O diálogo das fontes como método de aplicação do direito: do monismo internacionalista de Hans Kelsen ao dualismo dialógico baseado em Erik Jayme e Giuseppe Martinico

AutorLorena de Mello Rezende Colnago/Ben-Hur Silveira Claus
Páginas21-43

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1. Introdução

Gustav Radbruch, na sua Einführung in die Rechtswissenschaft, publicada em 1929, ao escrever sobre o direito internacional em geral, pontuou que muito se negou a sua natureza jurídica, diante de sua realidade aparentemente oca, já que, por detrás dele, não haveria uma organização protetora baseada em sua imposição e obrigatoriedade, mas que, também, muito se louvou a sua existência, baseada na pluralidade de países e no respeito mútuo entre eles, entendendo-o como a única garantia de um futuro melhor.2 A primeira perspectiva foi, no decorrer dos anos, praticamente abandonada devido à falsa percepção, demonstrada por Anthony D’Amato, de que normas de direito internacional não teriam exequibilidade.3 A segunda perspectiva, por sua vez, concretizou-se, tendo o direito internacional, tanto o ramo público quanto o ramo privado se tornado de elevada importância para a convivência entre os países e para a eficácia do direito e dos direitos.

O direito internacional público se preocupou, inicialmente, com o direito à guerra e as questões relativas à colonização; na fase seguinte, após a Segunda Guerra Mundial, o seu foco passou a ser a proteção dos direitos humanos, a limitação do poder soberano dos Estados e a melhoria das relações entre eles, a regulação do uso da força e o direito humanitário.4 O direito internacional privado, à sua vez, surgiu e permaneceu como um direito voltado para impedir e/ou solucionar os concursos de leis no espaço,5 conhecido, por isso, como o direito dos conflitos. Complementar e, de certa forma, esclarecedora é a lição de André de Carvalho Ramos sobre o objeto do direito internacional privado: “disciplina jurídica que se debruça sobre a regência – tanto normativa quanto de julgamento e implementação de decisões – de fatos sociais que se relacionam com mais de uma comunidade humana, também denominados fatos transnacionais. Esses fatos sociais são multiconectados ou plurilocalizados, podendo ser regulados por mais de um ordenamento jurídico”.6

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Essa multiconexão, baseada no pluralismo característico do direito pós-moderno e qualificadora da questão do conflito de leis, é o leitmotiv da análise proposta neste texto. Os pontos de partida, de conexão e de chegada são os mesmos: o inter-relacionamento (diá-logo) dos textos normativos de sistemas jurídicos (fontes) de diferentes níveis de normatização (multinível) a partir da atuação dos aplicadores do direito (juízos). O que se busca é mostrar a possibilidade e a necessi-dade de um diálogo de fontes feito pelo Judiciário em um contexto multinível democrático para o melhoramento do direito, isto é, para suas melhores compreensão e aplicação.

Para desenvolver essa ideia, a análise se inicia com a apresentação de um modelo a ser superado, do escalonamento do ordenamento jurídico proposto por Hans Kelsen. A construção kelseniana, no âmbito internacional, baseia-se no monismo internacionalista, o qual se funda no princípio geral de que a norma de direito internacional prevalece sobre a norma de uma lei interna, declarando-se a invalidade desta. Ao final do trabalho fica clara a adoção de um dualismo dialógico, pelo qual há duas ordens jurídicas, a internacional e a interna, que se relacionam e, sem prejudicar a soberania dos países, se integram para a aplicação do melhor direito.

Já no final da apresentação do modelo kelseniano, fica clara a necessidade de sua superação, ingressando a análise na análise das etapas da aplicação do direito, a partir da demonstração de que a proposta de um método dialógico para a aplicação do direito tem origem no método dedutivo, desde o emprego da subsunção pura, passando pelo uso de critérios para resolver antinomias de primeiro e segundo graus, até chegar à ponderação para escolher a norma aplicável à situação concreta. O foco, nesse momento, é a análise das transformações do método dedutivo até a criação da ponderação, apresentando os principais conceitos, com o propósito de destacar a evolução metodológica que tem, na atualidade, o seu ponto de chegada no método do diálogo das fontes, que nada mais é do que o método dedutivo atualizado para as necessidades pós-modernas.

Em seguida, apresenta-se o diálogo das fontes como método de aplicação do direito, esclarecendo o que Erik Jayme pretendeu com a sua criação e relacionando-o com as ideias de Giuseppe Martinico, especial-mente de integração silente a partir do diálogo entre juízos para o melhoramento do direito. Muito embora os dois autores falem a partir de loci diferentes – Jayme do direito internacional privado e Martinico do direito público comparado –, ambos tratam sobre o método dialógico e do aproveitamento de fontes normativas que produzem normas jurídicas em níveis diferentes. Ao final, fica clara a afirmação acima feita de que o dualismo dialógico é uma teoria mais adequada que o monismo internacionalista kelseniano, e que a proposta do método de Jayme e as contribuições de Martinico levam a um aprofundamento da lei de ponderação.

Diante desses esclarecimentos iniciais, há que se começar a análise proposta.

2. Um modelo a ser superado

Kelsen, em sua Reine Rechtslehre, formulou a defesa da unidade do ordenamento jurídico. A tese baseia-se na existência de um conjunto de normas organizadas em diferentes níveis hierárquicos que formariam uma pirâmide. A figura geométrica funcionaria como uma metáfora, extraída da teoria do escalonamento, previamente desenvolvida por Merkl, para descrever o funcionamento do sistema jurídico lançado pelo jurista de Praga.

No capítulo cinco da Reine Rechtslehre,7 Kelsen discorreu sobre a dinâmica jurídica, em que trata sobre a estrutura escalonada e a norma fundamental de uma ordem jurídica. É impossível, no entanto, falar-se sobre a teoria do escalonamento da ordem jurídica sem que se trate sobre a norma pressuposta fundante.8

Kelsen tratou a norma pressuposta fundante como o fundamento de validade de toda e qualquer ordem normativa. Com ela, o autor pretendeu estabelecer um ponto de partida – ou de chegada – que evite regressões infinitas na busca pelo fundamento de validade das normas jurídicas de um ordenamento, como ele próprio afirma: “a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal como a investigação da causa de um determinado efeito, perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se pressupõe como a última e a mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento da sua validade já não pode ser posto em

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questão”.9 A essa norma pressuposta fundante, Kelsen denominou Grundnorm, designando-a como “a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum”.10 A norma pressuposta fundante é um dogma que não se deve questionar, cuja validade não deve ser posta em questão, embora seja questionável.

Não se deve questionar a Grundnorm em termos de teoria pura do direito, de modo que se lhe pode questionar em termos, por exemplo, de teoria sociológica, filosófica ou política.11 No que se refere à uma teoria estrita do direito referida norma há de ser vista como apenas fornecendo o fundamento de validade, mas não o conteúdo das normas12 que formam o sistema por ela encabeçado. Trata-se, assim, de um corte metodológico, ou mesmo de um limitador, o qual estabelece que determinadas normas pertencentes a certo sistema jurídico são simplesmente válidas, e que o seu conteúdo emana de uma autoridade tornada competente pela Grundnorm para estabelecer o conteúdo das normas jurídicas. Diante disso, não há como não se concluir que a norma pressuposta fundante na teoria do escalonamento é a norma superior por excelência. Ela dá validade a todas as outras normas.

Joseph Raz escreveu que “Kelsen postula a existência de normas fundantes porque as enxerga como necessárias para explicar a unidade e a normatividade dos sistemas jurídicos, já que o ordenamento jurídico não é uma coleção de normas ao acaso”.13 E para isso ele assumiu dois axiomas. Pelo primeiro axioma, “duas leis, uma das quais direta ou indiretamente autoriza a criação da outra, necessariamente pertencem ao mesmo sistema jurídico”,14 ou seja, se uma autoriza a criação da outra ou se ambas têm sua criação autorizada por uma terceira lei, então duas (ou mais) leis pertencem ao mesmo sistema jurídico. Pelo segundo axioma, “todas as leis de um sistema jurídico são autorizadas, direta ou indiretamente, por uma lei”,15 de maneira que se de duas leis uma não autoriza a criação da outra, então elas só vão pertencer ao mesmo sistema se houver uma lei que autorize a criação de ambas. Reunindo os dois axiomas em uma única formulação, tem-se que deve haver sempre uma lei ou uma norma que dê validade ou que autorize a criação de todas as demais, no sistema kelseniano é a norma pressuposta fundante ou Grundnorm.

Portanto, para Kelsen, as normas não formariam um conjunto ao acaso, e, sim, um sistema organizado de acordo com um princípio em comum, a Grundnorm, a norma fundamental, que, de acordo com Gregorio Robles “não é uma norma a mais da ordem jurídica, não é uma norma ‘posta’, e sim ‘suposta’ (vorausgesetze), não é uma norma no sentido jurídico-positivo, senão uma hipótese transcendental, um pressuposto lógico-transcendental (transzendental-logische Voraussetzung), e se resume na seguinte fórmula: é preceptivo comportar-se de acordo com o que a Constituição prescreve, ou seja, como corresponde ao sentido subjetivo do ato volitivo criador da Constituição, aos preceitos do constituinte”.16

Assim, a norma...

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