Decisionismo judicial e políticas públicas: uma análise sob o prisma da reserva do possível

AutorFrancielly Schmeiske/Rafael José Nadim de Lazari
CargoAdvogada licenciada/Advogado, consultor jurídico e parecerista
Páginas15-22

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Introdução

Este ensaio examina a possibilidade de inter-venção jurisdicional em face de falha na implementação de políticas públicas diante da omissão estatal em detrimento dos direitos assegurados ao administrado, principalmente aqueles previstos pela constituição cidadã de 1988.

O trabalho será dividido em três partes.

Inicialmente se irá analisar a definição de políticas públicas trazida por doutrinadores e a possibilidade de alegação da teoria da reserva do possível em detrimento da efetivação dos objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito, diante da alegação de insuficiência orçamentária.

Em seguida será tratado da intervenção do Poder Judiciário provocada pelo interessado, quando houver descumprimento, total ou parcial, do comando inscrito na Constituição Federal.

Em fechamento, se discutirá a possibilidade do decisionismo judicial frente à alegação da teoria da reserva do possível, considerando quais são os limites que deverão ser observados pelo julgamento no momento da decisão.

Além da alegação da reserva do possível, o presente ensaio se propõe a analisar a argumentação de que o controle judicial das políticas públicas afronta a teoria da separação dos poderes.

Após a abordagem dos tópicos acima, será possível concluir se é adequada a intervenção judicial em sede de políticas públicas, aliada com a alegação de limitação orçamentária.

1. Políticas públicas e reserva do possível

A primeira consideração relevante a ser feita refere-se à definição doutrinária de políticas públicas.

Sobre a temática, Oswaldo Canela Juniorpondera que:

“Por política estatal – ou políticas públicas – entende-se o conjunto de atividades do Estado tendentes a seus fins, de acordo com metas a serem atingidas. Trata-se de um conjunto de normas (Poder Legislativo), atos (Poder Executivo) e decisões (Poder Judiciário) que visam à realização dos fins primordiais do Estado” (apud Grinover, 2011, p. 129).

De acordo com Fernando Borges Mânica, políticas públicas são:

“(...) expressão polissêmica que compreende, em sentido amplo, todos os instrumentos de ação dos governos.

Nesse sentido, para Régis Fernandes de Oliveira, políticas públicas referem-se a ‘providências para que os direitos se realizem, para que as satisfações sejam atendidas, para que as determinações constitucionais e legais saiam do papel e se transformem em utilidades aos governados’” (2012, p. 2).

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De acordo com essas definições, percebe-se que as políticas públicas são instrumentos para a concretização dos direitos assegurados aos indivíduos, bem como são meio para a efetivação dos objetivos do Estado Democrático de Direito.

Feita esta consideração, convém assinalar que há no ordenamento jurídico brasileiro muitas normas que impõem ao Estado um dever de ação ou omissão perante o particular, ou seja, há um comando de efetivar os direitos assegurados, os quais, por sua vez, ocorrerão por meio das políticas públicas.

Assim, diante da definição trazida e de acordo com os ensinamentos de Luís Roberto Barroso, pode ser concluído que as normas que exigem do ente estatal deter-minada ação ou omissão são normas jurídicas de conduta:

“A norma jurídica de conduta caracteriza-se por sua bilateralidade, dirigindo-se a duas partes e atribuindo a uma delas a faculdade de exigir da outra determinado comportamento. Forma-se, desse modo, um vínculo, uma relação jurídica que estabelece um elo entre dois componentes: de um lado, o direito subjetivo, a possibilidade de exigir; de outro, o dever jurídico, a obrigação de cumprir. Quando a exigibilidade de uma conduta se verifica em favor do particular em face do Estado, diz-se existir um direito subjetivo público” (2001, p. 103-104).

Nesse diapasão o particular possui um direito subjetivo público perante o ente estatal, que deverá satisfazer as obrigações consagradas nas normas brasileiras e principalmente na Constituição Federal.

Nota-se, portanto, que, conforme se verifica nas definições acima mencionadas, a satisfação dessas obrigações se dará com implementação de políticas públicas.

Luís Roberto Barroso continua dizendo que:

“as normas constitucionais definidoras de direito enquadram-se no esquema conceitual retratado acima, a saber: dever jurídico, violabilidade e pretensão. Delas resultam, portanto, para os seus beneficiários – os titulares de direito – situações jurídicas imediatamente desfrutáveis a serem materializadas em prestações positivas ou negativas. Tais prestações são exigíveis do estado ou de qualquer outro eventual destinatário da norma (dever jurídico) e, se não foram entregues espontaneamente (violação do direito), conferem ao titular do direito a possibilidade de postular-lhes o cumprimento (pretensão), inclusive e especialmente por meio de uma ação judicial” (2001, p. 104-105).

Verifica-se, por conseguinte, que há entre o particular e o Estado uma relação circular, em que aquele tem o direito subjetivo público de obter a prestação positiva ou negativa e este o dever jurídico de satisfazer os direitos do administrado, por inter-médio das políticas públicas.

Assim, a violação do direito faz nascer para o particular a possibilidade de se exigir o respeito do comando normativo por meio da tutela jurisdicional.

Contudo, oportuno se torna dizer que, segundo Ricardo Lobo Torres, as políticas públicas poderão ficar “limitadas pelas possibilidades financeiras e por valores e princípios como o do equilíbrio orçamentário” (apud Mânica, 2012,
p. 3).

Isso ocorre em razão de que, conforme bem exposto por Fernando Borges Mânica, é preciso recursos para a realização dos direitos individuais. “Todos os direitos demandam custos para sua efetivação; os direitos de defesa, indiretamente; os direitos sociais, diretamente” (2012, p. 8).

Diante disso, resta claro que a concretização das políticas públicas, que dão efetividade às normas brasileiras, representará ao poder público a disponibilidade de recursos.

Superada esta primeira análise sobre políticas públicas e possibilidade de se exigir do ente estatal providências para a efetivação dos direitos fundamentais assegurados ao indivíduo, convém ponderar, neste instante, o momento em que poderá ser arguida a teoria da reserva do possível.

Em primeiro lugar, a título de curiosidade, registre-se que a teoria da reserva do possível possui suas raízes no Tribunal Constitucional Federal alemão, mais especificamente no BVerfGE 33,303, via controle concreto de constitucionalidade (Bernardi e Lazari, 2011, p. 253).

O caso decidido pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, em 18 de julho de 1972, tratavase de ação proposta por estudantes que não tinham sido admitidos em escola de medicina humana nas universidades de Hamburgo e Baviera, nos anos de 1969 e 1970 (Bernardi e Lazari, 2011, p. 253).

De acordo com Fernando Borges Mânica:

“A pretensão foi fundamentada no artigo 12 da Lei Fundamental daquele Estado, segundo a qual ‘todos os alemães têm direito a escolher livremente sua profissão, local de trabalho e seu centro de formação’. Ao decidir a questão o Tribunal Constitucional entendeu que o direito à prestação positiva – no caso aumento do número de vagas na universidade – encontrase sujeito à reserva do possível, no sentido daquilo que o indivíduo pode esperar, de maneira racional, da socie-dade. Ou seja, a argumentação adotada refere-se à razoabilidade da pretensão” (2012, p. 11).

A partir de então o Estado passou a ter a teoria da reserva do possível como um novo argumento de defesa.

Luís Roberto Barroso, ao tratar das regras que conferem direitos so-

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ciais, menciona que a conformação dessas regras produz efeitos de natureza vária, distribuindo-se em três grupos, sendo um deles: “ensejam a exigibilidade de prestações positivas do Estado” (2001, p. 108).

Referido autor ainda menciona que a efetivação da prestação pode encontrar limites de cunho econômico como político:

“Os limites econômicos derivam do fato de que certas prestações hão de situar-se dentro da ‘reserva do possível’, das disponibilidades do erário. Atente-se bem para esta questão delicada: a ausência da prestação será sempre inconstitucional e sancionável; mas determinar se ela é plenamente satisfatória é tarefa árdua, muitas vezes, e impossível outras tantas” (2001, p. 109).

Assim, deve ser destacado que é neste momento que poderá surgir para o Estado a possibilidade de arguir a teoria da reserva do possível. Ou seja, caso seja demandado judicialmente para que efetive os direitos fundamentais previstos, o ente estatal poderá alegar como matéria de defesa a teoria da reserva do possível, frente à indisponibilidade de orçamento e à irrazoabilidade da pretensão alegada.

Além disso, conforme ressaltado por Renato Bernardi e Rafael José Nadim de Lazari, “a reserva do possível é assunto intrinsecamente correlacionado ao ‘custo dos direitos’” (2011, p. 254).

Percebe-se, desta forma, que a...

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