Democracia sindical

AutorRafael Foresti Pego
CargoProcurador do Trabalho lotado na Procuradoria Regional do Trabalho da 14ª Região. Mestre em Direito pela PUCRS
Páginas112-130

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1. Introdução

O termo democracia, de origem grega, é concebido, de um modo geral, como uma forma de governo do povo e para o povo, que promova a participação de todos. Nessa mesma linha, é a compreensão da democracia sindical, também conhecida como democracia interna, a qual roga, no aspecto inalístico, que as condutas sindicais sejam realizadas pela e para a

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categoria, respeitando e promovendo, no tocante aos meios, a participação de todos os membros que compõem a categoria ou pelo menos que seja franqueada a possibilidade de participar.

No Direito Coletivo do Trabalho, este princípio constitui um dos mais importantes pilares da estrutura de qualquer sistema sindical, confundindo--se com a própria origem e razão de ser do movimento sindical. Signiica, em síntese, a participação de todos no exercício da representação de uma categoria proissional1, cujas decisões são tomadas a partir da vontade da maioria, porém, com o respeito e a proteção dos direitos das minorias.

O princípio democrático está presente em diversas situações cotidianas da relação entre o sindicato e o representado, como na realização de eleições sindicais, na participação em assembleias gerais realizadas, na preservação do direito à associação, à desiliação ou a não participação, no acesso a todas as informações sobre a administração do sindicato. No entanto, a realidade brasileira traz um histórico de constantes violações ao princípio democrático nas relações sindicais, em diversos níveis, muitas vezes, na própria constituição da entidade sindical, quando, por exemplo, não se permite a participação dos próprios trabalhadores da categoria. Enim, vão desde violações mais especíicas e de menor extensão, como a cobrança individual de uma contribuição compulsória, até violações mais amplas, como uma eleição sindical ou assembleia geral fraudulenta. Embora os diferentes níveis, todas as violações ao princípio democrático no seio sindical são graves e colocam em xeque a própria função histórica do sindicato de representação de uma categoria.

Dessa forma, propõe-se, neste artigo, o enfrentamento destas ques-tões, sob um viés que alia teoria e prática, promovendo-se uma relexão sobre democracia sindical, tema este prioritário em matéria de liberdade sindical.

2. Liberdade sindical e democracia

Antes de abordar especiicamente o tema da democracia sindical, é oportuno tecer algumas considerações acerca da interconexão entre os princípios da liberdade sindical e da democracia sindical.

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O princípio da liberdade sindical constitui a pedra angular e valor-fonte do Direito Coletivo do Trabalho, confundindo-se com a própria origem do Direito Coletivo do Trabalho2, uma vez que este tem como inalidade garantir a liberdade sindical nas relações coletivas de trabalho, como instrumento para a melhoria das condições de trabalho e de vida dos trabalhadores por meio da negociação coletiva. Por tal razão, costuma--se reconhecer a liberdade sindical como um princípio-im, vale dizer, é simultaneamente um ponto de partida e um ponto de chegada no Direito Coletivo do Trabalho.

A doutrina diverge ao tratar da classiicação dos princípios especíicos do Direito Coletivo do Trabalho. De um lado, situam a liberdade sindical como um princípio maior do qual decorrem todos os demais princípios3 (liberdade sindical em sentido amplo). Em corrente oposta, há enquadramento como um entre outros princípios especíicos4 (liberdade sindical em sentido estrito). A mesma lógica se aplica ao princípio da democracia sindical, muitas vezes colocado como corolário da liberdade sindical5, até mesmo como uma espécie de subprincípio, enquanto há aqueles que o consideram um princípio autônomo e especíico do Direito Coletivo do Trabalho.

Entende-se que a democracia sindical constitui um princípio especí-ico do Direito Coletivo do Trabalho, não obstante esteja imbricado com a liberdade sindical, muitas vezes de tal forma que não se consegue distinguir com clareza a linha tênue que divide o conteúdo de um e de outro. Não há liberdade sindical sem democracia sindical. Toda a promoção e a preservação do princípio da democracia sindical acaba, direta ou indiretamente, favorecendo a liberdade sindical. Disso resulta que todo o arcabouço jurídico e normativo da liberdade sindical serve igualmente como fundamento para a preservação e a promoção da democracia sindical.

No âmbito internacional, destaca-se a Convenção n. 87 da Organi-zação Internacional do Trabalho (OIT), a qual, embora não ratiicada pelo Brasil, pode ser utilizada no ordenamento jurídico interno, haja vista que o direito comparado constitui fonte formal do Direito do Trabalho, a teor do

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art. 8º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Dita convenção parte do pressuposto de que as liberdades de expressão e de associação são indispensáveis para um progresso constante. Tal norma deine a liberdade sindical como o direito de toda a pessoa de fundar sindicatos, com outras pessoas, ou de se iliar a um sindicato, sujeitando-se unicamente ao estatuto da entidade escolhida (art. 2º).

As normas da Convenção n. 87 da OIT estão pautadas no direito de escolha, o qual pressupõe a livre participação de cada trabalhador na to-mada de decisões da categoria, airmando a democracia sindical como um princípio fundamental das relações sindicais. Por exemplo, o art. 2º da citada Convenção traz o direito dos trabalhadores de constituir e de iliar-se em organizações da sua escolha, bem como o art. 3º do mesmo Diploma garante aos trabalhadores o direito de eleger livremente os seus representantes.

A partir disso, conclui-se que a Convenção n. 87 da OIT, ao garantir expressamente o direito de escolha dos trabalhadores em variados níveis, acabou por tutelar, no plano internacional, o princípio da democracia sindical, constituindo-se em um importante fundamento jurídico deste princípio, tanto no âmbito internacional quanto no interno.

Ainda, no plano internacional, a liberdade sindical e, por conseguinte, a democracia sindical, têm como fundamento o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (art. 8º), o Protocolo de San Salvador (art. 8º) e a Declaração Sociolaboral do Mercosul (art. 9º), além de outras convenções especíicas da OIT, tais como as Convenções ns. 11, 98, 131, 141, 151 e 154.

No plano interno, a liberdade sindical tem amparo constitucional, como se pode extrair do art. 5º, incisos XVII (liberdade de associação), XVIII (liberdade na criação de associações), XIX (proteção contra a dissolução compulsória de uma associação) e XX (direito de iliação e desiliação); art. 7º, incisos VI (negociação coletiva sobre salários), XIII (negociação coletiva sobre jornada), XIV (negociação coletiva sobre turnos ininterruptos de revezamento) e XXVI (reconhecimento dos instrumentos normativos); art. 8º (estrutura sindical) e art. 9º (direito de greve); além de diversas outras normas no plano infraconstitucional, muitas das quais também constituem fundamento da democracia sindical.

Portanto, democracia e liberdade sindical são vetores constitucionais do Direito Coletivo do Trabalho, enquadrados como direitos fundamentais e, por decorrência, qualiicados como cláusulas pétreas do texto constitu-cional (art. 60, parágrafo quarto, inciso IV), o que reforça a necessidade de uma análise constante destas normas constitucionais, de acordo com

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as transformações da realidade social, em prol do desenvolvimento de tão relevantes institutos.

3. Democracia sindical

A democracia constitui uma liberdade fundamental (primeira dimensão dos direitos fundamentais6) e também um princípio de promoção da igualdade material (segunda dimensão dos direitos fundamentais), sendo normalmente tratada no plano especíico dos direitos políticos. A depender do enfoque adotado, pode até mesmo ser analisada como componente de uma quarta dimensão dos direitos fundamentais7, enquanto instrumento essencial para uma sociedade cada vez mais plural, dialógica e solidária. No sentido amplo, a democracia é composta por um conjunto de princípios e ações que tutelam a liberdade e a dignidade do ser humano, com a relevante missão de proteger os direitos humanos e garantir a mesma proteção jurídica aos cidadãos.

No Brasil, o princípio democrático constitui um valor fundamental, além de ser a peça-chave que embasa toda a organização do Estado. Tanto que a Constituição Federal de 1988 anuncia, já desde o seu preâmbulo8, a instituição de um Estado Democrático. Em sequência, a Constituição Federal declara, no seu primeiro artigo, que a República Federativa do Brasil "constitui-se em Estado Democrático de Direito", antes mesmo de enunciar os relevantes fundamentos da ordem jurídica constitucional.

Dirley da Cunha Junior, ao tratar do princípio do Estado Democrático de Direito, alude que "a designação Estado Democrático de Direito é novidade entre nós e sintetiza um movimento tendente a orientar o Estado de Direito a realizar os postulados de Democracia"9. O princípio democrático re- percute em todas as instâncias de organização social. Não se limita à esfera pública, dada a aplicação também no âmbito privado quando do exercício de um poder social, com base na chamada eicácia horizontal dos direitos

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fundamentais10, como ocorre nas relações sindicais11, entre outras hipóteses.

Ainda, em relação ao art. 1º da Constituição Federal, o inciso V traz o princípio do pluralismo político como fundamento do Estado Democrático brasileiro. Em suma, este princípio garante a aceitação constitucional da multidiversidade de centros de poder, o que repercute na questão sindical, pois o pluralismo político constitucional, em uma visão ampla, constitui um dos fundamentos para a transferência de parcelas do poder estatal de deliberação e de controle à sociedade civil...

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