O déficit democrático na formação dos tratados no Brasil

Autor1. Emerson Luiz Laurenti - 2. Pablo Bonilla Chaves
Cargo1. Advogado penalista na Cidade de Curitiba. Mestrando em Direitos Fundamentais e Democracia, na Escola de Direito e Relações Internacionais das Faculdades Integradas do Brasil - 2. Advogado na Cidade de Curitiba. Mestrando em Direitos Fundamentais e Democracia, na Escola de Direito e Relações Internacionais das Faculdades Integradas do Brasil
1. Introdução

A necessidade da existência de tratados internacionais para que os diversos países se vejam capazes de desempenhar suas mais diversas funções, principalmente no plano interno, não pode ser questionada. O processo de formação de tais instrumentos, como será visto, com maior detalhe, no primeiro capítulo, é básica e essencialmente o mesmo, desde muito. Tal situação acaba por gerar algumas falhas, principalmente, quando se analisa o tema através do prisma da contemporaneidade, que, em seu bojo, trouxe diversas e sensíveis alterações na formatação dos Estados. Destarte, é inegável que os tratados internacionais, da mesma sorte, devem ser vistos de outra forma.

Gustavo Justino de OLIVEIRA reza que “o fim do Estado contemporâneo é o de constituir-se em canal e instrumento indispensável para a promoção do desenvolvimento dos indivíduos e da própria sociedade”3. O autor segue sua análise dizendo que sempre, porém, é preciso guardar as chamadas funções mínimas do Estado, sob pena de que tal ente perca a sua identidade4.

Resguardadas tais posturas essenciais, o Estado passa a deixar de ter certas atribuições e passa, portanto, a ter outras. Um aspecto que surge em função da narrada conjuntura é do Estado regulador (da economia privada), onde o objetivo do interesse público encontra-se ajustado ao modelo econômico de gerenciamento, com a ressalva de que não só à economia se refere tal regulação, mas, também, se não principalmente, às questões sociais5.

Surge, então, a figura que alguns autores chamam de Estado pós-nacional. Tal situação acaba por trazer problemas que são vivenciados no plano internacional e, ao mesmo tempo, possui situações correspondentes na esfera interna. Em tal panorama, resta nítida a importância do Direito como instrumento adequado para a busca e a manutenção da paz6.

MALISKA divide o tema mencionado em duas partes que, embora diversas, relacionam-se de modo íntimo: primeiramente, tem-se a questão de que “o Estado Pós- Nacional é o Estado Constitucional Cooperativo, que se abre para a cooperação e integração internacional e supranacional, seja ela regional ou global.”7 Concomitantemente, existe o fato de que essa mesma forma de Estado também abrange políticas públicas internas, agora vista através de outro prisma; o da afirmação da diversidade cultural, étnica, racial e outras congenéricas, tomando o lugar da homogeneização que, outrora, buscava negar tais dessemelhanças.

O século XXI, portanto, independentemente das posturas que, até então, foram adotadas, traz consigo o “desafio de construir uma sociedade do bem estar plural, diversificada, marcada pelas características dos diversos grupos que formam a sua população, bem como atendendo às diversidades regionais.”8

Nessa linha, destaca-se que as mudanças de paradigmas e os avanços tecnológicos trazidos pelo novo século exercem papel de suma importância na reavaliação do modo de se encararem as minorias e os diversos grupos. Luigi FERRAJOLI, sobre o tema, faz a seguinte asseveração:

...são justamente a rapidez e a multiplicidade das comunicações que acentuaram o anseio de identidade dos povos, das etnias, das minorias e, ao mesmo tempo, o valor associado às diferenças, acendendo conflitos étnicos desagregadores dentro das fronteiras dos Estados e processos inversos de integração nacional fora delas. Vem-se desvendando, assim, o caráter efetivamente artificial e fictício dos Estados, freqüentemente criados de cima para baixo, como muitos dos recém-formados, e, de qualquer forma, sempre destinados a engrossar as identidades dos povos com a pretensão de subsumilos em unidades forçadas e, por conseguinte, a negar suas diferenças não menos que suas identidades comuns.9

Vê-se, por óbvio, que o papel das Constituições dos Estados é de relevo ímpar, pois, tal diploma se transfigura no único instrumento capaz de, ao mesmo tempo, disciplinar as relações internacionais e, sem prejuízo, salvaguardar os interesses internos das nações, incluídos nestes os direitos individuais dos cidadãos.

MALISKA aduz que, segundo os manuais de Direito Constitucional, a Constituição se trata de um “conjunto de regras concernentes à forma do Estado, à forma do governo, ao modo de aquisição e exercício do poder, ao estabelecimento de seus órgãos, aos limites de sua ação.”10 Contudo, tal conceituação não mais é capaz de definir a Constituição, pois, atualmente, ela tenciona ser “um instrumento fundamental da sociedade”11, encontrando, porquanto, dois enormes reptos.

A primeira dessas dificuldades refere-se ao seu papel junto a entes supranacionais e/ou internacionais. “A Constituição aberta como hoje conhecemos é aquela não apenas aberta aos valores, mas também aberta organicamente, ou seja, a própria Constituição possibilita uma abertura do Estado para que promova a cooperação e a integração internacional e supranacional do país.”12

O autor faz referência a Stephan HOBE e sua Teoria do Estado Aberto, onde defende, ao discorrer sobre o que chama de “planos de cumprimento de tarefas”, o Estado, em virtude de sua incapacidade para realizar, satisfatoriamente suas incumbências, as divida em planos; internacional, regional e nacional. Destarte, ainda segundo HOBE, o Estado passa a ter as seguintes funções: “(i) de transferência de direito para as outras instâncias; (ii) de controle com base no conteúdo democrático da Constituição Nacional (...); (iii) de realização e execução (...); (iv) e de identificação”13. Dessa sorte, a defendida abertura deve ser vista como finalidade do Estado, através de uma nova interpretação dos mencionados aspectos.

Por óbvio que essa questão acaba por suscitar dúvidas quanto à soberania do Estado e à supremacia da Constituição, porém, é necessária uma análise criteriosa para que tal pergunta tenha cabimento. Essa análise, em verdade, consiste na diferenciação da forma com a qual a Constituição e o Estado se relacionam com entidades supra ou internacionais da maneira com que se relacionam com atos internos, hierarquicamente inferiores à Carta Magna. “(...) o Estado, na produção legislativa interna atua de forma absoluta, ou seja, ele possui o monopólio da produção legislativa, na produção legislativa supranacional e internacional o Estado compartilha essa competência com outros Estados, sendo a sua vontade uma entre outras várias vontades soberanas”14.

O segundo desafio reside nos chamados novos direitos, que são “entendidos como direitos que visam garantir a diversidade cultural e étnica interna”15. Através desses novos direitos, grupos que, até então, ou sofriam com a arbitrária tentativa de homogeneização ou tinham denegadas as suas cidadanias, situações fulminadas pela Constituição Federal de 1.988, no que tange ao Brasil, passam a afirmar a sua diversidade e, justamente através de tal processo, (re)conquistar seus espaços na sociedade. Dessa maneira, a isonomia, que muitas vezes se posicionava como que alheia às múltiplas facetas da população brasileira, torna-se mais efetiva, principalmente, por passar a ser vista através do prisma da dignidade do homem, respeitando a identidade de cada um e de cada grupo.

Os problemas que decorrem do papel da Constituição e o eventual conflito entre as normas internas e externas já fora, há tempos, enfrentada por Hans KELSEN que fez a seguinte afirmação:

En modo alguno queda excluído en principio que se obligue y autorice directamente a individuos. En efecto, existen tanto normas de Derecho internacional general consuetudinario como normas de Derecho particular estabelecido por tratados en los cuales aparecen individuos como obligados y como autorizados de manera directa. Hay normas de Derecho internacional en que se designa directamente a aquel individuo cuya conducta constituye la materia de la facultad o del deber, que el Derecho internacional establece. Hay casos en que el Derecho internacional no confiere al nacional la designación del elemento personal, sino que él mismo la hace. Estas normas del Derecho internacional son normas completas, que no necesitan complemento.

...hasta ahora se había supuesto que en el momento en que se actualiza la obligación internacional de un Estado, la constitución de este Estado ya contiene la designación de los órganos que han de cumplir con la obligación internacional. Pero también es posible que el ordem jurídico del Estado no contenga todavia una norma que designe el individuo que, como órgano del Estado, ha de cumplir con la obligación internacional. En tal caso, ha de crearse esa norma. La situación es la misma si la norma de Derecho internacional obliga al Estado a cierta conducta pero la designa tan sólo en términos generales, de tal manera que sea necesario hacer outras determinaciones para ilevar a cumplimiento esta norma del Derecho internacional. En este caso, se debe dictar una norma nacional para ampliar o completar la norma de Derecho internacional, porque la conducta de los órganos del Estado que deben cumplir los deberes internacionales de este tiene que estar determinada de modo adectuado. También se debe dictar una norma de Derecho nacional para la ejecución de una norma de Derecho internacional cuando los órganos del Estado, que deben cumplir los deberes internacionales de éste, pueden, según la constitución, ejecutar únicamente normas de Derecho nacional...16

De qualquer sorte, diante do que se expôs, justifica-se a temática do presente artigo que buscará evidenciar o déficit democrático existente em toda a sistemática dos tratados internacionais, principalmente, em plagas brasileiras.

2. Processo de formação dos tratados no Brasil

Insta salientar, por oportuno, que os tratados são uma constante nos tempos...

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