termos sociopolíticos.157
156 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, tomo I. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 17.
157 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tomo I.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 19.
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LUIZ MOREIRA
No entanto, nas sociedades modernas, a herança do normativismo
da razão prática se faz presente através da organização democrática da
sociedade158 que se ordena burocraticamente e tem, no recurso à
associação entre Estado e Economia, sua grande diretriz. Isso conduzirá
o direito racional a um trilema159: com a substituição da razão prática
pela filosofia solipsista, não se pode mais buscar o conteúdo do direito
racional em uma teleologia da história, na essência do homem ou ainda,
apelar para o sucesso de tradições culturais. Com a ausência de uma
oferta normativa para guiar as ações em um plano individual ou social
abrem-se os espaços para a recusa da razão em seu todo. Ou seja, o
desaparecimento da instância de conteúdo que oferecia um acesso
imediato para a práxis em geral gera uma ausência de sentido que, em
última instância, confundir-se-á com a recusa mesma da racionalidade.
Essa anomia, nesse sentido, depreende-se da falta de um patamar
normativo, de um conteúdo que oriente a ação. Não concordando com
esse horizonte, Habermas, através da reviravolta linguística160, substituirá
a razão prática pela razão comunicativa acoplando o conceito de
racionalidade ao medium linguístico.
Ora, é através do medium linguístico que a razão comunicativa se
distingue da razão prática. A razão prática está associada a um padrão
interpretativo que se entende a partir da singularidade. Mesmo quando
busca a pluralidade o modelo é o sujeito, ampliadas suas dimensões.
Como faculdade subjetiva, a razão prática perpassa a totalidade da cons-
tituição social, uma vez que o quadro conceitual é dado a partir de um
sujeito solipsista. A sociedade é composta da união desses sujeitos vindo
ela mesma a constituir-se como um sujeito em dimensões ampliadas.
Por outro lado, a razão comunicativa insere-se no telos do entendimento
158 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tomo I.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 18.
159 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tomo I.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 19.
160 Para a compreensão do significado da linguistic turn, cf.: OLIVEIRA, Manfredo
Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia Contemporânea. (Coleção Filosofia,
40). São Paulo: Loyola, 1996.
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CAPÍTULO III - O DIREITO ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE
a partir do medium linguístico.161 No ato de linguagem, isto é, com a
fala, buscamos o entendimento com alguém sobre algo no mundo. Na
busca desse entendimento adotamos um enfoque performativo, ou seja,
uma performance, o que implica a aceitação de certos pressupostos. Mais
precisamente, adotamos as seguintes pretensões universais de validade162:
o falante tem que expressar-se de modo a se fazer compreender; sua
comunicação se faz através de conteúdo proposicional verdadeiro, isto
é, ele dá a entender algo; suas intenções são expressas verazmente de
modo que se firme um entendimento a partir do que é comunicado; e
sua manifestação tem que ser correta para que seja possível o entendi-
mento.163 E essas pretensões de validade da fala comunicam-se às formas
de vida que se reproduzem comunicativamente.
No entanto, ao contrário da razão prática, a razão comunicativa
não oferece modelos para a ação. Não sendo uma norma de ação, a razão
comunicativa constitui-se como condição possibilitadora e, ao mesmo
tempo, limitadora do entendimento. A razão comunicativa dispõe de
uma contrafactualidade precisamente por assentar-se em uma base de
validade pragmática, pois quem age comunicativamente “é obrigado a
empreender idealizações, por exemplo, a atribuir significado idêntico a
enunciados, a levantar uma pretensão de validade em relação aos
proferimentos e a considerar os destinatários imputáveis, isto é,
autônomos e verazes consigo mesmos e com os outros”.164 A partir desse
entendimento, surgem idealizações que, a partir do factual, apontam
para o contrafactual, ou seja, ao entender-se sobre algo no mundo a
partir do medium linguístico surge uma tensão entre realidade e ideia,
161 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tomo I.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 20.
162 HABERMAS, JÜRGEN. “¿Qué significa pragmática universal?”. Teoría de la Acción
Comunicativa: Complementos y Estudios Previos. Madrid: Catedra, 1989, p. 300.
163 HABERMAS, JÜRGEN. “¿Qué significa pragmática universal?”. Teoría de la Acción
Comunicativa: Complementos y Estudios Previos. Madrid: Catedra, 1989, p. 301: “El
acuerdo descansa sobre la base del reconocimiento cuatro correspondientes pretensiones
de validez: inteligibilidad, verdad, veracidad y rectitud”.
164 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tomo I.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 20.

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