Democracy and dictatorship in the political theory of Marx and Engels/ Democracia e ditadura na teoria politica de Marx e Engels.

AutorRodrigues, Theofilo Codeco Machado
CargoTexto en portugues

Introducao

Karl Marx foi um homem da ciencia e O Capital foi o fruto mais bem-acabado de sua pesquisa cientifica. "Toda a ciencia seria superflua se a forma de manifestacao e essencia das coisas coincidissem imediatamente", diz sua famosa frase do Livro 3 de O Capital (MARX, 2017, p. 880). Marx tambem foi um homem da filosofia, em particular em seus textos de juventude em dialogo com a obra de Hegel e com os jovens hegelianos; mas um filosofo da praxis, na certeira expressao gramsciana. Pois se em Hegel a coruja de Minerva so deveria alcar seu voo com o crepusculo, em Marx a filosofia deveria ser ela propria agente da transformacao. "Os filosofos so interpretaram o mundo de diferentes maneiras; do que se trata e de transforma-lo" (MARX; ENGELS, 1998, p. 103), argumenta em sua 11a tese sobre Feuerbach. Mas, acima de tudo, Marx foi um homem da politica e da teoria que a movimenta. Na politica, Marx, sempre ao lado de Friedrich Engels, participou ativamente da Liga dos Comunistas, genese do futuro partido comunista, e foi o principal dirigente da Associacao Internacional dos Trabalhadores, (AIT), ou simplesmente a Primeira Internacional.

O presente artigo analisa a forma como Marx e Engels, teoricos da politica, inseriram-se no debate contemporaneo sobre a democracia. Passada a Revolucao Francesa de 1789, a democracia tornou-se o grande tema da agenda teorica do seculo XIX. Mas as interpretacoes foram, decerto, distintas. De modo bem diferente de seus contemporaneos liberais--Alexis de Tocqueville e John Stuart Mill--Marx e Engels compuseram a justificativa teorica para a acao dos trabalhadores para alem da democracia burguesa. Transitando por entre temas como a "verdadeira democracia", a "emancipacao humana", o "comunismo" e a "ditadura do proletariado", os dois autores formularam teorias politicas que nao apenas informaram a grande polarizacao do seculo XX " a chamada Guerra Fria ", como tambem ainda hoje referenciam debates sobre as possibilidades de uma alternativa social e politica ao capitalismo no seculo XXI.

A hipotese aqui apresentada e a de que a tensao entre democracia e ditadura na obra de Marx e Engels permite interpretacoes dispares, o que garante a riqueza e a permanencia do debate nos tempos atuais. A primeira secao apresenta como o jovem Marx encarou a filosofia hegeliana de sua epoca, definiu a "verdadeira democracia" e formulou categorias distintas, como a "emancipacao humana" e a "emancipacao politica". A secao seguinte compreende a transicao teorica de um Marx ja amadurecido, presente em Manifesto comunista e nas obras historicas sobre as jornadas de 1848 e a Comuna de Paris. Dai emerge o conceito de "ditadura do proletariado". Por fim, abordaremos a forma como Engels, em texto publicado em seu ultimo ano de vida, encarou a possibilidade da via eleitoral para a consecucao da "ditadura do proletariado".

O jovem Marx e a "verdadeira democracia"

A literatura especializada e praticamente unanime ao apontar o jovem Marx, ou seja, Marx ate aproximadamente seus 25 anos, como um "democrata radical". Logo apos terminar seu curso de filosofia na Universidade de Berlim, em 1841, Marx passou a colaborar, no ano seguinte, com o principal jornal da burguesia democrata da regiao da Colonia, a Gazeta Renana. Foi ali, como editor daquele jornal, que Marx teve sua iniciacao politica na conturbada conjuntura prussiana. Como diz o proprio, no famoso Prefacio de 1859, "nos anos de 1842/43, como redator da Gazeta Renana vi-me pela primeira vez em apuros por ter que tomar parte na discussao sobre os chamados interesses materiais" (MARX, 1999, p. 50). No jornal, travou combate contra o parlamento renano e contra o governo prussiano, posicionando-se em defesa dos camponeses e da liberdade de imprensa. Nao se tratava ainda de um comunista, mas de um democrata radical (HOBSBAWM, 2011). Os embates culminaram com o fechamento do jornal em 1843, o que o levou a Paris. Mas antes de alcancar Paris, numa parada rapida de alguns poucos meses para a lua de mel na cidade de Kreuznach, Marx enfrentou uma transicao teorica de longo alcance: uma revisao profunda da obra de Hegel. Foi ali que redigiu o manuscrito de 1843, que ficou conhecido como Critica da filosofia do direito de Hegel.

Em Critica da filosofia do direito de Hegel, Marx (2005) enfrenta de modo inovador o tema da democracia e do Estado. Sua preocupacao nesse momento e com a busca pela "verdadeira democracia", entendida como "abolicao da separacao entre o social e o politico, o universal e o particular" (LOWY, 2012, p. 74). A "verdadeira democracia" que Marx busca e bem diferente daquela que foi efetivada pela burguesia no seculo anterior, em particular na Revolucao Francesa. Pois, dira Marx (2005, p. 97), essa conquista burguesa do sistema representativo apenas significa que "os membros singulares do povo sao iguais no ceu de seu mundo politico e desiguais na existencia terrena da sociedade". Nao ha como nao notar, aqui, uma aproximacao da ideia de "verdadeira democracia" marxiana com a "vontade geral" rousseauniana, i.e., a concepcao de que a soberania popular deve prevalecer sobre a separacao entre representante e representado, entre social e politico (1). Nas palavras de Celso Frederico (1995, p. 86), na democracia do jovem Marx "a extincao do Estado e substituida pela democracia direta, na qual a gestao dos assuntos publicos dispensa a presenca de uma esfera autonoma, separada dos homens comuns".

Foi, contudo, apenas alguns meses apos ter se concentrado em torno dos estudos sobre Hegel, em Kreuznach, que Marx efetivou um passo concreto em direcao ao amadurecimento de seu pensamento. Em Paris, publicou, logo no inicio de 1844, dois artigos em uma revista chamada Anais Franco-Alemaes: A questao judaica e Introducao a critica da filosofia do direito de Hegel. Ha aqui uma transicao teorica: da ideia de "verdadeira democracia", Marx passa a entender como "emancipacao humana" o locus ideal a ser alcancado. Para Marx (2010), o fim do seculo XVIII e inicio do XIX traz para as sociedades desenvolvidas duas possibilidades de emancipacao. A primeira delas e a emancipacao politica, entendida como a simples democracia, propria das revolucoes burguesas, como as da Franca, Inglaterra e Estados Unidos. Em sua sintese, "a emancipacao politica e a reducao do homem, por um lado, a membro da sociedade burguesa, a individuo egoista independente" (MARX, 2010, p. 54). A emancipacao humana e, no entanto, um passo para alem da mera emancipacao politica; trata-se da emancipacao plena dos homens, aquilo que antes entendeu como "verdadeira democracia" e que, posteriormente, chamara de comunismo.

Nas ultimas paginas da Introducao a critica da filosofia do direito de Hegel, Marx (2005) identifica quem sera o sujeito historico em sua teoria politica: o proletariado. Mas qual seria o exato papel a ser desempenhado por esse proletariado ainda era uma incognita naquele momento. Tratava-se mais de uma hipotese a ser testada do que uma tese comprovada pela observacao empirica.

Porem, nao tardou para que o teste historico ocorresse aos olhos de Marx. Em junho de 1844, apenas quatro meses apos a publicacao da Introducao, explodiu na Alemanha a greve dos teceloes da Silesia. O evento, nas palavras de Michael Lowy (2010a, p. 11), representou "a primeira revolta operaria na historia alema moderna, esmagada pela intervencao do exercito prussiano". A greve da Silesia agitou profundamente a reflexao de Marx. Sua percepcao foi a de que havia uma mudanca significativa em relacao as mobilizacoes operarias na Franca e na Inglaterra. Diz Marx (MARX; ENGELS, 2010b, p. 44): "a revolta silesiana comeca justamente no ponto em que as revoltas dos trabalhadores da Franca e da Inglaterra terminam, ou seja, consciente da essencia do proletariado". Diferente do que faziam os luddistas ingleses, na Alemanha "nao sao destruidas apenas as maquinas, essas rivais dos trabalhadores, mas tambem os livros contabeis, os titulos de propriedade" (MARX; ENGELS, 2010b, p. 44)...

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