O Direito enquanto normalização institucional: o caso do especismo

AutorBruno Garrote Marques
CargoDoutor em Filosofia e Teoria do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Páginas125-164
O Direito enquanto normalização
institucional: o caso do especismo.
Bruno Garrote Marques
Doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo (USP). Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo (USP). Coordenador Responsável pela
Disciplina de cultura e extensão "Corpo e Consciência Jurídica" da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Ênfase e interesse
acadêmico na área de Epistemologia; Hermenêutica Jurídica e Filosófica; Deontologia;
Teoria do Estado; Moralidade política; Fenomenologia; Direito Constitucional;
Biopolítica; Minorias; Discriminação; Instituições e Estruturas de poder e de exclusão
do Outro. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7073038679811967.
email: garrote.bg@gmail.com
Recebido: 31.03.2017 | Aceito: 05.05.2017
Resumo: Esse artigo possui como objetiv o mostrar como a
aplicação de um método sócio-psicológico contribui par a uma
melhor compreensão do fenômeno jurídico e da normalização
institucional, a partir do caso-exemplo do especismo. Trata-se de
entender que o Direito constitui e é constituído por hábitos não-
conscientes, os quais precisam ser revisitados constante-mente de
forma reflexiva e receptiva, se quisermos ampliar-mos cada vez
mais as nossas proteções morais e jurídicas para uma concepção
de Outro mais alargada. Valendo-nos dos ins-trumentos
conceituais analíticos desenvolvidos pela psicóloga social Mel anie
Joy percebemos com maior clareza as estruturas psico-físicas
geradoras e mantenedoras de abusos, preconceitos e
distanciamentos, bem como passamos a possuir algumas fer-
ramentas para a expansão de tal consciência e superação de cer -
tos mecanismos de defesa mentais sustentadores de ideologias de
dominação atuais e futuras. Passar a compreender a r ela-ção
entre vontade, conhecimento e ação nos ajuda a entender que o
Direito é constantemente reforçado e modificado pelos indivíduos
(juristas ou não) que compõem a sociedade e, assim, entender o
Direito enquanto moralidade política indissociável
RBDA, SALVADOR, V.12, N. 02, PP. 125 - 164, Mai - Ago 2017 | 125
das escolhas existenciais diárias, estimulando-se uma
constante auto-reflexão compartilhada, a qual perpassa por
um cuidado de Si, o qual implica em um cuidado do Outro e
vice-versa. En-tender essas conexões contribui para
avançarmos nas melhores estratégias voltadas para os direitos
dos animais e de grupos oprimidos em geral.
Palavras-chave: direito; hábito; instituição; psicologia; espe -
cismo.
Abstract: This article aims to show how the use of a socio-psy-
chological method contributes to a better understanding of the
legal phenomenon and the institutional normalization, by us-ing
the example-case of speciesism. It is a question of under-standing
that the Law constitutes and consists of non-conscious habits,
which need to be constantly revisited in a reflexive and r eceptive
way if we are to extend our moral and juridical pro-tections to a
broader conception of the Other. Using the analyt-ical conceptual
tools developed by the social psychologist Mel-anie Joy, we
perceive with greater clarity the psycho-physical structures that
generate and maintain abuses, prejudices and detachment, as well
as we gain some tools for the expansion of such consciousness
and for the overcoming of c ertain mental defence mechanisms
which sustain ideologies of domination current and future.
Understanding the relation between will, knowledge and action
helps us to understand that Law is con-stantly reinforced and
modified by individuals (jurists or not) who in tegrate society and,
thus, understand Law as a political morality inseparable from
everyday existential choices, in or-der to stimulate a constant
shared self-reflection, which take place as a care of the Self, which,
by its turn, implies a care of the Other and vice versa.
Understanding these connections contributes to advancing the
best strategies for animal rights and oppressed groups in general.
Keywords: law; habits; institution; psychology; speciesism.
Sumário: 1. Vontade, conhecimento e ação: fazendo a conexão;
2. O Direito como hábito: o Normal, o Natural e o Necessário;
3. O Especismo e o vínculo com outras opressões institucionais;
4. Para além dos diversos distanciamentos; 5 . Referências
Biblio-gráficas
126 | RBDA, SALVADOR, V.12, N. 02, PP. 125 - 164, Mai - Ago 2017
1.Vontade, conhecimento e ação: fazendo a conexão
Em diversas teorias do Direito é frequente a tendência de
separação entre vontade, conhecimento e ação. Em Kelsen, por
exemplo, isso é muito claro quando ele explica a diferença entre a
função de um juiz e de um pesquisador/teórico/cientista do
Direito. Este atuaria no âmbito do conhecimento, tendo a capa-
cidade para explicitar e montar a moldura jurídica (descrição),
enquanto aquele, o juiz ou outro intérprete autêntico competen-te
qualquer, atua no âmbito não somente do conhecimento, mas
também da vontade ao realmente decidir sobre o direito (pres-
crição). Não entrarei aqui em questões de teoria do direito ou fi-
losofia da linguagem específicas ao problema da interpretação e
objetividade, nem em termos de descrição e prescrição, as quais
merecem, por si só, estudos detalhados a parte.1 O importante
nesse ponto inicial é destacar que ainda há muita crença na efe-
tiva diferença entre esses campos. Kelsen, que direta ou indire-
tamente influenciou muito a ciência jurídica e também a prática
(tendo constantemente seu pensamento distorcido), explicitava
muito seriamente essa distinção, tendo inclusive concluído a sua
obra mais conhecida da seguinte maneira:
É que uma tal interpretação científica pode mostrar à
autoridade legisladora quão longe está a sua obra de
satisfazer à exigência técnico-jurídica de uma formulação
de normas jurídicas o mais possível inequívocas ou, pelo
menos, de uma formulação feita por maneira tal que a
inevitável pluralidade de significações se ja reduzida a um
mínimo e, assim, se obtenha o maior grau possível de
segurança jurídica.2
Esse parágrafo deve ser compreendido juntamente com o
pensamento kelseniano como um todo, mas é um bom
exemplo da crença da ciência em garantir certas seguranças,
principalmente ao defender análises supostamente mais
objetivas. Isso, todavia, é um descuido sobre o modo como a
1 Para um maior estudo detalhado de tais questões, vide o livro
Objeti-vidade e Interpretação: o debate meta-filosófico atrás do debate entre R.
Dworkin e S. Fish. GARROTE (2016b).
2 KELSEN (2006: 396-397)
RBDA, SALVADOR, V.12, N. 02, PP. 125 - 164, Mai - Ago 2017 | 127

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT