Dialética e revolução: confrontando Kelsen e Gadamer quanto à interpretação jurídica

AutorHans Lindahl
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, V. 11, N. 4, 2020, p. 2849-2885.
Hans Lindahl
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/44910 | ISSN: 2179-8966
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Dialética e revolução: confrontando Kelsen e Gadamer
quanto à interpretação jurídica
Dialectic and revolution: confronting Kelsen and Gadamer on legal interpretation
Hans Lindahl1
1 Universidade de Tilburg, Holanda. E-mail: H.K.Lindahl@tilburguniversity.edu. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-1333-9746.
Versão original:
LINDAHL, Hans. Dialectic and Revolution: Confronting Kelsen and Gadamer on legal
interpretation. Cardozo Law Review, v. 24, n. 2, p. 769-798, 2002-2003. DOI?
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Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, V. 11, N. 4, 2020, p. 2849-2885.
Hans Lindahl
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/44910 | ISSN: 2179-8966
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Resumo
O presente artigo examina a estrutura as condições gerais da interpretação jurídica,
reveladas a partir do confronto entre a hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer
e uma concepção possível da interp retação jurídica, projetável na Teoria Pura do Direito
de Hans Kel sen. A questão gadameriana, “O que define a interpretação jurídica como
interpretação”, sugere que a referência de Kelsen às normas jurídicas como “esquemas
de interpretação” p recisa ser radicalizada: a circularidade ou dialética hermenêutica é
atuante no Direito, de modo que a interpretação jurídi ca da realidade transforma, em
maior ou menor medida, o princípio de interpretação a norma jurídica. A questão
kelseniana, “O que def ine uma interpretação como interpretação jurídica?, sugere que
a interpretação jurídica sempre acontece de maneira subjacente a uma ruptura
normativa que não p ode ser “fechada” interpretativamente a partir da ordem ela
mesma. Por conseguinte, e em última instância, a abordagem gadameriana da
interpretação jurídica se revelaria positivista.
Palavras-chave: Interpretação Jurídica; Determinação jurídica; Familiaridade;
Estranhamento; Hermenêutica.
Abstract
This paper examines the general structure and conditions of legal interpretation that
arise from confronting Gadamer's philosophical hermeneutics with a determinate
conception of legal interpretation suggested by Kelsen's Pure Theory of Law. The
Gadamerian question, "What defines legal interpretation as interpretation?", suggests
that Kelsen's reference to legal norms as "schemes of interpretation" must be
radicalized: a hermeneutic circularity or dialectic is at work in the law, such that the legal
interpretation of reality also changes, to a lesser or greater extent, the principle of
interpretation - the legal norm. The Kelsenian question, "What defines interpretation as
legal interpretation?", suggests that legal interp retation always moves on this side of a
normative rupture that cannot be "closed" interpretatively from within the order itself.
This insight implies that Gadamer's account of legal interpretation ultimately falls prey
to positivism.
Keywords: Legal Interpretation; Legal Determinacy; Familiarity; Strangeness;
Hermeneutics.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, V. 11, N. 4, 2020, p. 2849-2885.
Hans Lindahl
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/44910 | ISSN: 2179-8966
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Introdução1
Qualquer um que folheie a Teoria Pura do Direito esperando encontrar uma análise
filosófica aprofundada ac erca da interpretação jurídica está fadado a se desapontar, ao
menos em princípio. A interpretação jurídica ocupa um papel relativamente modesto na
estrutura da Teoria Pura, e o enfoque da análise kelseniana é extremamente estreito. A
perspectiva avançada por Kelsen é em gra nde medida determinada pela rejeição
completa da posição que compreende os métodos da interpretação j urídica como o
caminho para uma “única resposta correta”. Ainda que perspicaz, a abo rdagem de
Kelsen não deixa de ser restritiva por demasiado. Sua estreiteza e mesmo seu
reducionismo é chocante dado o papel de destaque ocupado pela interpretação nas
mais variadas linhas de investigação filosófica, contemporâneas ao desenvolvimento da
Teoria Pura. A análise em Edmund Husserl da estrutura da intencionalidade, a discussão
em Heidegger da compreensão como um elemento fundamental da relação humana
com o mundo, e a elaboração por parte de Hans-Georg Gadamer da hermenêutica
filosófica podem ser vistas, com a abstração considerável de suas diferenças, como
tentativas de clarificar a estrutural comum e as condições de possibilidade da
interpretação.
A obra de G adamer tem particular interesse, visto que nela há uma discussão
específica quanto à interpretação jurídica, assumindo então um papel paradigmático de
exposição do esforço hermenêutico como um todo. Verdade e Méto do, sua obra magna,
teve uma influência profunda nas discussões da Teoria do Direito acerca do conceito e
tarefa da interpretação jurídica, tanto na Europa Continental quanto na tradição anglo-
saxã. Um exemplo conhecido é o de Ronald Dworkin, quem reconhece sua dívida para
com Gadamer nos capítulos iniciais de Império do Direito. Em suma, enquanto o que se
poderia denominar vagamente c omo um giro hermenêutico na filosofia moderna teve
um impacto considerável na discussão teórico-j urídica acerca da interpretação jurídica,
Kelsen pareceria ter permanecido teimosamente impermeável a esse tipo de
pensamento.
1 Originalmente publicado como Dialectic and Revolution: Confronting Kelsen and Gadamer on legal
interpretation, no volume 24, n. 2, p. 7 69-798, ano 2002-2003 da Cardozo Law Review. O autor agradece a
Ulises Schmill, Michel Troper, Bert van Roermund e Oscar Sarlo pelos comentários e apontamentos a um
esboço desse artigo, apresentado no Congr esso da Associação Internacional de Filosofia do Direito e
Filosofia Social em junho de 2001, em Amsterdam.

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