Diferenciação Funcional e a Sociologia da Modernidade Brasileira

AutorRoberto Dutra
CargoProfessor Associado da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro UENF
Páginas77-109
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2016v15n34p77
7777 – 109
Diferenciação Funcional e a
Sociologia da Modernidade Brasileira
Roberto Dutra1
Resumo
As interpretações sociológicas sobre o Brasil, guiadas pelos conceitos de “personalismo e “patri-
monialismo”, desenvolvem o diagnóstico de que temos um “déf‌icit de modernidade” e inferem
este déf‌icit, em grande medida, de uma suposta ausência ou imperfeição do processo de diferen-
ciação das esferas e subsistemas sociais entre nós. Atualmente, este tipo de interpretação tem
sido atualizada com base na teoria da diferenciação funcional de Niklas Luhmann. Neste texto
tentaremos mostrar que este tipo de interpretação sociológica parte de uma idealização da dife-
renciação das esferas nos países do Atlântico Norte, construindo um contraponto empiricamente
infundado para diagnosticar a falta de diferenciação funcional entre nós.
Palavras-chave: Modernidade. Diferenciação funcional. Modernidade periférica. Sociologia
brasileira.
Introdução
As interpretações sociológicas sobre o Brasil caracterizadas pelo diagnósti-
co de que temos um “décit de modernidade” inferem este décit, em grande
medida, de uma suposta ausência ou imperfeição do processo de diferenciação
das esferas e subsistemas sociais entre nós. Noções como a de “personalismo”
e “patrimonialismo” sugerem, por exemplo, que ao contrário do que ocorre-
ria nos ditos países desenvolvidos do ocidente, o princípio da diferenciação
entre as esferas seria, no Brasil, solapado ou pelo caráter pervasivo de relações
pessoais particularistas (“personalismo”) ou pela dominação burocrático-es-
tamental (“patrimonialismo”). O diagnóstico corrente sobre nosso suposto
1 Professor Associado da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro UENF. Doutor em sociologia
pela Humboldt Universität zu Berlin. Principais publicações: O problema da desigualdade social na teoria da
sociedade de NiklasLuhmann (Caderno. CRH, 2014) e Funktionale Differenzierung, soziale Ungleichheit und
Exklusion (editora UVK, 2013). Endereço para correspondência: Laboratório de Gestão e Políticas Públicas
(LGPP), Centro de Ciências do Homem, UENF. Av. Alberto Lamego, 2000 - Parque Califórnia, Campos dos
Goytacazes – RJ CEP: 28013-602.E-mail: robertodtj@yahoo.com
Diferenciação Funcional e a Sociologia da Modernidade Brasileira | Roberto Dutra
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“décit de secularização” vai na mesma direção, apontando a pouca dife-
renciação entre a esfera religiosa e as demais esferas sociais (especialmente
seu papel na esfera pública e na política) como um traço típico de nossa
pré-modernidade.
Atualmente, este tipo de interpretação tem sido atualizada com base na
teoria da diferenciação funcional de Niklas Luhmann (NEVES, 2012; 2008;
2006; 1992), sendo o resultado basicamente o mesmo: ao Brasil faltaria uma
diferenciação clara entre os subsistemas funcionais, especialmente em razão
da corrupção de alguns destes subsistemas pelo particularismo de redes de
relações pessoais e pela racionalidade econômica que invade as outras esferas.
Neste trabalho, tentaremos mostrar que este tipo de interpretação sociológica
parte de uma idealização da diferenciação das esferas nos países do Atlântico
Norte, construindo um contraponto empiricamente infundado para diagnos-
ticar a falta de diferenciação funcional entre nós. Propomos uma concepção
alternativa: analisar o processo de diferenciação em suas tensões com formas
de sociabilidade que “corrompem” o princípio da separação entre as esferas
sociais como sendo um fenômeno comum a diferentes contextos nacionais.
Apoiado na teoria da sociedade mundial de matriz luhmanniana, proponho
uma ênfase radical no caráter global da diferenciação funcional, a qual impli-
ca conceber os casos nacionais como 1) localizados no nível das organizações
e complexos organizacionais que estruturam o funcionamento dos sistemas
funcionais e condicionam suas operações em regiões especícas 2) denidos
por práticas globais de comparações e referências mútuas que colocam em
relação unidades sociais espacialmente separadas.
O artigo está divido em três seções. Na primeira, analiso e critico a re-
cepção da teoria da diferenciação funcional de Luhmann feita por Marcelo
Neves,argumentando que apesar de tentar romper com a ideia de Brasil pré-
-moderno com o uso da diferença centro/periferia, acaba reproduzindo uma
visão teórica idealizadora e empiricamente frágil da diferenciação funcional
na chamada “modernidade central”, a qual serve de contraponto normativo
para observar a “modernidade periférica” brasileira enquanto destituída de
uma “autêntica” diferenciação funcional. Esta recepção da teoria luhmannia-
na, ao reproduzir implicitamente uma diferenciação absoluta entre países cen-
trais e países periféricos, promove a mesma imagem de uma sociedade marcada
pelo “décit de diferenciação funcional” que permeoualgumas interpretações
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 15 - Nº 34 - Set./Dez. de 2016
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“clássicas” do Brasil, baseadas nos conceitos de “personalismo” e “patrimonia-
lismo”. Na segundaseção, desenvolvo uma leitura alternativa da concepção
luhmanniana de sociedade mundial com o intuito de demonstrar que o pri-
mado da diferenciação funcional não pode ser considerado como traço espe-
cíco da modernidade “central”, devendo ser concebido como constitutivo
de todo o mundo moderno. Na terceira e última seção, aplico esta concepção
alternativa da sociedade mundial funcionalmente diferenciada ao Brasil e de-
fendo a tese de queesta concepção implicaquestionar tanto a tese hegemônica
da singularidade brasileira como em romper com o uso irreetido de catego-
rias “espaciais” como o Estado nacional na escolha das unidades da análise
sociológica (TAVOLARO, 2014).
Déf‌icit de diferenciação funcional como traço da
modernidade brasileira
O diagnóstico de Marcelo Neves (2012; 2008; 2006; 1992) sobre a mo-
dernidade no Brasil aponta para uma “desdiferenciação das funções” (2012,
p. 23) como traço singular de países de modernidade periférica ou “negativa”.
Em sua recepção da teoria da sociedade mundial de Luhmann, apenas os
países de “modernidade central” seriam caracterizados pelo primado da di-
ferenciação dos sistemas funcionais. Este tipo de caracterização comparativa
da modernidade brasileira, centrada na ideia de um “décit de diferenciação
funcional”, já estava presente nas interpretações clássicas da modernidade bra-
sileira (TAVOLARO, 2014). Ainda que sem o uso sistemático de teorias da
diferenciação2, as principais teses de Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo
Faoro e Roberto DaMatta desembocam na ideia de um país que, tanto no
âmbito cultural como no âmbito institucional, padece da indiferenciação en-
tre as lógicas das esferas familiar, política, econômica, cientíca etc. Partindo
de preocupações especícas com a cultura política (Buarque de Holanda), a
formação do Estado (Faoro) e a gramática das práticas cotidianas (DaMatta),
estes autores – certamente poderíamos elencar outros – criaram conceitos que
2 Cabe lembrar que as teorias da diferenciação não se reduzem à tradição das teorias de sistemas sociais,
muito menos à teoria da sociedade de Luhmann. Podemos citar pelo menos duas outras ver tentes teóricas
que contêm explicitamente teorias da diferenciação: a teoria da diferenciação das esferas de valor da tradição
weberiana (cf. SCHWINN, 2001) e a teoria bourdiesiana da diferenciação dos campos (cf. KIESERLING, 2008;
LAHIRE, 2012).

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