O Direito do Trabalho e as Plataformas Eletrônicas

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas357-366

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1. Introdução

Ingressamos na era da chamada gig economy, de micro-tarefas repetitivas, na qual o trabalho se torna temporário, precário, um bico. É a intensificação da redução da porosidade do trabalho, pelo aproveitamento de suas sobras, do tempo ‘morto’ do trabalhador, que normalmente estaria destinado ao lazer, repouso, à reflexão ou mesmo a sua qualificação.

O que se já percebe é a progressiva substituição das empresas de intermediação de mão de obra por plataformas virtuais, que conectam diretamente o tomador final com o prestador pessoal do serviço, que passa também a ser o detentor das ferramentas de trabalho - mas não propriamente dos meios de produção.

Este texto transita na esfera do chamado “biopoder"2 ou da "biopolítica"3 e, dessa perspectiva, opera a partir da ideia de "trabalho biopolítico".

A ideia de "trabalho biopolítico"4 ou ‘pós-material’5 parte da constatação de que o capitalismo pós-industrial não tem sua fonte hegemônica de excedente expropriado no trabalho tradicional, manufatureiro, como ocorria no início do Século
XX. A produção econômica na modernidade industrial se destinava à confecção de ‘mercadorias’, isto é, visava puramente a transformar, linear e diretamente, o trabalho, material e subordinado, em mercadoria palpável e concreta.

Já a produção pós-moderna não se preocupa tanto com a confecção da mercadoria material, isso porque a automação e as tecnologias informáticas possibilitaram aumentar, e de forma exponencial, a capacidade de reprodução de bens, o que, logicamente, fez diminuir o valor desses bens, materiais e reproduzíveis, no mercado – evidentemente, essa diminuição diz respeito aos bens considerados isoladamente, isto é, considerados somente a partir do ponto de vista de suas qualidades materiais, fora das relações sociais e culturais.

Nesse sentido, na contemporaneidade, o trabalho mais estratégico para o capitalismo – isto é, aquele que acrescenta maior valor à mercadoria ou ao serviço – passa a ser o trabalho que se destina a produzir, não bens, mas relações, nomeadamente, relações de conhecimento tecnocientífico, relações de ideias, relações de informação e comunicação e até relações afetivas, entre mercadoria/serviço e o consumidor.

O objetivo deste trabalho é apresentar, de maneira concisa, cinco novos conceitos operacionais para o Direito do Trabalho, sob o impacto das novas tecnologias, a saber: (i) a dicotomia entre economia de compartilhamento e consumo colaborativo, (ii) a liberdade constitucional de trabalho,
(iii) a transição da sociedade da disciplina para a sociedade do controle (iv) a multidão como imanência dos coletivos tradicionais e (v) e o contrato realidade-virtual.

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2. Economia do Compartilhamento e "Consumo Colaborativo"

Estamos em trânsito para um novo sistema de produção, que mescla e potencializa formas anteriores de produção, criando uma espécie de kanban eletrônico, com just in time e responsabilidade coletiva e estatística da produção, reduzindo de forma colossal a porosidade do trabalho.

Economia do compartilhamento (Sharing economy) é um conceito que vem se disseminando de uma forma indiscriminada, muitas vezes sem o devido cuidado mais acadêmico. Para esse novo mundo da produção existem várias designações, tais como, On-demand economy, Circular economy, Collaborative economy, Peer-to-Peer (P2P) economy, Net economy, Reputation economy, Trust economy, Hypster economy.

Essa ideia da economia do compartilhamento vem se expandindo e se beneficia de uma aura humanista e até civilizatória de solidariedade, de generosidade, de gentilezas, enfim de colaboração6. Mas a dura realidade dos efeitos das novas tecnologias no mundo do trabalho revelam uma outra faceta, opaca e com exponencialização das formas de exploração do ser humano que labuta, na retaguarda das tecnologias disruptivas.

Há de fato uma perspectiva de emancipação no uso das ferramentas tecnológicas de comunicação e informação, pois elas facilitam o acesso às informações e aceleram de forma exponencial a interação entre as pessoas e grupos de interesses.

Do ponto de vista do consumo, essas ferramentas permitem o compartilhamento social das sobras e excessos, otimizando o gasto e calibrando o uso dos produtos. Viabilizam um consumo mais consciente e uma economia responsável e sustentável dos recursos naturais.

Nesse sentido, o conceito de "consumo colaborativo" - CC - apresenta um potencial imenso, como crítica e alternativa concreta, perfeitamente viável, à sociedade de consumo do capitalismo tradicional. Os movimentos de software livre da informática precederam essa perspectiva. O sistema operacional Ubuntu, de código-fonte aberto, projetado a partir do núcleo open source Linux escolheu o nome do conceito de mesmo nome da filosofia africana, que consagra a ideia de compartilhamento e de solidariedade7.

A realidade de produção pós-industrial, contudo, é bem outra. Energias de dominação têm prevalecido em relação às de emancipação. Sistemas de trabalho em plataformas on line, tais como, o Mechanical Turk da Amazon têm levado a escalas impressionantes de exploração a legião de trabalhadores arregimentados à distância, para execução de micro-tarefas repetitivas e mal remuneradas.

Lucarelli & Fumagalli observam que no capitalismo cognitivo, a acumulação é cada vez mais baseada na extorsão política do produto da cooperação social, como resultado do incremento da socialização da produção, principalmente pela atividade produzida pelas redes sociais. Nesse contexto, o capital apropria-se do “commons”, do conhecimento tácito e codificado da comunidade em rede e acaba por capturar as energias de emancipação que eclodem desse novo meio colaboração produtiva8.

Uma alternativa vem sendo estudada pelo Professor Trebor Sholz da New School de Nova York, que identificando os problemas da economia do compartilhamento9, apresenta alguns princípios para o que ele denomina de cooperativismo de plataforma.

Dentre esses princípios, é relevante sublinhar alguns deles, a saber: (i) fair paid, a justa remuneração dos trabalhadores, (ii) transparência e portabilidade dos dados dos trabalhadores e também dos usuários dos serviços da plataforma de trabalho,
(iii) co-determinação das regras de uso, que devem ser definidas de forma participativa, democrática, com os trabalhadores e usuários, (iv) moldura jurídica protetora, (v) algum grau de proteção trabalhista para os que oferecem seus serviços na plataforma, (vi) rejeição da vigilância excessiva e (vii) direito à desconexão do trabalho10.

O desafio do Direito do Trabalho da contemporaneidade tecnológica é justamente distinguir o joio e economia do compartilhamento do trigo e da ideia emancipadora de "consumo colaborativo". Imensas corporações planetárias dominam mercados e trabalhadores, aprisionam a energia da cooperação social, transferem os custos e internalizam de maneira assimétrica os ganhos, passando a atuar, em determinadas hipóteses, como verdadeiro empregador-nuvem.

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3. Liberdade Constitucional de Trabalho

O Direito do Trabalho no Brasil tem uma excessiva dependência do conceito de subordinação jurídica. Como se sabe, esse conceito não tinha fundamento dogmático na CLT, que optara pelo conceito de dependência em seu artigo 3º A subordinação jurídica só foi positivada na CLT a partir da nova redação de seu artigo 6º, que recebeu o parágrafo único, com Lei n.12.551 em 2011.

A doutrina tradicional sempre destinou à subordinação jurídica uma centralidade, que acabou na prática conduzindo a uma concepção autoritária de relação de emprego, em que a dependência social e econômica do trabalhador é adjudicada e legitimada juridicamente como subordinação.

Daí a uma hermenêutica de desconexão entre a condição de empregado e à de cidadão titular de direitos fundamentais foi um salto exegético simples, que começou na doutrina e atingiu o seu ápice nos anos 80 e 90 na jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho.

Esse estado de coisas somente começou a alterar-se partir da assimilação pela doutrina trabalhista dos influxos da Constituição de 1988, sobretudo da percepção, tanto no Direito Civil, como no Direito do Trabalho, de que a lei ordinária havia de ser lida a partir da Carta Constitucional - e não o contrário.

Foi longo o percurso ao entendimento de que trabalhador não perde sua condição de cidadão, ao ingressar na orla regulada pelo Direito do Trabalho. Ao contrário, em sua condição de vulnerabilidade econômica, o cidadão-trabalhador desafia maior grau de tutela de seus direitos fundamentais do que o cidadão comum.

Um dos resquícios que ainda subsistem dessa concepção autoritária, por exemplo, é a jurisprudência de nossa mais alta corte trabalhista que sonega ao empregado o direito constitucional ao sigilo das comunicações de dados das correspondência eletrônicas enviadas ao e-mail corporativo do empregado, sigilo esse que somente é tangível com autorização judicial e para fins de instrução penal, como está na literalidade do inciso XII do artigo 5º da Constituição.

É nesse sentido que ficou obscurecido o direito constitucional de trabalho, a benefício de uma concepção subordinante da relação de emprego, do ponto de vista da cidadania do trabalhador, segundo a qual o obreiro, ao ingressar no ambiente físico ou virtual da empresa, deixa de fazer jus à garantia de alguns de seus direitos fundamentais, como se a condição de empregado e a tutela do Direito do Trabalho constituíssem contrapartida legítima, para o reconhecimento de um status constitucional diferenciado e de segunda classe.

Essa concepção autoritária da relação de emprego, que apaga qualquer traço de liberdade e autonomia do empregado acaba, até mesmo...

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