Desconsideração da personalidade jurídica em grupos de sociedade para fins de aferição do limite previsto no art. 81, § 1o, da Lei no 9.504/97

AutorDaniel Castro Gomes da Costa - Tarcisio Vieira de Carvalho Neto
Páginas331-343

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1. Introdução

Este artigo busca demonstrar a possibilidade de utilização do instituto da desconsideração da personalidade jurídica para aferição do limite previsto no art. 81, § 1º, da Lei nº 9.504/971 para as doações de campanha por pessoas jurídicas. A hipótese de aplicação desse instituto aqui cogitada refere-se, especificamente, à desconsideração da personalidade jurídica de empresa controlada em grupo de sociedades, de modo que o faturamento da controladora seja levado em conta para a aferição do referido limite.

Assim, impõe-se, em um primeiro momento, expor a teoria da desconsideração da personalidade jurídica (item 2, infra). Após essa exposição, passar-se-á à análise do Enunciado nº 486 da Súmula do STF,2segundo a qual seria possível deixar de levar em conta a personalidade jurídica para favorecer a sociedade empresária (item 3, infra). Nesse item serão analisados os fundamentos das decisões que embasaram a edição do enunciado da Súmula e será verificada a possibilidade de transposição desses fundamentos para o caso em análise. Por fim, com base nas conclusões dos itens anteriores, demonstrar-se-á a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica para fins de aferição do já referido

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limite previsto no art. 81, § 1º, da Lei nº 9.504/97 e delimitar-se-ão as condições necessárias e suficientes para que ocorra essa desconsideração (item 4, infra).

2. Desconsideração da personalidade jurídica

Uma análise, mesmo que superficial, do instituto da desconsideração da personalidade jurídica passa pela exposição do que é a personalidade jurídica e quais as suas consequências (subitem 2.1, infra). Após essa exposição, será possível expor algumas teorias sobre os fundamentos da desconsideração da personalidade jurídica e seus efeitos (subitem 2.2, infra).

2.1. Sociedade e personalidade jurídica

Não se pretende neste artigo esgotar a riquíssima discussão a respeito da atribuição da personalidade jurídica. O que se pretende neste subitem é tão-somente introduzir algumas das teorias existentes, de modo a possibilitar o desenvolvimento do raciocínio teórico.

São diversas as teorias que buscam explicar o fato de se conferir a um ente que carece de existência corpórea a capacidade de adquirir direitos e obrigações e a personalidade - encarada como fenômeno jurídico - ínsita às pessoas naturais. Segundo a teoria da ficção, só o ser humano pode ser pessoa, sendo personalidade jurídica uma ficção por meio da qual se estende a capacidade de adquirir direitos e obrigações a um ente não-corpóreo para fins exclusivamente patrimoniais. A pessoa jurídica, no entanto, careceria de vontade própria e, por isso, precisaria ser presentada e representada.3Essa teoria peca por restringir a capacidade da pessoa jurídica às relações patrimoniais, conceituação que se tornou insuficiente com a evolução do direito privado, que deixou de se encarado sob ótica exclusivamente patrimonial.

A teoria do patrimônio de afetação postula que existem patrimônios impessoais que são destinados a determinado fim (daí o nome alemão da teoria, "Zweckvermögen", de "Zweck", finalidade ou propósito e "Vermögen", patrimônio). Assim, a personalidade jurídica não seria uma ficção, mas um instrumento para permitir que esses patrimônios impessoais com destinação específica

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atingissem sua finalidade. Essa teoria ignora, no entanto, a existência, mesmo que momentânea, de pessoas jurídicas sem patrimônio.4A teoria orgânica, defendida por Gierke5confere aos organismos sociais vontade e interesse próprios, distintos das pessoas naturais que os compõem. Em virtude dessa vontade e interesse próprios, o direito lhes confere personali-dade jurídica, da mesma maneira que confere às pessoas naturais. Ocorre que essa teoria ignora a existência de organismos sociais que poderiam ser caracterizados como detentores de vontade própria mas aos quais o ordenamento jurídico não confere a personalidade jurídica. Basta imaginar a situação das sociedades em comum no direito brasileiro.6Por fim (embora, como já se disse, a presente numeração não pretenda ser exaustiva), a teoria institucional defende serem as pessoas jurídicas instituições voltadas para a consecução de um propósito nas quais se opera a combinação das vontades das pessoas naturais que a compõem.7Mais importante do que entender qual teoria da personalidade jurídica é mais correta, no entanto, é compreender que a personalidade jurídica é uma forma que o Direito confere a determinados entes capacidade jurídica para atender determinadas necessidades econômicas de uma sociedade historicamente localizada.8Tanto é assim que a própria noção de personalidade jurídica nasceu da necessidade de criar uma parte no negócio jurídico de aquisição de uma parcela de uma sociedade por meio da contribuição para um fundo comum.9Assim, a personalidade jurídica nada mais é que um instrumento hábil a conferir a determinado ente maior ou menor capacidade jurídica.10O ordenamento, portanto, confere capacidade jurídica a determinados entes que delas

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necessitam para que possam atingir determinadas finalidades que não poderiam, ou só com muita dificuldade, ser atingidas sem a capacidade jurídica.

Ao se conferir personalidade jurídica a um ente, cria-se um novo sujeito de direito, com seus próprios interesses, constituído para a consecução de uma finalidade e dotado de autonomia patrimonial.

Outra característica que comumente acompanha a personalidade jurídica, mas não é ínsita a ela nem dela depende,11é a limitação da responsabilidade, que impede que credores da pessoa jurídica satisfaçam seu crédito no patrimônio dos sócios da empresa. A limitação da responsabilidade permite que se façam investimentos de maior risco e, por isso, mais aptos à inovação e aos grandes lucros e possibilita a livre circulação dos títulos representativos de participação na sociedade.12

2.2. Desconsideração da personalidade jurídica: pressupostos e efeitos

A desconsideração da personalidade jurídica nasceu na tradição de common law, tendo sido aplicada pela primeira vez em 1809, no caso o Bank of Unites v. Devaux.13Nesse caso, a Suprema Corte dos Estados Unidos da América reconheceu sua própria competência para julgar o caso. A Suprema Corte americana tem competência para julgar casos em que estejam envolvidas pessoas residentes em estados federados distintos e, no caso, o banco fora constituído no mesmo estado em que residia o senhor Devaux. No entanto, como os acionistas do banco residiam em outro estado, a Suprema Corte desconsiderou a personalidade jurídica e declarou sua própria competência.14O primeiro caso no qual a desconsideração da personalidade jurídica foi utilizada para fins patrimoniais e que tornou o instituto mais famoso foi o Salomon v. Salomon &Co, de 1897. Nesse caso discutia-se a legalidade de uma reorganização societária operada pelo senhor Salomon, proprietário de quase

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toda a participação societária que prejudicou credores quirografários. Na reali-dade, a decisão de 1ª Instância, que admitiu a desconsideração da personalidade jurídica, foi reformada, mas é a partir desse caso que o instituto passou a ser discutido doutrinariamente.15No Brasil, considera-se que o primeiro artigo de doutrina nacional sobre o tema foi escrito por REQUIÃO16 em 1969. Nesse artigo, o autor defende que a possibilidade de desconsiderar a personalidade jurídica nos casos de abuso do direito - à personalidade jurídica ou à separação patrimonial - ou de prática de fraude por meio da pessoa jurídica. Nos casos de desconsideração não have-ria uma anulação da personalidade jurídica, mas uma declaração de ineficácia parcial.

Em 1976, COMPARATO também escreveu sobre o tema17e ampliou a possibilidade de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. Segundo o autor esta seria possível também para beneficiar o credor, como de fato ocorreu em sede jurisprudencial (v. item 3, infra). Nessa perspectiva, poderia haver a desconsideração da personalidade jurídica, com a declaração de sua ineficácia parcial sempre que houvesse um desvio na finalidade da pessoa jurídica, que é a criação de um centro de interesses autônomo.

É essa teoria a mais hábil a explicar a desconsideração da personalidade jurídica. Isso porque, ao conferir personalidade jurídica a um ente imaterial, o legislador o faz com vistas ao atingimento de determinados fins econômico-sociais que não seriam atingidos sem a constituição de pessoa autônoma. Ora, se um ente deixa de representar um centro de interesses autônomo, não há razão para que se confira a ele a personalidade jurídica, motivo pelo qual deve ser reconhecida a ineficácia parcial de sua personalidade jurídica.

3. O enunciado nº 486 da Súmula do STF

Como já se adiantou, existe enunciado de Súmula do STF que deixou de levar em conta a personalidade jurídica...

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