O desenvolvimiento histórico do direito comercial e o significado da unificaçáo do direito privado

AutorTullio Ascarelli
Páginas237-252

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  1. Observando a historia do direito, nao tardamos em perceber a freqüéncia com a qual o direito privado se apresenta subdividido em dois sistemas, por vezes um deles regulando determinadas materias com exclusáo do outro, outras vezes, ao contrario, concorrendo na regulacjío da mesma materia. Ao sistema "tradicional" contrapóe-se, entáo, um sistema "equitativo". Eqüidade, neste caso, nao significa "justiqa no caso concreto" ou "regra de direito social em contraposigao ao estatal", mas significa o emergir, primeramente de modo limitado e depois históricamente mais ampio, de novos valores e novos principios, invocados antes supplendi vel corrigendi gratia e, depois, em um ámbito mais vasto, até que, no desenvolvimento histórico, normas antes consideradas excepcionais, depois sistematizadas como um direito especial, cheguem a constituir um direito geral e comum. Acabam, entáo, as normas contrastantes do velho direito tradicional por assumir por vezes quase o caráter de reliquias históricas de um sistema, a essa altura geralmente inspirado naquele que, ao inicio do desenvolvimento, formava o seu temperamento. Jus civile ejus honorarium, no direito romano, mostram-nos essa distinçao; common law e equity, no direito an-glo-saxáo, repetem a dicotomia, indicando a importancia de um fenómeno próprio dos dois sistemas, nos quais posteriormente se inspiravam todos os sistemas jurídicos da Cristandade. Essa dicotomia parece ilógica a quem se preocupa com simetrías sistemáticas; mas ela corresponde áquela con-

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    ciliaçao entre exigencias conservadoras e progressistas, entre a rigidez e a elasticida-de imanentes em cada sistema, permitindo a adogáo de novos principios por uma vía quase experimental, que consente na sua adogáo primeiramente em alguns seto res e, progressivamente, em outros, admitindo-Ihes abstratamente uma aplicagao geral, mas sancionando-os somente na medida em que isso se faga necessário, tanto que sua expansáo permanece confiada ao tempo e sujeita ao valor que a experiencia lhe der.

    O direito "especial" caracteriza-se, justamente, por sua limitada aplicagáo, a despeito da amplitude geral e abstraía dos seus principios; as suas características po-dem prender-se, antes a uma considerado histórica do direito no seu desenvolvimen-to, do que a uma consideracjío sistemática em certo momento. A eqüidade se apresen-ta, entáo, como afirmagáo efetiva de novas normas que, mais chegadas á consciéncia atual, sao consideradas equitativas em confronto com aquelas tradicionais, mas que também tém um caráter geral e acabam por afirmar-se como tais no desenvolvimento histórico do direito, até que sejam sancionadas como principio geral, tal qual se deu com o "Judicature Act" inglés de 1875.

  2. O direito comercial, parece-me ñas suas origens e no seu desenvolvimento, liga-se aos fenómenos ora mencionados.

    Sem dúvida, podemos em cada época destacar normas particulares do comercio; mas um sistema de direito comercial, em contraposigao ao do direito civil, somente surge com o renascimento da vida medieval ñas comunas italianas, com o assentar-se, dentro dos muros das novas cidades, de uma civilizagáo urbana e burguesa, fundada no trabalho livre e na renovada operosi-dade do tráfico mercantil, concomitante-mente com o prodigioso florescimento cultural, que conheceu o cántico de Sao Francisco e o poema de Dante, a redescoberta de Aristóteles e as pesquisas experimentáis.

    O direito romano, mesmo ñas normas particulares do comercio, nao conhecera um sistema autónomo de direito comercial. Talvez para isso houvesse concorrido a dicotomía entre juris civile e honorarium, a qual nos referimos, bem como a satisfa-gáo, através do jus gentium, daquelas exigencias internacionais, táo vivas na forma-gáo do direito comercial.

    Um sistema de direito comercial se encontra, ao contrario, ñas nossas cidades medievais, em conexáo e em contraste com o ainda vigente direito romano-canónico. A elaboragáo entáo realizada foi, antes de mais nada, produto do desenvolvimento consuetudinario no meio corporativo, em fungáo de sua peculiar jurisdigáo; um direito pois, particular, elaborado pelos pró-prios comerciantes dentro de uma esfera de autonomía (o que explica sua aplicabüida-de apenas a estes, por um criterio subjetivo). Ao lado da minuciosa regulamentagáo corporativa referente a filiagáo á corpora-gáo, a disciplina destas, a das mercadorias e dos servidos dos seus membros, desen-volvem-se normas, sempre aplicadas por criterios subjetivos, que dizem respeito á troca de mercadorias e de servidos. Sao es-sas normas que, elaboradas ñas corpora-góes mercantis e aplicadas pelos respectivos tribunais da justiga consular, e desenvolvidas ñas feiras, combinam-se com a evolugao dos costumes para a formagáo de um corpas juris substancial e interna-cionalmente uniforme no ámbito mercantil e que encontra no seu internacionalismo nova razáo de vida e de autonomía. Nao obstante essas normas, pela sua ori-gem, serem aplicadas em fungáo de um criterio subjetivo, consagra-se a competencia da jurisdigáo consular mesmo quan-do apenas uma das partes é comerciante. O mar, principal meio de comunicado, apre-senta, por seu turno, na elaboragáo de seus institutos, principios bem ricos de desenvolvimento; na origem dos seguros encontramos o hoje esquecido empréstimo de cambio marítimo.

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    As normas assim elaboradas dizem respeito sobretudo ao mercado e ao cambio, constituindo assim aquele direito que ainda hoje chamamos mercantil. Sao justamente os problemas de mercado que pre-valecem neste primeiro período do direito comercial, cujo inicio podemos, para indicar urna data, fazer remontar ao inicio do século XII e cujo término podemos situar na segunda metade do século XVI. Um tratado desse primeiro período encontramos completo na obra de Stracca (1553), primeiro sistematizador do direito comercial.

    O direito comercial distingue-se, en-táo, do direito comum no que diz respeito as suas fontes, porque estas residem ácima de tudo na autonomia corporativa e nos costumes dos comerciantes, direito esse outrossim nao apenas a estes aplicável, mas por eles elaborado, com urna jurisdi-gáo especial que é a das corporagoes e das feiras, com urna autonomia corporativa comparável á das diversas classes sociais e fruto da autonomia de que estas gozam no direito medieval. Relativamente ao seu con-teúdo, o direito comercial deste período gravita em torno de um polo normativo, constituido pelo cambio e pelo mercado e que desde entáo adquire (nao obstante o criterio subjetivo de sua aplicagáo) um valor próprio, distinguindo-se assim de um mero direito classista e da disciplina interna das corporales e dos seus membros, de importancia predominante ñas corporagóes de oficios. Neste período formam-se regras sobre a conclusáo dos contratos, sobre re-presentagáo, sobre auxiliares do comerciante, sobre pagamentos (a letra de cambio aparece como instrumento de pagamentos internacionais) sobre a venda, sobre comis-sao, sobre livros do comerciante, sobre falencias e assim sucessivamente.

    A formagáo dessas normas, originariamente italianas, é básicamente uniforme no campo internacional e independente dos limites geográficos, pelo que Stracca pode falar adequadamente de um novo jus gen-tium. Isto ocorre mesmo além das frontei-ras que permanecerán! hostis á penetragao do direito romano comum, ou seja, mesmo na Inglaterra. Ao desenvolvimento corporativo e consuetudinario do direito comercial ñas cidades da Europa Continental corresponde, na Inglaterra, com ampia seme-lhanga de principios, a sua evolugáo atra-vés de procedimento sumario dos tribunais das feiras (os piepowder courts) e a disciplina especial das cidades dotadas de um privilegio de mercado (staple systeni).

  3. Concluido o processo de formagáo das monarquías centralizadas, abriu-se, no meu modo de ver, um segundo período da historia do direito comercial, cujo inicio podemos situar nos fins do século XVI. As fontes do direito comercial nao mais seráo encontradas na autonomia das corpora-góes, pois o direito comercial passará a fazer parte do direito comum. A evolugáo consuetudinaria sucederá um desenvolvimento fundado ñas ordenagóes emanadas da autoridade regia, preocupada com a formagáo de um mercado nacional e enciuma-da com a autonomia das varias ordens pro-fissionais. As normas elaboradas no primeiro período, referentes á troca e ao mercado, demonstram a sua própria forga, atra-vés da persistencia da autonomia do direito comercial, a despeito de modificagóes havidas em suas características. Com efei-to, nascido no meio corporativo e fruto da elaboragáo dos comerciantes, o direito comercial se reafirma através da capacidade de superar suas origens corporativas. Seu centro de propulsáo desloca-se da Italia, que nao consegue tornar-se um Estado Nacional, exatamente quando alhures se afir-mam as grandes monarquías nacionais centralizadas, para os Países Baixos, Franga e Inglaterra, ao mesmo tempo em que a Ale-manha conhece urna profunda crise económica, agravada depois pela Guerra dos Trinta Anos. Na Europa Oriental, em con-traposigáo com a evolugáo da Europa Oci-dental, reforga-se e se sistematiza a servi-dáo da gleba, tanto que a libertagáo das massas camponesas lá ocorrerá, assim, co-

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    mo em grande parte da Alemanha, sornen-te no século XIX.

    A Especializado da Justina, ministrada por tribunais especiáis, compostos por comerciantes (correspondendo-Ihes na Inglaterra o entendimento de regras mércan-tis como costumeiras, sujeitas a julgamén-to de fato pelos jurados, nao obstante a avocagáo, desde 1606, da jurisdigáo comercial pelos tribunais de common law) e a qualificagáo dos comerciantes cómo criterio determinante da aplicabilidade das regras mercantis continuam a distinguir o di-reito comercial, mas também este se apre-senta, a despeito de sua especialidade, como parte do direito em geral, regido por vezes pelas grandes OrdenagÓes, como a de Luís XIV. As exigencias do tráfico mercantil...

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