O direito do trabalho e o estado democrático de direito: uma reflexão sobre o individual e o coletivo no exercício da autonomia do trabalhador

AutorMenelick de Carvalho Netto e Guilherme Scotti
Páginas65-71

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Introdução

O nexo interno que articula Trabalho, Constituição e Cidadania fornece a base para o enfrentamento consistente e profundo dos atuais desafios que ameaçam de forma recorrente e cada vez mais incisiva os direitos fundamentais do trabalhador. Este é o campo de reflexão e produção acadêmica a que Gabriela Neves Delgado tem se dedicado, com afinco, não apenas como autora individual, mas como uma liderança firme e sólida, capaz de contribuir decisivamente, a partir da academia, para a formação de todo um amplo espectro de profissionais atuantes e produtores de uma doutrina apta a fazer face a esses desafios e a contribuir para o descortinar de um horizonte, sem dúvida, ainda de luta, mas comprometido com a consolidação e o aprofundamento dos direitos individuais e coletivos no campo vital das relações de trabalho.

O presente artigo é uma reedição1 revista em homenagem à autora, como uma pequena contribuição a essa hercúlea e desafiante empresa que ela lidera e à qual buscamos nos integrar ainda que de forma pontual e limitada.

De início, impõe-se que se resgate em poucas linhas, de um lado, tanto o processo de aprendizado que deu origem ao Direito do Trabalho, quanto, de outro, também o problema da suposta imaturidade do trabalhador que com esse Direito se fez articular e que, por sua vez, objeto de novo processo social de aprendizado, pode agora ser visto como crença infundada, refutada e superada.

A noção de paradigma tomada de Thomas Kuhn por Jürgen Habermas e aplicada ao processo de vivência histórica institucional resultou no conceito de paradigmas constitucionais. É com base nesse conceito que, a seguir, busca-se enfrentar esse desafio inicial.

No denominado constitucionalismo clássico, sob a ótica do primeiro paradigma constitucional, o do Estado de Direito, nenhuma especificidade era reconhecida à relação contratual estabelecida entre os compradores da força de trabalho, cujas propriedades estendiam-se aos meios de produção, e aqueles que a vendiam, cuja propriedade privada, a rigor, limitava-se, em regra, ao objeto daquele específico contrato de compra e venda, ou seja, à sua própria força de trabalho.

Em meados do século XIX, a imagem desse contrato de compra e venda que, embora já desafiada, ainda era prevalente à época como a de indivíduos que trocavam livremente equivalentes, passa a ser desnudada e enfaticamente denunciada por Karl Marx, a mostrar que essa imagem, em verdade, ocultava a maior exploração do homem pelo homem de que houve notícia na história e que ocorria, precisamente, mediante a afirmação jurídica da igualdade, da liberdade e da proprie-dade a todos reconhecidas. Marx demonstra que, ao afirmar a igualdade jurídica formal dos contratantes, até porque de um ponto de vista liberal-burguês acordariam livremente acerca do contratualmente avençado, o Direito de então desconhecia a efetiva posição de desigualdade econômica no mercado entre o proprietário dos meios de produção e aquele que era proprietário apenas de sua própria força de trabalho. Diante do excesso de oferta de mão de obra e da escassez dos postos de trabalho, a existência de um exército de mão de obra de reserva fazia, portanto, com que a igualdade afirmada apenas velasse a desigualdade efetiva de mercado, de tal sorte

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que a liberdade atribuída ao trabalhador só pudesse se traduzir na mais absoluta situação de cogência econômica deste. Em face desse exército de mão de obra de reserva, o trabalhador ou aceitava trabalhar por pagamento bem a menor, regido segundo a lei da oferta e da procura, ou era livre para morrer de fome. Desse modo, a propriedade juridicamente afirmada do trabalhador sobre a sua própria força de trabalho era, de fato, desapropriada. Assim, a maior parte das horas efetivamente trabalhadas não eram pagas. É este o cerne do conceito de mais-valia, absolutamente central não apenas para a compreensão da denúncia que Marx empreende do capitalismo, mas igualmente para entendermos um dos marcos mais relevantes da passagem do constitucionalismo clássico para o social: o surgimento do Direito do Trabalho distinguindo-se do Direito Civil em razão dos princípios de ordem pública (inderrogáveis pelas partes) que o caracterizam em sua especificidade - a proteger o lado economicamente vulnerável desta relação contratual (jornada máxima de trabalho, salário mínimo, repouso semanal remunerado, férias etc.)

Desse modo é que, já no próprio núcleo inovador que marca a emergência do segundo paradigma constitucional, o do Estado de Bem-Estar Social, encontra-se a exigência de um Direito do Trabalho emancipado do Direito Civil e mesmo a possibilidade de uma Justiça do Trabalho especializada, ou seja, centrada na ideia de que o contrato de trabalho não mais poderia ser um simples e livre acordo de vontades. O trabalho requereria a proteção, a tutela, do Estado, do Direito. Torna-se evidente a hipossuficiência do trabalhador, a reclamar a tutela do direito positivo, do Estado, mediante a adoção de princípios de ordem pública inderrogáveis pelas partes. Have-ria, nessa relação contratual específica, um lado mais fraco a reclamar proteção legal. Essa proteção legal, todavia, também pode assumir, a um só tempo, um sentido perverso, desqualificador da condição do trabalhador enquanto sujeito pleno para enfocá-lo, em sua hipossuficiência material e que agora também passa a ser formal enquanto objeto da tutela jurídico-estatal. Aspecto que, em muitos países, no Brasil inclusive, também marcou, de forma indelével, o Direito Coletivo do Trabalho e a estruturação das organizações sindicais. Nesse paradigma, há um Estado hiperpoderoso na tutela das massas, o que é visto não apenas como perfeitamente compatível com a destituição da autonomia moral e jurídica dos indivíduos e organizações sindicais, mas chega-se mesmo a acreditar que essa destituição seria, ela própria, uma proteção imprescindível do trabalhador.

Assim é que, novamente, desta feita como resultado de um duro processo de aprendizado decorrente das vivências que negaram as crenças em que se assentavam o paradigma do Estado Social, no atual paradigma do Estado Democrático de Direito, se direitos básicos e específicos são reconhecidos ao trabalhador, o são precisamente porque passam a ser vistos agora como imprescindíveis para que ele tenha condições de afirmar e exercer a sua autonomia enquanto sujeito de direitos, a sua cidadania. Se normas protetivas do trabalho contra o poder do capital continuam a ser requeridas, elas, contudo, não mais podem significar a desqualificação daquele que, dado à sua situação material, precisa, a princípio, da proteção jurídica das normas de ordem pública, individualmente inderrogáveis pelas partes contratantes.

A Constituição da República de 1988 ao dar curso à concepção de que os direitos sociais de proteção não desqualificam seus destinatários como pessoas carentes da tutela permanente do Estado, ao contrário, os afirma como cidadãos, reconhecendo ao trabalhador organizado ampla capacidade de negociação coletiva apta inclusive a derrogar pontualmente e para a categoria normas da CLT, desde que os interessados dela participem, mediante representação sindical.

Ocorre, contudo, que a exigência do texto constitucional de unicidade na base territorial dos sindicatos dos trabalhadores impede a concorrência entre essas organizações e a possibilidade de o próprio trabalhador que pretenda se sindicalizar de ter opções institucionais acerca daquele que deve representá-lo, a possibilitar, segundo a nossa pior tradição orgânica-corporativa, uma inversão do sinal da representação sindical, em que a base tende a se tornar refém da direção obrigatoriamente unificada e a quem as contribuições sindicais são devidas independentemente da adesão volitiva do trabalhador.

Aqui, a atuação dos dirigentes sindicais constituintes e mesmo a pressão dos sindicatos no momento da constituinte deixou-se guiar pelo interesse imediato, não sendo capaz de se colocar à altura da tarefa. Neste aspecto, portanto, o fato de a direita e parte da esquerda sindicais brasileiras2 terem se unido na constituinte na defesa de um mero loteamento sindical entre si, apenas, nos lega um problema ainda a ser constitucionalmente enfrentado, vez que o texto então aprovado, neste aspecto, pode não se provar capaz de vincular produtivamente o futuro e vir a postular, ele próprio, a necessidade de uma releitura ou revisão.

Revisão que pode resultar inclusive, à luz do disposto no § 3º do art. 5º3 da Constituição da República, da hipótese de uma futura ratificação por parte do Brasil, ainda que tardia, da Convenção n. 87 da OIT, de 1948, relativa à liberdade sindical e à proteção do direito de sindicalização.

E este é um problema que o próprio paradigma do Estado Democrático de Direito tende a evidenciar, ao fomentar as exigências de um tratamento constitucionalmente adequado da matéria, um tratamento que seja normativamente coerente com a complexidade que o reconhecimento constitucional da maioridade do...

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