A Descodificação do Direito Civil Microssistemas e outros Modismos

AutorVitor Frederico Kümpel - Bruno de Ávila Borgarelli
Páginas11-36
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Revista Logos | Edição 1/2015
A Descodificação do Direito Civil
Microssistemas e outros Modismos
Vitor Frederico Kümpel
Bruno de Ávila Borgarelli
1. Introdução – A sistematização do Direito
Em uma das mais célebres exposições acerca do pensamento sistemático no
Direito, CLAUS-WILHELM CANARIS1 afirma que o significado de sistema ocupa lugar
de destaque na metodologia jurídica, e que sua conceituação representa uma das mais
acirradas controvérsias nessa seara.
O autor define o sistema a partir da clássica formulação kantiana, isto é, como
unidade de conhecimentos diferentes ou ordenação de realidades distintas a partir de
pontos de vista unitários.
Pela complexidade do conceito, não podemos nos dedicar a uma exposição
rigorosa sobre o mesmo, pois nossa intenção aqui é bem menos ambiciosa. Mas
devemos indicar, ao menos, um sentido genérico. Ao falar em sistema, podemos nos
referir a “ordenamento jurídico2” ou a uma concepção técnica que revela a estrutura do
objeto de estudo, bem como o conjunto ordenado e coeso de conhecimentos3.
Está presente, assim, a ideia de unidade, se bem que autores encontrem
elementos distintos para estabelecer essa noção. LARENZ4, por exemplo, via na
axiologia o referencial de unidade do Direito5. Nada que o distancie, a rigor, de
CANARIS6, seu discípulo. Destaque-se que essa visão indica o sistema no sentido de
1 – Systemdenken und Systembegriff in der Jurisprudenz, trad. ao port. por. A. MENEZES CORDEIRO, Pensamento Sistemático e
Conceito de Sistema na Ciência do Direito, 5.ed., Lisboa, Calouste Gulbenkian, 2012, p. 5.
2 – O sistema com sentido de ordenamento é o objeto, por exemplo, da obra de R. DAVID, Les Grands Systèmes du Droit
Contemporains, trad. ao port. por H. A. Carvalho, Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, 4.ed., São Paulo, Martins Fontes,
2002. Tome-se como exemplo da diferença entre os dois conceitos de sistema jurídico a seguinte passagem da referida obra: “Os
diferentes direitos comportam, cada um deles, conceitos à sombra dos quais exprimem as suas regras, categorias no interior das
quais eles as ordenam; a própria regra de direito é concebida por eles de um certo modo. Ainda neste triplo aspecto existem, entre os
direitos, diferenças, e o estudo de um dado direito implica uma tomada de consciência das diferenças de estrutura que podem existir
entre este direito e o nosso” (p. 16). Evidente que, aí, o autor se refere a sistema enquanto ordenamento.
3 – M. G. LOSANO, Sistema e Struttura nel Diritto – Dalle Origini ala Scuola Storica, trad. ao port. por C. A. Dastoli, Sistema e Estrutura
no Direito, São Paulo, Martins Fontes, 2008, v.1, cit. prefácio à edição brasileira pp. XIX ss.
4 – Methodenlehre der Rechtswissenschaft, trad. ao port. por J. Lamego, Metodologia da Ciência do Direito, 7.ed., Lisboa, Calouste
Gulbenkian, 2014, p. 674 ss.
5 – São essenciais os apontamentos feitos pelo tradutor da obra de LARENZ para o português, J. LAMEGO, acerca da evolução do
pensamento do grande autor alemão (in Methodenlehre cit., pp. 701-713, especialmente p. 709).
6 – Para CANARIS, “as características do conceito geral do sistema são a ordem e a unidade. Eles encontram a sua correspondência
jurídica nas ideias de adequação valorativa e da unidade interior do Direito; estas não são apenas pressuposições de uma
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sua unidade interna (unidade valorativa intrínseca), o que diverge da ideia de uma
unidade extrínseca.
A estruturação sistemática do ponto de vista externo também encontra
historicamente divergências entre os autores. Para uns – como o próprio Larenz7 – os
princípios é que dão visibilidade ao conteúdo valorativo que integra a ordem jurídica,
enquanto PHILIP HECK8, por exemplo, acreditava que os conceitos formais perfaziam a
referida estrutura9, por ele denominada de sistema externo.
CASTANHEIRA NEVES10, em obra também aclamada, aponta o sistema como
uma “unidade de totalização normativa” analisada em quatro elementos, constitutivos da
normatividade e “organizados em quatro estratos distintos e entre si relacionados num
todo integrante”: os princípios; as normas; a jurisprudência; e a dogmática11. Perceba-se
aqui a definição do ponto de vista externo.
De todo modo, reconhecendo essas divergências, valemo-nos da ideia de estrutura
sistemática, especificamente no sentido de um conjunto de elementos em coesão –
lembremos que as dúvidas, como expusemos, recaem sobre a caracterização desses
elementos e do elemento unificador - ou seja, integrados num todo orgânico normativo,
aqui especificamente considerando uma codificação.
Os romanos– fundadores da ciência jurídica12, e de cuja revolução no pensamento
do Direito ergueu-se, em muito, nossa civilização13 – não chegaram a estabelecer esse
aporte sistemático do ponto de vista externo14. O direcionamento para a vida prática, para
a resolução de problemas que surgiam no núcleo social, constituía o pilar dos juristas
jurisprudência que se entenda a si própria como Ciência e premissas evidentes dos métodos tradicionais de interpretação, mas
também, e sobretudo, consequências do princípio da igualdade e da ‘tendência generalizadora’ da justiça, portanto, mediatamente,
da própria ‘ideia de Direito’ “. (Systemdenken cit., p. 279).
7 – Methodenlehre cit., p. 628 ss. Mas o autor não negava a existência do sistema conceitual-abstrato (extrínseco) e nem que
houvesse uma necessidade de sua exposição. Apenas não colocava essa exposição abstrata como fator prioritário do sistema, pois
no conceitualismo puro a valoração apropriada seria suplantada pela subsunção adequada, de modo que “a lógica formal ocupa o
lugar da teleologia e da ética jurídica”. (p. 622-623)
8 – PHILIPP HECK foi o inaugurador da “Jurisprudência dos Interesses”, escola crítica do conceitualismo puro típico do século XIX
e que pregava, como finalidade da normatividade, a resolução dos conflitos nascidos no ambiente social (conflitos de interesses)
estando o juiz adstrito ou à recomposição dos interesses condicionantes da norma ou, em havendo lacuna, à atividade de ponderação.
Esta corrente, no entanto, não admitia decisões contra legem.
9 – Segundo Canaris, Heck, em sua teoria, não visava desvendar a unidade de sentido interior do Direito, “antes se destinando, na
sua estrutura, a um agrupamento da matéria e à sua apresentação tão clara e abrangente quanto possível”, (Systemdenken cit., p. 26).
10 – Metodologia Jurídica – Problemas Fundamentais, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, p. 155.
11 – CASTANHEIRA NEVES iguala a ‘dogmática’ e a ‘doutrina jurídica’, afirmando que a mesma, “enquanto resultado de uma
elaboração livre e de uma normatividade que apenas se sustenta na sua própria racionalidade fundamentada, não pode invocar
a direta vinculação político-prescritiva, como as normas legais, ou sequer a auctoritas jurídica da jurisprudência – posto seja esse
momento dogmático aquele em que o sistema encontra sua racional e decisiva objectivação” (Metodologia cit., p. 157.)
12 – K. ENGISCH, Einführung in das Juristische Denken, trad. ao port. por J. B. Machado, Introdução ao Pensamento Jurídico, 11.ed.,
Lisboa, Calouste Gulbenkian, 2014, p. 13; M. MARRONE, Instituzioni di Diritto Romano, 3.ed., Palermo, Palumbo Editore, p. 5.
13 – R. VON IHERING, Der Geist des Römischen Rechts, trad. ao port. por Rafael Benaion, O Espírito do Direito Romano, Rio de
Janeiro, Alba, 1943, v. 1, p. 12.
14 – M. KASER, Römische Privatrechts, trad. ao port. por S. Rodrigues e F. Hämmerle, Direito Privado Romano, Lisboa, Calouste
Gulbenkian, 1999, p. 24.

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