Direito ao trabalho digno e as frentes de trabalho: paradoxos do estado contemporâneo

AutorJuliane Caravieri M. Gamba
CargoGraduada em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual Paulista
Páginas481-506

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É mediante o trabalho que o homem deve procurar-se o pão cotidiano e contribuir para o progresso contínuo das ciências e da técnica e sobretudo para a incessante elevação cultural e moral da sociedade, na qual vive em comunidade com os próprios irmãos. [...] somente o homem tem capacidade para o trabalho e somente o homem o realiza preenchendo ao mesmo tempo com ele a sua existência sobre a Terra. Papa João Paulo II, Excertos da Encíclica Laborem Exercens (14 de setembro de 1981)

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Introdução

O tema do presente trabalho é relevante e atual, pois a dignidade da pessoa humana, incluído o trabalhador, deve ser concebida como uma conquista ético-jurídica oriunda da reação dos povos contra as atrocidades cometidas pelos regimes totalitários a milhões de pessoas durante a Segunda Guerra Mundial.

Houve a consciência da necessária proteção da pessoa humana em sua integralidade físico-psíquica, o que se refletiu nas Declarações e nos Pactos Internacionais firmados no pós-guerra, sendo incorporada nos ordenamentos jurídicos de diversos países, inclusive no Brasil, integrando-se em diversos “ramos” do Direito, notadamente no Direito Constitucional e no Direito do Trabalho.

A Constituição brasileira de 1988 reconheceu a essencialidade do trabalho como um dos instrumentos mais importantes de afirmação

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da dignidade do trabalhador (art. 1º, incisos III e IV da Constituição), marcando o anúncio dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil. Nesse contexto, o trabalho digno — enquanto valor humano tutelado pelo direito — está relacionado diretamente ao princípio e valor da dignidade humana, assegurando uma vida digna, livre e igual a todas as pessoas trabalhadoras.

Assim, o Estado brasileiro está implementando as chamadas frentes de trabalho o que criou uma situação paradoxal, pois, por um lado, essas políticas públicas violariam o sistema jurídico de proteção aos direitos humanos e fundamentais do trabalhador, mas, por outro lado, mediante um discurso político, haveria a implementação de políticas que, ao concederem postos de trabalho às pessoas mais carentes, estariam atendendo aos princípios constitucionais da busca do pleno emprego e da redução das desigualdades regionais e sociais.

1. A dignidade do trabalhador na ordem jurídica contemporânea

“Direitos humanos”, “direitos do homem” e “direitos fundamentais” são considerados neste trabalho expressões que designam a mesma categoria jurídica1. De acordo com Luño (2007, p. 46-47), os direitos

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humanos podem ser definidos “como un conjunto de facultades e instituciones que, en cada momento histórico, concretan las exigencias de la dignidad, la libertad y la igualdad humanas, las cuales deben ser reconocidas positivamente por los ordenamientos jurídicos a nivel nacional e internacional”.

Flores (apud GODAL, 2007, p. 27) afirma que “los derechos humanos son algo más que dichas ‘declaraciones’ y ‘pactos’. Son el conjunto de procesos (normativos, institucionales y sociales) que abren y consolidan espacios de lucha por la dignidad humana. […] los medios discursivos, expresivos y normativos que pugnan por reinsertar a los seres humanos en ele circuito de reprodución y mantenimiento de la vida, permitiéndonos abrir espacios de lucha e reinvidicacción. No somos nada sin derechos. Los derechos no son nada sin nosostros”.

Portanto, os direitos humanos são aqueles considerados indispensáveis à pessoa humana, necessários para assegurar a todos uma existência com dignidade, igualdade e liberdade. Houve a valorização da pessoa humana no âmbito do Direito Constitucional e no Direito Internacional dos Direitos Humanos, notadamente após a Segunda Guerra Mundial, com a aprovação pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos2. Este documento definiu os direitos humanos e as liberdades fundamentais como um padrão comum de realização para todos os povos, Estados e comunidades.

A Declaração, composta de trinta artigos precedidos de Preâmbulo, conjugou num só corpo normativo tanto os direitos civis e políticos, tradicionalmente chamados de direitos e garantias individuais (arts. 1º ao 21), quanto os direitos sociais, econômicos e culturais (arts. 22 ao
28), deixando nítido que não se pode dissociar aqueles direitos destes últimos.

A consagração dos direitos humanos como tema global3 efetivou-se com a Conferência de Viena, realizada de 14 a 25 de junho de 1993, considerada a primeira grande conferência do mundo pós-

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-guerra fria, pois reafirmou a universalidade, a irrenunciabilidade, a inalienabilidade, a imprescritibilidade e o interrelacionamento desses direitos. Estas características foram reafirmadas em todas as declarações, os pactos e as cartas, no intuito de se fortalecer os direitos humanos, retomando sempre a dignidade da pessoa humana como linha mestra em todos os programas, valores e políticas dos Estados e do Direito.

Como destacou Hannah Arendt4, “[...] a igualdade em dignidade e direitos dos seres humanos não é um dado. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso ao espaço público. É este acesso ao espaço público que permite a construção de um mundo comum através do processo de asserção dos direitos humanos”. Logo, entende-se que a cidadania é o direito a ter direitos, construído ao longo da história, ou seja, é uma condição básica da própria dignidade humana, inserindo a pessoa no mundo como ser social.

Desse modo, a dignidade da pessoa humana despontou como o princípio5 maior dos Estados Democráticos de Direito, sendo a referência ética a inspirar o Direito construído após a segunda metade do século XX, o que se refletiu nas Constituições de diversos países, inclusive no Brasil com a Constituição de 1988, chamada de Constituição Cidadã. Mas afinal, como se pode conceituar a dignidade da pessoa humana, incluindo o trabalhador?

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No dicionário comum6, dignidade significa “1. qualidade moral que infunde respeito; consciência do próprio valor; honra, autoridade, nobreza; 2. qualidade do que é grande, nobre, elevado; 3. modo de alguém proceder ou de se apresentar que inspira respeito; solenidade, gravidade, brio, distinção; 4. respeito aos próprios sentimentos, valores, amor-próprio”. No dicionário jurídico De Plácido e Silva (2005, p. 458), dignidade é assim conceituada:

Derivado do latim dignitas (virtude, honra, consideração), em regra se entende a qualidade moral, que, possuída por uma pessoa, serve de base ao próprio respeito em que é tida. Compreende-se também como o próprio procedimento da pessoa, pelo qual se faz merecedor do conceito público. Mas, em sentido jurídico, também se entende como a distinção ou honraria conferida a uma pessoa, consistente em cargo ou título de alta graduação. No Direito Canônico, indica-se o benefício ou prerrogativa decorrente de um cargo eclesiástico.

Abbagnano (2007, p. 326), quando se refere à dignidade, faz menção direta a Immanuel Kant (2008) no Segundo Imperativo Categórico, sistematizado na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, o qual dispõe: “Age de tal forma que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre também como um fim e nunca unicamente como um meio”. Portanto, todo o ser humano deve ser visto como um fim em si mesmo, possuidor de um valor (a dignidade) e não como mercadoria descartável no mundo capitalista.

Para Kant (2008, p. 58), “tudo possui ou um preço ou uma dignidade. Aquilo que tem preço pode ser substituído por algo equivalente; por outro lado, o que se acha acima de todo preço e, portanto, não admite nada equivalente, encerra uma dignidade”. É nessa direção filosófico-jurídica que deve caminhar a compreensão da dignidade da pessoa humana e a dignidade do trabalhador no âmbito dos Estados, sendo protegidas integralmente pelo direito.

Garcia (2004, p. 211) afirma que “a dignidade da pessoa humana corresponde à compreensão do ser humano na sua integridade física

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e psíquica, como autodeterminação consciente, garantida moral e juridicamente”. Complementando esse conceito, Sarlet (2007, p. 62) define a dignidade da pessoa humana como:

A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

Logo, a dignidade da pessoa humana deve ser concebida como uma conquista ético-jurídica da humanidade oriunda da reação dos povos contra as atrocidades cometidas pelo homem contra o próprio homem. As experiências do passado, oriundas dos regimes totalitários vigentes na Segunda Guerra Mundial os quais culminaram em atentados a milhões de pessoas, geraram a consciência de que se deveria proteger integralmente a dignidade humana.

Essa postura se refletiu nas Declarações e nos Pactos Internacionais firmados no pós-guerra, sendo incorporados nas Ordens Constitucionais de diversos países e integrando-se em diversos “ramos” do Direito, notadamente no Direito do Trabalho7. A Declaração Universal dos Direitos do Homem também consagrou o direito ao trabalho e, consequentemente, a dignidade do trabalhador como princípios fundamentais, destacando-se:

Art. XXIII. 1. Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho, e à proteção contra o desemprego. 2. Toda pessoa...

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