A (des) proteção normativa da cidadania

AutorLuciana Cristina de Souza
CargoMestre em Sociologia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG
Páginas119-134
A (DES) PROTEÇÃO NORMATIVA DA CIDADANIA
THE NORMATIVE (UN) PROTECTION OF CITIZENSHIP
Luciana Cristina de Souza1
Resumo: O presente artigo discorre a respeito da l eitura histórica e atual do termo “cidada nia”,
notadamente aplica ndo-o à realidad e brasileira. Anali sa também como as consequências da adoção de
distintos significado s para o termo cidadania decorre das formas de reconhecimento dispostas no meio
social e, em virtude di sso, no meio jurídico. Essas a cepções da cidada nia induzem, ainda, a diferentes
maneiras de o Estado perceber o povo, seja como categoria de pes soas infantilizadas e, portanto, que
somente podem viver em sociedade sob a tutela da autoridade pública, seja como sujeitos de direito que
podem e devem, em um Estado Democrático de Direito, politicamente coparticipar na definição das
condições de possibilidade de sua própria cidadania.
Palavras-chave: Cidadania, Constituição, E stado, Igualdade
Abstract: This article dicusses about the histor ical a nd current reading of the term "citizenship",
particularly applyin g it to the Brazilian reality. It also analyzes how the consequences of the different
meanings adopted for the term citizenship derive fro m the shapes of recognition arranged in the social
environment and, because of this, in the legal environment too. These meanings of citizenship induce
also the different ways how th e people are perceived by the State, either as category of childlike persons
that just can live in society un der the protection of the public authority, whether as subjects in law that
can and should in a Democratic State of Law, politically coparticipat e in the definition of conditions of
possibility of its own citizenship.
Key-Words: Citizenship, Constitution, Stat e, Equality
1 COMO COMPREENDER A CIDADANIA
Compreender a origem da cidadania se torna importante para
esclarecermos o que o termo r ealmente significa hoje para nossa sociedade,
identificando quem são os nossos “cidadãos”. Antes que se compreenda a
concepção moderna do termo cidadania, é preciso c onsiderar dois fatores
importantes relativos à cidadania antiga, a qual teria servido de inspiração para o
paradigma moderno. O primeiro relativo à evidente descontinuidade entre o
modelo antigo e o moderno. O paradigma da participação política, que descreve a
natureza da relação de poder entre sociedade civil e Estado, foi muito singular
nestas duas épocas, principalmente se compararmos o contexto ateniense clássico e
a sociedade européia dos oitocentos. As cidades-estado gregas eram territórios
eminentemente agrícolas e nelas o acesso ao poder se vinculava à posse da terra,
como explica Guarinello: “De modo geral, podemos dizer que as cidades-estado
formavam associações de proprietários privados de terra.”2.
Conquanto ambos os contextos políticos, grego clássico e liberal, fossem
constituídos a partir da noção de propriedade privada como direito fundamental
assegurado pelo direito estatal, a vida social urbana experimentada pelos
indivíduos da modernidade contrapunha-se no restante de sua configuração social
às cidades-estado. A metrópole urbana era caracterizada pela presença de famílias
nucleares (pai, mãe e filhos), pelo enfraquecimento do sentimento religioso e dos
1 Mestre em Sociologia pela Faculdade de Filo sofia e Ciên cias Humanas da UFMG e Doutoranda do
Curso de Pó s-graduação em Direito da PUC Minas. Professora na Faculdade de Direito Padre Arnaldo
Janssen e na I BS-FGV, ambas em Belo Horizonte. Coordenadora do Núcleo Estadua l da Associação
Brasileira de Ensino do Direito em Minas Gerais (ABEDI Minas) e gestora da página
www.educacaojuridica.net. E-mail: dralu cianacsouza@gmail.com
2 PINSKY, 2003. p. 32.
120 Direitos Culturais, Santo Ângelo, v.5, n.9 , p. 119-134, jul./dez. 2010
costumes antigos, além da notável diminuição do espaço público em relação ao
privado. Georg Simmel, ao descrever a vida nas metrópoles do século XIX aponta,
ainda, outra característica distintiva da realidade moderna, a atitude blasé que os
indivíduos a ssumem muitas vezes em frente à coletividade pretendendo evitar a
desindividualização que a vida em grupo não raro provoca3. Percebe-se, assim, a
força do individualismo liberal e o caráter fragmentador da vida urbana, enquanto a
vida nas cidades-estado pautava-se pela ideia de comunidade.
A tentativa de universalização do significado de cidadania somente foi
empreendida na Modernidade, após o Iluminismo, ainda que se considere o esforço
romano por implementá-la durante o Império. A concepção de direitos universais
dos cidadãos foi influenciada pela lógica cartesiana e pelo pensamento matemático
que expunha premissas no formato de leis universais. Haveria uma constante entre
os indivíduos, não obstante as inúmeras variáveis que os distinguiam no cotidiano,
que permitiria ao legislador elaborar normas de sentido transcendental, como
proposto p or Kant ao explicar os imperativos categóricos, aplicáveis a todos na
sociedade.
Mas este fenômeno da matematização não foi determinante para o modo
grego de constituir sua vida social. Destarte, a cidadania antiga era múltipla,
enquanto a moderna se propunha universal. Cada cidade-estado elaborava sua
própria Constituição, como explicava Aristóteles, na qual definia quem seriam seus
cidadãos e quais os direitos a eles pertinentes no âmbito de seu território. As leis da
cidade seriam aplicáveis, portanto, somente aos seus cidadãos, o que nos exige o
aprofundamento de outro a specto político do Estado grego, a constituição de seu
povo. Afinal, o termo cidadão somente pode ser delineado clar amente quando
definido este c onceito basilar que o antecede. Definimos aqui cidadão como a
pessoa do povo com direito de participar da tomada de decisões dentro de uma
sociedade politicamente organizada – quer na forma estatal ou comunitária, hoje
também existente –, de acordo com o sistema de normas jurídicas em vigor, que
autoriza sua inserção e assegura o equilíbrio entre os pares.
A cidadania pautada na igualdade foi basilar para o conceito de cidadania
no sistema político liberal, e ainda fundamenta o constitucionalismo
contemporâneo4. Tornou-se um dos pilares dos direitos fundamentais e ancora,
3 SIMMEL, 2005. p. 581.
4 SPIRO, 2003. p. 1493.

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